sexta-feira, outubro 31, 2008

Em sua impossível partida, Vinicius de Moraes sonhou demais. E diz que é preciso adormecer na lembrança boa antes que mãos desconhecidas o arrebatem.


A impossível partida

Como poder-te penetrar, ó noite erma, se os meus olhos cegaram nas luzes da cidade
E se o sangue que corre no meu corpo ficou branco ao contato da carne indesejada?…
Como poder viver misteriosamente os teus recônditos sentidos
Se os meus sentidos foram murchando como vão murchando as rosas colhidas
E se a minha inquietação iria temer a tua eloqüência silenciosa?…
Eu sonhei!... Sonhei cidades desaparecidas nos desertos pálidos
Sonhei civilizações mortas na contemplação imutável
Os rios mortos... as sombras mortas... as vozes mortas...
…o homem parado, envolto em branco sobre a areia branca e a quietude na face...
Como poder rasgar, noite, o véu constelado do teu mistério
Se a minha tez é branca e se no meu coração não mais existem os nervos calmos
Que sustentavam os braços dos Incas horas inteiras no êxtase da tua visão?...
Eu sonhei!... Sonhei mundos passando como pássaros
Luzes voando ao vento como folhas
Nuvens como vagas afogando luas adolescentes...
Sons… o último suspiro dos condenados vagando em busca de vida...
O frêmito lúgubre dos corpos penados girando no espaço...
Imagens... a cor verde dos perfumes se desmanchando na essência das coisas...
As virgens das auroras dançando suspensas nas gazes da bruma
Soprando de manso na boca vermelha dos astros...
Como poder abrir no teu seio, oh noite erma, o pórtico sagrado do Grande Templo
Se eu estou preso ao passado como a criança ao colo materno
E se é preciso adormecer na lembrança boa antes que as mãos desconhecidas me arrebatem?...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Quem não já escreveu algo parecido em momento de paixão, não viveu um grande amor. Para eles, o "Secretário dos Amantes", de Oswald de Andrade.


Secretário dos Amantes

I

Acabei de jantar um excelente jantar
116 francos
Quarto 120 francos com água encanada
Chauffage central
Vês que estou bem de finanças
Beijos e coisas de amor

II

Bestão querido
Estou sofrendo
Sabia que ia sofrer
Que tristeza este apartamento de hotel

III

Granada é triste sem ti
Apesar do sol de ouro
E das rosas vermelhas

IV

Mi pensamiento hacia Medina del Campo
Ahora Sevilla envuelta en oro pulverizado
Como una dádiva s mis ojos enamorados
Sin embargo que tarde la mia

V

Que alegria teu rádio
Fiquei tão contente
que fui à missa
Na igreja toda a gente me olhava
Ando desperdiçando beleza
Longe de ti

VI

Que distância!
Não choro
porque meus olhos ficam feios.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Zélia Duncan, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção VII".



Link para download do poema no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/5366584-7b3

Canção VII

É lícito me dizeres que Manã tua mulher
virá à minha casa para aprender comigo
minha extensa e difícil dialética lírica
canção e liberdade não se aprendem

Mas posso encantada se quiseres
deitar-me com o amigo que escolheres
e ensinar a mulher e a ti Dionísio
a eloqüência da boca nos prazeres
e plantar no teu peito prodigiosa
um ciúme venenoso e derradeiro

Hilda Hilst
(1930-2004

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

quinta-feira, outubro 30, 2008

Nos versos de Ferreira Gullar, um grave acontecimento está sendo esperado por todos. E nem Deus e nem a polícia poderiam evitá-lo.


A espera


Um grave acontecimento está sendo esperado por todos.

Os banqueiros os capitães da indústria os fazendeiros
ricos dormem mal. O ministro
da Guerra janta sobressaltado,
a pistola em cima da mesa.

Ninguém sabe de que forma dessa vez a necessidade
se manifestará:
se como
um furacão ou um maremoto
se descerá dos morros ou subirá dos vales
se manará dos subúrbios com a fúria dos rios poluídos

Ninguém sabe.
Mas qualquer sopro num ramo
o anuncia

Um grave acontecimento
está sendo esperado
e nem Deus e nem a Polícia
poderiam evitá-lo

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Numa noite fria, nasceu uma criança nua. E também numa noite fria, cada homem amou a vida coberto por palmos de terra batida, no mundo de Brecht


Da amabilidade do mundo


1

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual nasceu, uma criança nua.
E ali ficou, criatura sem dono
Quando uma mulher o envolveu num pano.

2

Ninguém o chamou, não era necessário.
Para trazê-lo não houve emissário.
Era um desconhecido, ser sem proteção
Quando um homem o tomou pela mão.

3

Numa noite fria, nessa terra crua
Cada qual leva a morte que é sua.
Cada homem certamente amou a vida
Coberto por palmos de terra batida.


Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Adélia Prado sempre sonha que uma coisa gera, nunca nada está morto. Para ela, o que não parece vivo, aduba, e o que parece estático, aparece.

Leitura

Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras,
As macieiras tinham maçãs temporãs, a casca vermelha
de escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso ria,
os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer pra gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, outubro 29, 2008

Vem de manso, suave e doce, como um silêncio de prece. E que a sua vida seja apenas a saudade que me viesse, diz Cecília em seu noturno de amor.


Noturno de amor


Vem de manso...de leve...e suave e doce
Como um silêncio estático de prece...
Que a sua vida seja tal qual fosse
Apenas a saudade que me viesse...

Vem de manso...Na névoa da penumbra,
Faze um gesto litúrgico de benção!
A alta noite tristíssima deslumbra
Dos meus olhos nostálgicos, que pensam...

Sugere, mas não fales...Porque a frase
É vã, no amor...Mistério...Sonolência...
O esquecimento, quase...A morte, quase...
Intuições...Irrealismo...Inconsciência...


Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

O passado carrega a minha vida para trás e eu de mim fiquei distante, diz Dante Milano. Ele sente que a hora da despedida é a da partida.


Ao tempo

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,

Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

Dante Milano
(1899-1991)

Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

Ariano Suassuna viu a Morte, a moça Caetana, com o Manto Negro, rubro e amarelo. E viu o olhar, puro e perverso, e os dentes de Coral da desumana.



A Moça Caetana a morte sertaneja


Eu vi a Morte, a moça Caetana,
com o Manto negro, rubro e amarelo.
Vi o inocente olhar, puro e perverso,
e os dentes de Coral da desumana.

Eu vi o Estrago, o bote, o ardor cruel,
os peitos fascinantes e esquisitos.
Na mão direita, a Cobra cascavel,
e na esquerda a Coral, rubi maldito.

Na fronte, uma coroa e o Gavião.
Nas espáduas, as Asas deslumbrantes
que, rufiando nas pedras do Sertão,

pairavam sobre Urtigas causticantes,
caules de prata, espinhos estrelados
e os cachos do meu Sangue iluminado.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

terça-feira, outubro 28, 2008

Tu estavas no morno da grama, na polpa saborosa do pão. Mas encheram-se de sombras os cântaros e só o meu cavalo pasta na solidão, diz Mario Quintana.


De repente


Olho-te espantado:
Tu és uma Estrela do Mar.
Um minério estranho.
Não sei...

No entanto,
O livro que eu lesse,
O livro na mão.
Era sempre o teu seio!

Tu estavas no morno da grama,
Na polpa saborosa do pão...

Mas agora encheram-se de sombra os cântaros

E só o meu cavalo pasta na solidão.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

No além de tuas pernas, onde Deus repousou a sua face, desvendo a rosa que és. A mística e sombria, a noturna e serena rosa fria, diz Carlos Pena.


A rosa, no íntimo

Entro em teu breve sono, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enormes,
e descubro os gelados aquedutos
guardiães do silêncio, enquanto dormes.

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbedos marujos
desesperados, sós, raros, azuis.

Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face,
cansado de inventar coisas eternas)

desvendo, ao desespero de quem passe,
a rosa que és, a mística e sombria
a noturna e serena rosa fria.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

Cego de angústia e de revolta, José Régio fala de um Deus em que não crê, porque é sua criação. E diz: Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...


Poema do silêncio


Sim, foi por mim que gritei.
Declamei,
Atirei frases em volta.
Cego de angústia e de revolta.

Foi em meu nome que fiz,
A carvão, a sangue, a giz,
Sátiras e epigramas nas paredes
Que não vi serem necessárias e vós vedes.

Foi quando compreendi
Que nada me dariam do infinito que pedi,
-Que ergui mais alto o meu grito
E pedi mais infinito!

Eu, o meu eu rico de baixas e grandezas,
Eis a razão das épi trági-cómicas empresas
Que, sem rumo,
Levantei com sarcasmo, sonho, fumo...

O que buscava
Era, como qualquer, ter o que desejava.
Febres de Mais. ânsias de Altura e Abismo,
Tinham raízes banalíssimas de egoísmo.
Que só por me ser vedado
Sair deste meu ser formal e condenado,
Erigi contra os céus o meu imenso Engano
De tentar o ultra-humano, eu que sou tão humano!

Senhor meu Deus em que não creio!
Nu a teus pés, abro o meu seio
Procurei fugir de mim,
Mas sei que sou meu exclusivo fim.

Sofro, assim, pelo que sou,
Sofro por este chão que aos pés se me pegou,
Sofro por não poder fugir.
Sofro por ter prazer em me acusar e me exibir!

Senhor meu Deus em que não creio, porque és minha criação!
(Deus, para mim, sou eu chegado à perfeição...)
Senhor dá-me o poder de estar calado,
Quieto, maniatado, iluminado.

Se os gestos e as palavras que sonhei,
Nunca os usei nem usarei,
Se nada do que levo a efeito vale,
Que eu me não mova! que eu não fale!

Ah! também sei que, trabalhando só por mim,
Era por um de nós. E assim,
Neste meu vão assalto a nem sei que felicidade,
Lutava um homem pela humanidade.
Mas o meu sonho megalómano é maior
Do que a própria imensa dor
De compreender como é egoísta
A minha máxima conquista...

Senhor! que nunca mais meus versos ávidos e impuros
Me rasguem! e meus lábios cerrarão como dois muros,
E o meu Silêncio, como incenso, atingir-te-á,
E sobre mim de novo descerá...

Sim, descerá da tua mão compadecida,
Meu Deus em que não creio! e porá fim à minha vida.
E uma terra sem flor e uma pedra sem nome
Saciarão a minha fome.


José Régio
(1901-1969)

Mais sobre José Régio em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_R%C3%A9gio

segunda-feira, outubro 27, 2008

Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore, que tem isso de novo? Mas eu respondi, diz Alberto Caeiro, nem todos...


O que ouviu os meus versos


O que ouviu os meus versos disse-me: "Que tem isso de novo?
Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.
Mas eu respondi, nem todos, (?...)
Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferente
E todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.
Eu amo as flores por serem flores, diretamente.
Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1889-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Não, não era nada fácil ser poeta naqueles dias de Ditadura. Mais difícil ainda ser poeta e brasileiro, nos versos de protesto de Affonso Romano.


Sobre certas dificuldades atuais


Não está nada fácil ser poeta nestes dias.

Não falo das vendas de livros de poesia
- que se poesia é isso que aí está,
o público tem razão
- nem eu mesmo compraria.

De um lado,
um bando de narcisos desunidos,
ressentidos,
com vocação noturna de suicidas,
de outro,
os generais com seus suplícios
pensando que comandam os industriais,
que, comandados,
comandam os generais
de que precisam.

Não,
não está nada fácil ser poeta nestes dias.
Seja
palstino,
libanês,
argentino,
chileno,
sul-africano,
ou irlandês,
não está nada fácil ser poeta nestes dias.

Sem dúvidas, é mais fácil e inútil
ser poeta americano e francês,
com muito sanduíche e vinhos
e muito prazer burguês.

Não,
não é nada fácil ser poeta índio nestes dias.
Tão difícil quanto ser poeta polonês e afegão.
Não, não é nada fácil
ser um poeta, dividido, alemão.

Na Rússia, talvez haja poeta proletário
contente com o recalcado medo
e seu profissional salário.
De qualquer jeito
nunca foi fácil ser poeta
num regime autoritário.

Não está nada fácil ser poeta nestes dias.
Não está nada fácil ser poeta noite e dia.
Não está nada fácil ser poeta da alegria.
Não,
não está nada fácil ser poeta
e brasileiro
nestes dias.

Affonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

Desperta-me de noite o teu desejo. E queres-me de amor, na pressa de teres o que só sentes e possuires de mim o que não sabes, canta Maria Teresa.


As nossas madrugadas


Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito
pois suspeitas
que com ele me visto e me
defendo
É raiva
então ciúme
a tua boca
é dor e não
queixume
a tua espada
é rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas
E tomas-me de força
não o sendo
e deixo que o meu ventre
se trespasse
E queres-me de amor
e dás-me o tempo
a trégua
a entrega
e o disfarce
E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lenços que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuires de mim o que não sabes
Despertas-me de noite
com o teu corpo
tiras-me do sono
onde resvalo
e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

sábado, outubro 25, 2008

Em sua canção, Drummond diz à menina que o amor, os beijos, a carne e a vida não são importantes. E que tudo acontece, nada fica em seus olhos.


Canção do berço


O amor não tem importância.
No tempo de você, criança,
uma simples gota de óleo
povoará o mundo por inoculação,
e o espasmo
(longo demais para ser feliz)
não mais dissolverá as nossas carnes.

Mas também a carne não tem importância.
E doer, gozar, o próprio cântico afinal é indiferente.
Quinhentos mil chineses mortos,
trezentos corpos de namorados sobre a via férrea
e o trem que passa, como um discurso, irreparável:
tudo acontece, menina,
e não é importante, menina,
e nada fica nos teus olhos.

Também a vida é sem importância.
Os homens não me repetem
nem me prolongo até eles.
A vida é tênue, tênue.
O grito mais alto ainda é suspiro,
os oceanos calaram-se há muito.
Em tua boca, menina,
ficou o gosto do leite?
ficará o gosto de álcool?

Os beijos não são importantes.
No teu tempo nem haverá beijos.
Os lábios serão metálicos,
civil, e mais nada, será o amor
dos indivíduos perdidos na massa
e só uma estrela
guardará o reflexo
do mundo esvaído
(aliás sem importância).

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Para Cassiano Ricardo, a esperança siginifica luta e não abdicação diante da vida. E nunca a forma burguesa de figura de mulher de quadro antigo.

A rua

Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.

A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

sexta-feira, outubro 24, 2008

No adeus à sua Lisboa, António Gedeão não tem medo de nada. Diante de tanta beleza, quem se atreve a acreditar que os homens não sejam bons?


Adeus, Lisboa


Vou-me até à Outra Banda
no barquinho da carreira.
Faz que anda mas não anda;
parece de brincadeira.
Planta-se o homem no leme.
Tudo ginga, range e treme.
Bufa o vapor na caldeira.
Um menino solta um grito;
assustou-se com o apito
do barquinho da carreira.
Todo ancho, tremelica
como um boneco de corda.
Nem sei se vai ou se fica.
Só se vê que tremelica
e oscila de borda a borda.

Chapas de sol, coruscantes
como lâminas de espadas,
fendem as águas rolantes
esparrinhando flamejantes
lantejoulas nacaradas.
Sob o dourado chuveiro,
o barquinho terno e mole,
vai-se afastando, ronceiro,
na peugada do Sol.

A cada volta das pás
moendo as águas vizinhas,
nos remoinhos que faz,
nos salpicos que me traz
e me enchem de camarinhas,
há fagulhas rutilantes,
esquírolas de marcassites,
polimentos de pirites,
clivagens de diamantes,

Numa hipnose coletiva,
como um friso de embruxados,
ao longe os olhos cravados
em transe de expectativa,
todos juntos, na amurada,
numa sonolência de ópio,
vemos, na tarde pasmada,
Lisboa televisada
num vasto cinemascópio.
O sol e a água conspiram
num conluio de beleza,
de elixires que se evadiram
de feiticeira represa.
Fulva, no céu incendido,
em compostura de pose,
a cidade é colorido
cenário de apoteose.
Há lencinhos agitados
nos olhos de todos nós,
engulhos de namorados,
embargamentos na voz.
Nesta quermesse do ar,
neste festival de tons,
quem se atreve a acreditar
que os homens não sejam bons?

Adeus, adeus, ribeirinha
cidade dos calafates,
rosicler de água-marinha,
pedra de muitos quilates.
Iça as velas, marinheiro,
com destino a Calecu.
Oh que ventinho rasteiro!
Que mar tão cheio e tão nu!
Ó da gávea! Põe-te alerta!
Tem tento nos areais.
Cá vou eu à descoberta
das índias Orientais.
Não tenho medo de nada,
receio de coisa nenhuma.

A vida é leve e arrendada
como esta réstea de espuma.
Toda a gente é séria e é boa!
Não existem homens maus!
Adeus, Tejo! Adeus Lisboa!
Adeus, Ribeira das Naus!
Adeus! Adeus! Adeus! Adeus!

António Gedeão
(1906-1997)

Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho

Nos versos de Augusto dos Anjos, um poeta loucamente apaixonado vai para a guerra. E quando volta, seu coração sofre mais uma grande amargura.


Triste regresso


Uma vez um poeta, um tresloucado,
Apaixonou-se d’uma virgem bela;
Vivia alegre o vate apaixonado,
Louco vivia, enamorado dela.

Mas a Pátria chamou-o. Era o soldado,
E tinha que deixar p’ra sempre aquela
Meiga visão, olímpica e singela!
E partiu, coração amargurado.

Dos canhões ao ribombo e das metralhas,
Altivo lutador, venceu batalhas,
Juncou-lhe a fronte aurifulgente estrela,

E voltou, mas a fronte aureolada,
Ao chegar, pendeu triste e desmaiada,
No sepulcro da loura virgem bela.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Não digam que isso passa, que a vida continua, que o tempo ajuda, que ele morreu bem. Não digam nada, não me consolem: da minha dor, sei eu.


Não digam que isso passa


Não digam que isso passa,
não digam que a vida continua,
e que o tempo ajuda,
que afinal tenho filhos e amigos
e um trabalho a fazer.
Não me consolem dizendo que ele morreu cedo
Mas morreu bem ( que não quereria uma morte como essa?)

Não me digam que tenho livros a escrever
e viagens a realizar.
Não digam nada.

Vejo bem que o sol continua nascendo
nesta cidade de Porto Alegre
onde vim lamber minha ferida escancarada.

Mas não me consolem:
da minha dor, sei eu.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Este amor, Amada, move-me de nadas. Este amor tão grande não tem mais palavras, diz Carlos Nejar em sua canção apaixonada.


Canção com harpa dentro


Tenho tanta carga
no olhar sem fronteira,
que já me despeço:
pombo, das roseiras.
Mas ganhei cobiça
quando, amor, sorriste.
Não secaram águas,
nenhum sino ouviu-se.
Grilo, não te cales,
besouros da fala,
chama pelos ares
que a manhã escala.
Cessem como as larvas,
velas, remos, harpas.
Este amor, Amada,
move-me de nadas.
Este amor tão grande
não tem mais palavras.

Carlos Nejar

quinta-feira, outubro 23, 2008

Nos versos de Ricardo Reis, para os deuses as coisas são mais coisas. Não mais longe eles vêem, mas mais claro.


Para os deuses


Para os deuses as coisas são mais coisas.
Não mais longe eles vêem, mas mais claro
Na certa Natureza
E a contornada vida...
Não no vago que mal vêem
Orla misteriosamente os seres,
Mas nos detalhes claros
Estão seus olhos.
A Natureza é uma só superfície.
Na sua superfície ela é profunda
E tudo contém muito
Se os olhos bem olharem.
Aprende, pois, tu, das cristãs angústias,
Ó traidor à multíplice presença
Dos deuses, a não teres
Véus nos olhos nem na alma.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

O amor ficava próximo, muitas vezes ouvíamos sua voz ansiosa. Sabíamos que ele estava triste, queria que fôssemos um único ser, na paixão de Schmidt.


O amor ficava próximo

O amor ficava próximo.
Muitas vezes ouvíamos
Sua voz ansiosa
Procurando se revelar,
Ouvíamos o seu frêmito.
Sabíamos que ele estava triste
Por não rompermos as fronteiras
Que nos separavam.
Ele queria a fusão absoluta
E impossível.
Queria que sentíssemos
indistintamente
Que fôssemos um único ser,
Que nos confundíssemos
E nos penetrássemos.
No entanto, raramente,
Vivíamos a unidade.
Nossas almas pousavam
Raramente no mesmo galho,
E embora vivêssemos no mesmo ninho
Tínhamos consciência de que nos preparávamos
Para os grandes vôos
Solitários.

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Scmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

Quando eu sei que ele vem, eu fecho a porta para a grata surpresa. Vou abri-la como fazem as noivas e as amantes, confessa Adélia Prado.

Os lugares comuns

Quando o homem que ia casar comigo
chegou a primeira vez na minha casa,
eu estava saindo do banheiro, devastada
de angelismo e carência. Mesmo assim,
ele me olhou com os olhos admirados
e segurou a minha mão mais que
um tempo normal a pessoas
acabando de se conhecer.
Nunca mencionou o fato.
Até hoje me ama com amor
de vagarezas, súbitos chegares.
Quando eu sei que ele vem,
eu fecho a porta para a grata surpresa.
Vou abri-la como fazem as noivas
e as amantes. Seu nome é:
Salvador do meu corpo.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, outubro 22, 2008

Meu poema é um tumulto, basta apurar o ouvido. A fala que nele fala outras vozes arrasta em delírio, afirma com convicção Ferreira Gullar.


Muitas vozes


Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.

(estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz:

se dizes pêra
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul disseres
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)

A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores de capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)

a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã

tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esse fósseis à fala

Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Brasil onde vivi, Brasil onde penei. Que milhas de angústia no mar da saudade, que salgado pranto no convés da ausência, canta seu amor Miguel Torga.


Brasil


Brasil
onde vivi,
Brasil onde penei,
Brasil dos meus assombros de menino:
Há quanto tempo já que te deixei,
Cais do lado de lá do meu destino!

Que milhas de angústia no mar da saudade!
Que salgado pranto no convés da ausência!
Chegar.
Perder-te mais.
Outra orfandade,
Agora sem o amparo da inocência.

Dois pólos de atracção no pensamento!
Duas ânsias opostas nos sentidos!
Um purgatório em que o sofrimento
Nunca avista um dos céus apetecidos.

Ah, desterro do rosto em cada face,
Tristeza dum regaço repartido!
Antes o desespero naufragasse
Ente o chão encontrado e o chão perdido.

Miguel Torga
(1907-1995)

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Amar e ser amado, o adorado sonho que Castro Alves acalentou em seu delírio ardente. Ele queria ter só vida para tão puro e celeste sentimento.


Amar e ser amado


Amar e ser amado! Com que anelo
Com quanto ardor este adorado sonho
Acalentei em meu delírio ardente
Por essas doces noites de desvelo!
Ser amado por ti, o teu alento
A bafejar-me a abrasadora frente
Em teus olhos mirar meu pensamento,
Sentir em mim tu'alma, ter só vida
P'ra tão puro e celeste sentimento:
Ver nossas vidas quais dois mansos rios,
Juntos, juntos perderam-se no oceano -,
Beijar teus dedos em delírio insano
Nossas almas unidas, nosso alento,
Confundido também, amante - amado -
Como um anjo feliz...que pensamento!?

Castro Alves
(1847-1871)

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terça-feira, outubro 21, 2008

João Cabral de Melo conta como o mar e os rios do Recife são touros de índole distinta. O mar estoura no arrecife, o rio é um touro que rumina.


As águas do Recife


1

O mar e os rios do Recife
são touros de índole distinta:
o mar estoura no arrecife,
o rio é um touro que rumina.

Quando o touro mar bate forte
nele há o medo de não ficar,
de ter saído, de estar fora,
de quem se recusa a ser mar.

E há no outro touro, o rio,
entre mangues, remansamente,
mil manhas para não partir:
anda e desanda, ainda, sempre.

Mas, se são distintos na ação,
mesma é a razão de seu atuar:
tentam continuar a ser da água
de aquém do arrecife, antemar.

2

Eis por que dentro do Recife
as duas águas vivem lutando,
jogando de queda-de-braço
entre os muros dos cais urbanos.

A que é mar porque, obrigada,
saltou o quebra-mar do porto,
vem, cada maré, desafiar
a água ainda rio para o jogo.

A água que remonta e a que desce
travam então uma queda de braço:
aplicadamente e em silêncio,
equilibradas por espaços.

Um certo instante estão imóveis,
nem maré alta nem baixa, ao par;
até que uma derruba e vence,
e, ao vencer, perder: se exilar.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Ana Cristina Cesar tarde aprendeu que bom mesmo é dar a alma como não lavada. E que não há razão para conservar este fiapo de noite velha.

O homem público nº 1

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

Não penses que não te espero na aparente indiferença. Esta fingida descrença só disfarça desespero, diz Menotti del Picchia em sua canção.

Velha canção

Não penses que não te espero
na aparente indiferença.
Esta fingida descrença
só disfarça desespero.

Se a falsa máscara fria
pudesse quebrar esta ânsia
saberias que a constância
é meu pão de cada dia.

Um pudor duro e severo
esperar desesperado
é o que nutre este pecado
de querer como te quero.

Destarte - tímido louco -
não ouso sondar tua alma
e nesta insofrida calma
dia a dia morro um pouco.

Menotti del Picchia

(1892-1988)

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segunda-feira, outubro 20, 2008

Deixei atrás os erros do que fui e deixei atrás os erros do que quis. Nos versos tristes de Fernando Pessoa, ninguém é exato nem feliz.


Deixei atrás os erros do que fui

Deixei atrás os erros do que fui,
Deixei atrás os erros do que quis
E que não pude haver porque a hora flui
E ninguém é exato nem feliz.

Tudo isso como o lixo da viagem
Deixei nas circunstâncias do caminho,
No episódio que fui e na paragem,
No desvio que foi cada vizinho.

Deixei tudo isso, como quem se tapa
Por viajar com uma capa sua,
E a certa altura se desfaz da capa
E atira com a capa para a rua.

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Os sábios ainda discutem se amor é troca ou entrega louca entre os pequenos e os grandes lábios. Mas Leminski já chegou a uma conclusão.


Donna mi priega 88


se amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios
no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?
a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?


Paulo Leminski
(1944-1989)

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"Ome, me dá esse abacate", só por ter feito o pedido Cora Coralina levou uma coça de chineladas. Naquele tempo era assim.


Sequências


Eu era pequena. A cozinheira Lizarda
tinha nos levado ao mercado, minha irmã, eu.
Passava um homem com um abacate na mão
e eu inconsciente:
“Ome, me dá esse abacate...”
O homem me entregou a fruta madura.
Minha irmã, de pronto: “vou contar pra mãe que ocê
pediu abacate na rua.”
Eu voltava trocando as pernas bambas.
Meus medos, crescidos, enormes...
A denúncia confirmada, o auto, a comprovação do delito.
O impulso materno...conseqüência obscura da
escravidão passada,
o ranço dos castigos corporais.
Eu, aos gritos, esperneando.
O abacate esmagado, pisado, me sujando toda.
Durante muitos anos minha repugnância por esta fruta
trazendo a recordação permanente do castigo cruel.
Sentia, sem definir, a recreação dos que ficaram de fora,
assistentes, acusadores.
Nada mais aprazível no tempo, do que presenciar a
criança indefesa
espernear numa coça de chineladas.
“é pra seu bem,” diziam, “doutra vez não pedi fruita na rua.”

Cora Coralina
(1889-1985)

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sábado, outubro 18, 2008

Branca mulher de olhos claros, onde levou-te o destino que te afastou para longe da minha vista sem vida? Sozinho, Vinicius chora o amor que se foi.


Romanza


Branca mulher de olhos claros
De olhar branco e luminoso
Que tinhas luz nas pupilas
E luz nos cabelos louros
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Andavas sempre sozinha
Sem cão, sem homem, sem Deus
Eu te seguia sozinho
Sem cão, sem mulher, sem Deus
Eras a imagem de um sonho
A imagem de um sonho eu era
Ambos levando a tristeza
Dos que andam em busca do sonho.

Ias sempre, sempre andando
E eu ia sempre seguindo
Pisando na tua sombra
Vendo-a às vezes se afastar
Nem sabias quem eu era
Não te assustavam meus passos
Tu sempre andando na frente
Eu sempre atrás caminhando.

Toda a noite em minha casa
Passavas na caminhada
Eu te esperava e seguia
Na proteção do meu passo
E após o curto caminho
Da praia de ponta a ponta
Entravas na tua casa
E eu ia, na caminhada.

Eu te amei, mulher serena
Amei teu vulto distante
Amei teu passo elegante
E a tua beleza clara
Na noite que sempre vinha
Mas sempre custava tanto
Eu via a hora suprema
Das horas da minha vida.

Eu te seguia e sonhava
Sonhava que te seguia
Esperava ansioso o instante
De defender-te de alguém

E então meu passo mais forte
Dizia: quero falar-te
E o teu, mais brando, dizia:
Se queres destruir... vem.

Eu ficava. E te seguia
Pelo deserto da praia
Até avistar a casa
Pequena e branca da esquina.
Entravas. Por um momento

Esperavas que eu passasse
Para o olhar de boa-noite
E o olhar de até-amanhã.

Uma noite... não passaste.
Esperei-te ansioso, inquieto
Mas não vieste. Por quê?

Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho
Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Branca mulher de olhos claros
Minha alma ainda te deseja
Traze ao meu passo cansado
A alegria do teu passo
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Meia-noite amarela de sexta-feira, com lua-cheia, na meia quaresma, no pequeno arraial. Latiram ao longe: foi a noite soltando os seus cachorros.

Assombramento

Meia-noite amarela de sexta-feira,
com lua cheia, na meia quaresma,
no pequeno arraial.

Tinidos secos de matracas,
gente cantando orações tétricas
em frente das cruzes das encruzilhadas,
pedindo ao povo que está dormindo
rezas para as almas do purgatório
que elas estão encomendando.

E logo atrás vêm vultos brancos,
almas penadas sussurrando,
com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas.

Mulas-sem-cabeça galopam doidas
pelas estradas,
queimando o capim com as chispas dos cascos.
Há lobizomens uivando,
na velha igreja tábias rangendo,
caixões pretos junto das cruzes,
mortalhas largadas diante das portas,
uma mulher longa sentando nos telhados,
e o Pitorro, assentado no morro,
de chapéu na cabeça, cachimbando.
Por entre as sepulturas,
o fogo-fátuo de fósforo escorre:
é um grande raio da luz amarela.
que desceu, por engano, ao cemitério,
e lá vai fugindo,
assombrado, amedrontado,
sem tempo de subir.
Latiram ao longe:
foi a noite soltando os seus carrochos
"Corta-Vento", "Rompe-Ferro", "Acorda-a-Tempo",
para o socorrer...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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Guilherme de Almeida quis fazer a canção das mulherinhas do seu tempo. A canção beige, uma canção sem intenção, inconsequente como um flirt.


Canção beige


Eu quero fazer a canção
das mulherinhas do meu tempo:
a canção beige, por exemplo,
mole, de lã, morna, sem cor,
quase sem rimas, sem amor,
sem nem um pouco de emoção,
como o esportivo coração
ou como os jerseys, por exemplo,
das mulherinhas do meu tempo.

Porque este é o tempo do cocktail
batido no último black-bottom.
Todas as coisas se desbotam
dentro do copo, todas são
iguais: a casca de limão,
a uva, a cereja...E, no hall do hotel,
no bar, as flores de Chanel
também rodinhas se desbotam
batidas no último black-bottom.

Esta é a canção sem intenção
e inconsequente como um flirt:
a canção beige que reflete
essas bonecas de kasha
jogando golf, tomando chá,
folheando o Vogue...Esta é a canção
em que a apagada sedução
da vida de hoje se reflete
inconsequente como um flirt.

Rádio, grill-room, sports, films e jazz...
Meu lindo século de feltro,
justo no mundo e liso e neutro
como chapéus numa porção
de cabecinhas (que ainda são
a causa louca que me faz
pensar numa canção capaz
de degradar esse tom neutro
do lindo século de feltro...).

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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sexta-feira, outubro 17, 2008

No pensamento meu, amor, tu vives nua, toda nua, nos meus braços. E te amo como se ama um passarinho morto, diz toda a paixão de Manuel Bandeira.


Boda espiritual


Tu não estás comigo em momentos escassos:
No pensamento meu, amor, tu vives nua
- Toda nua, pudica e bela, nos meus braços.

O teu ombro no meu, ávido, se insinua.
Pende a tua cabeça. Eu amacio-a...afago-a
Ah, como a minha mão treme...Como ela é tua...

Põe no teu rosto o gozo uma expressão de mágoa.
O teu corpo crispado alucina. De escorço
O vejo estremecer como uma sombra nágua.

Gemes quase a chorar. Súplicas com esforço.
E para amortecer teu ardente desejo
Estendo longamente a mão pelo teu dorso...

Tua boca sem voz implora em um arquejo.
Eu te estreito cada vez mais, e espio absorto
A maravilha astral dessa nudez sem pejo...

E te amo como se ama um passarinho morto.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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Manoel de Barros, por certo, não sabe medir a importância das coisas, mas alguém sabe? Ele só quer construir nadeiras para botar em suas palavras.


Sobre importâncias


Uma rã se achava importante
Porque o rio passava nas suas margens.
O rio não teria grande importância para a rã
Porque era o rio que estava ao pé dela.
Pois Pois.
Para um artista aquele ramo de luz sobre uma lata
desterrada no canto de uma rua, talvez para um
fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais
importante do que o esplendor do sol nos oceanos.
Pois Pois.
Em Roma, o que mais me chamou a atenção foi um
prédio que ficava em frente das pombas.
O prédio era do estilo bizantino do século IX.
Colosso!
Mas eu achei as pombas mais importantes do que o
prédio.
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Eu, por certo, não saberei medir a importãncia das
coisas: alguém sabe?
Eu só queria construir nadeiras para botar nas
minhas palavras.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Em versos de revolta, Sophia de Mello Breyner lembra todos os que ousam lutar contra a opressão e são destruídos. É seu pranto feito pelo dia de hoje.


Pranto feito pelo dia de hoje


Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

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quinta-feira, outubro 16, 2008

Nos versos de Neruda, morre-se lentamente muitas vezes numa vida. E somente a ardente paciência fará com que conquistemos uma explêndida felicidade.


¿Quién muere?


Muere lentamente...
quien se transforma en esclavo del hábito,
repitiendo todos los días los mismos trayectos,
quien no cambia de marca,
no arriesga vestir un color nuevo
y no le habla a quien no conoce.

Muere lentamente...
quien hace de la televisión su gurú.

Muere lentamente...
quien evita una pasión,
quien prefiere el negro sobre blanco y los puntos sobre las íes
a un remolino de emociones,
justamente las que rescatan el brillo de los ojos,
sonrisas de los bostezos, corazones a los tropiezos y sentimientos.

Muere lentamente...
quien no voltea la mesa cuando está infeliz en el trabajo,
quien no arriesga lo cierto por lo incierto para ir detrás de un sueño,
quien no se permite por lo menos una vez en la vida,
huir de los consejos sensatos.

Muere lentamente...
quien no viaja,
quien no lee, quien no oye música,
quien no encuentra gracia en sí mismo.

Muere lentamente...
quien destruye su amor propio,
quien no se deja ayudar.

Muere lentamente...
quien pasa los días quejándose de su mala suerte
o de la lluvia incesante.

Muere lentamente...
quien abandona un proyecto antes de iniciarlo,
no pregunta de un asunto que desconoce
o no responde cuando le indagan sobre algo que sabe.

Evitemos la muerte en suaves cuotas,
recordando siempre que estar vivo
exige un esfuerzo mucho mayor
que el simple hecho de respirar.

Solamente la ardiente paciencia hará que conquistemos una espléndida felicidad.

Pablo Neruda
(1904-1973)

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Nada perdi, como posso perder o que nunca tive? Vivo a vida do meu sonho, meu sonho de sonho vive, diz Thiago de Mello.


Fulgor de sonho


De tudo o que já me deu
agradeço à vida o sonho
da rosa que não ganhei.

Minha mão não alcançou
a estrela que desejei
Seu fulgor o sonho inventa

invisível no meu peito.
O navio embandeirado
que espero desde criança

está custando a chegar.
Não faz mal, canta o meu sonho,
as águas que ele navega

sabem a sal de esperança.
Nada perdi...Como posso
perder o que nunca tive?

Vivo a vida do meu sonho,
meu sonho de sonho vive.

Thiago de Mello

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Nada me expira já, nada me vive, nem a tristeza nem as horas belas. Fartam-me até as coisas que não tive, diz além do tédio um endurecido Sá-Carneiro.


Além-tédio


Nada me expira já, nada me vive
Nem a tristeza nem as horas belas
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.

Como eu quisera, enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.

Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.

Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruíu...Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!

Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda em remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.

E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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terça-feira, outubro 14, 2008

Estarei só. Não por separada, não por evadida, pela natureza de ser só, define-se com coragem Cecília Meireles.


Da solidão


Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só.

No entanto a multidão tem sua música,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes!

Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua música,
seu ritmo, seu calor.

Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silêncio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as árvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar,
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós:
como a noção que temos de nós.

E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava - Solidão - e seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava...

Solidão - dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
como escadas, essas plataformas, essas pedras...
E deitava-se sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim - aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto - deitava-me nos ares
onde quer que estivesse deitada.

Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões.

Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas é tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.

Cecília Meireles
(1901-1964 )

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Eu vou por onde vou, vou pelas esquinas da treva, Copacabana acabou. Em versos, Paulo Mendes Campos caminha pelos encantos e mazelas do seu bairro.


Copacabana 1945


Ele é que é cheio, eu sou oco.

I

As fichas finais do jogo
foram recolhidas: fecha-se
o cassino; abre-se em fogo

o coração que devora.
Vejo em vez de eternidade
no relógio minha hora.

E se quiser vejo a tua.
Às cinco tinhas encontro
num cotovelo de rua.

As cigarras do verão
tiniam quando sugavas
teu uísque com sifão.

Às onze no Wunder Bar
por meio acaso encontravas
a mulher que anda no ar.

Às três no Copacabana
uma torpeza uterina
pestana contra pestana.

Às quatro e pouco saías,
comias um boi às cinco,
às seis e meia morrias.

Às duas ressuscitavas,
às cinco tinhas encontro,
às sete continuavas.

II

A mensagem abortada
de Copacabana perde-se
na viração: não é nada.

Morre um homem na polícia.
Tantos casos. Não é nada:
os jornais dão a notícia.

Uma criança que come
restos na lata de lixo
não é nada: mata a fome.

Não é nada. A favela
pega fogo. Não é nada:
faz-se um samba para ela.

Um moço mata a família
e se mata. Não é nada:
poupa o drama à tua filha.

Uma menina estuprada.
Uma virgem cai do céu.
Nada. Copacabanada.

III

Dava um doce calafrio
no esmalte azul recortado
subito à tarde um navio.

O mistério transparente
do navio que passava
é ter tornado presente:

por fantasia do fado
naquele tempo ao passar
já parecia passado.

Quando ele achava o caminho
na ponta do Arpoador
eu ficava mais sozinho.

Pois um homem-gaivota
segue um barco, mesmo quando
não lhe conhece a derrota.

Latitude, longitude
compasso de meu exílio...
Um homem sempre se ilude.


E quando o mar sem navio
ficava, eu olhava para trás
e me embrulhava no Rio.

IV

Anoitecia em cristais,
em paz de pluma tornando
à dor de Minas Gerais.

A dor que dá mas devora
como um blues comercial
no carro, quando é a hora.

E quando à janela o cone
de sombra me abismava
eu ligava o telefone.

Esse aparelho surdia
da ramagem de meus brônquios,
negra liana, e subia

em tropismos machucados,
pelas calhas do silêncio,
pelos terraços pasmados,

pela traquéia das áreas,
como tromba de elefante
ou aranhas solitárias

articuladas ao fio,
como língua de serpente
a vasculhar o vazio,

a buscar qualquer canal
de anou (ou fosse miragem!)
no deserto vertical.

V

Às vezes chegava a lua
no despudor deslumbrante
da mulher que chega nua.

A mulher transvertebrada
entornando-se amorosa
nas vagas da madrugada.

Algumas foram no peito
do casto lençol do céu
para o cosmo do teu leito.

VI

Copacabana, golfão
sexual: soma dois corpos
mas divide solidão.

VII

Pelas piscinas suspensas,
pelas gargantas dos galos,
pelas navalhas intensas,

pelas trades comovidas,
pelos tamborins noturnos,
pelas pensões abatidas,
eu vou por onde vou; vou
pelas esquinas da treva:
Copacabana acabou.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991 )

Mais sobre Paulo Mendes Campo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

Mauro Mota viaja em suas lembranças das Assombrações do Recife velho. De arrepiar, até para quem nunca esteve lá.


Assombrações do Recife velho


Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.

Fantasmas, rumores
na cama, estilhaços.

Apagam-se os lampiões
de bicos de gás
e as lamparinas
de azeite no quarto.

As rezas das tias,
velas no oratório.
A noite comprida
não acaba mais.

Cavalos, boleeiros,
de fraque e cartola
nas ruas vazias.

A moça encantada
no Encanta-Moça.

O Sobrado-Grande
com assombração.

A ronda do Diabo
na Cruz do Patrão
com fogo nos chifres,
correndo no istmo
de Olinda ao Recife.

Canoas sem remo
no Capibaribe.

Uivos dos cachorros
no fundo dos sítios
e dos lobizomens
pegando as mulheres
na Volta ao Mundo.

Mauro Mota
(1911-1984 )

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

segunda-feira, outubro 13, 2008

Para Quintana, nada mais triste do que uma boneca morta ou um vestido de noiva numa casa de penhores. E não encontrar rimas quando se escreve versos.


Um poema?


No mundo não há nada mais triste do que uma boneca morta...
Talvez porque sua mãezinha tenha morrido de parto!
Ou encontrar um vestido de noiva numa casa de penhores
ou começar cheio de rimas quando se escreve em prosa
Ou não encontrar rimas quando se escreve em versos
(Também, quem me mandou escrever clássico?!)
Bendita seja a Isadora Duncan que inventou o verso livre da dança!
Só não sei,
Mesmo,
o que eu queria dizer com tudo isso...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

No famoso poema de Machado de Assis, toda a questão do exercício do poder. E quem não conhece alguém que já foi picado pela tal mosca azul?

A mosca azul

Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Indostão.
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada.
Em certa noite de verão.

E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua — melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.

Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
— "Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
Dize, quem foi que te ensinou?"

Então ela, voando e revoando, disse:
— "Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor".

E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo
E tranqüilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.

Entre as asas do inseto a voltear no espaço,
Uma coisa me pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço,
Eu vi um rosto que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vixnu.

Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.

Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios.
Voluptuosamente nus.

Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e os parabéns unidos
Das coroas ocidentais.

Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.

Então ele, estendendo a mão calosa e tosca.
Afeita a só carpintejar,
Com um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.

Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.

Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.

Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.

Hoje quando ele aí cai, de áloe e cardamomo
Na cabeça, com ar taful
Dizem que ensandeceu e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.

Machado de Assis

(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis


Em um de seus mais belos poemas, Camões lamenta a morte de sua amada. Com toda a dor que ficou da mágoa, sem remédio, de perdê-la.


Alma minha gentil que te partiste


Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Alguma cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luis Vaz de Camões
(1524-1580)

Mais sobre Luis Vaz de Camões em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es

domingo, outubro 12, 2008

Um dia, num restaurante, serviram-me o amor como dobrada fria. Mas, pergunta Álvaro de Campos, se eu pedi amor, por que é que a trouxeram fria?


Dobrada à moda do Porto

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...

(Sei bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio.
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1889-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa





Dei tudo que era meu, fiquei apenas com o que tem de toda a gente em mim. E me sinto maior, igual aos homens iguais, diz Mário de Andrade.


Aspiração


Doçura da pobreza assim...
Perder tudo que é seu, até o egoísmo de ser seu,
Tão pobre que possa apenas concorrer pra multidão...
Dei tudo que era meu, me gastei no meu ser,
Fiquei apenas com o que tem de toda a gente em mim...
Doçura da pobreza assim...
Nem me sinto mais só,
dissolvido nos homens iguais!
Eu caminhei. Ao longo do caminho,
Ficava no chão orvalhado da aurora,
A marca empreoda dos meus passos.
Depois o Sol subiu, o calor vibrou no ar
Em partículas de luz doirando e sopro quente.
O chão queimou-se e endureceu.
Sinal dos meus pés é invisível agora...
Mas sobra a Terra, a Terra carinhosamente muda,
E crescendo, penando, finando na Terra,
Os homens sempre iguais...
E me sinto maior, igualando-me aos homens iguais!...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar. Mas não podem privatizar o que só à humanidade pertence, grita Brecht.

Privatizado

Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar.
É da empresa privada o seu passo em frente,
seu pão e seu salário.
E agora não contente querem privatizar o conhecimento, a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence.

Bertolt Brecht

(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht



sábado, outubro 11, 2008

Manuel Bandeira & Tom Jobim, em "O trem de ferro", por Olívia Hime & Tom Jobim.


Trem de ferro

Café com pão
Café com pão
Café com pão

Virgem Maria que foi isto maquinista?

Agora sim
Café com pão
Agora sim
Café com pão

Voa, fumaça
Corre, cerca
Ai seu foguista
Bota fogo
Na fornalha
Que eu preciso
Muita força
Muita força
Muita força

Oô..
Foge, bicho
Foge, povo
Passa ponte
Passa poste
Passa pato
Passa boi
Passa boiada
Passa galho
De ingazeira
Debruçada
Que vontade
De cantar!

Oô...
Quando me prendero
No canaviá
Cada pé de cana
Era um oficia
Ôo...
Menina bonita
Do vestido verde
Me dá tua boca
Pra matá minha sede
Ôo...
Vou mimbora voou mimbora
Não gosto daqui
Nasci no sertão
Sou de Ouricuri
Ôo...

Vou depressa
Vou correndo
Vou na toda
Que só levo
Pouca gente
Pouca gente
Pouca gente...

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em




De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Angela Ro Ro, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção V".


Link para download do poema no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/5366556-672

Canção V

Quando Beatriz e Caiana te perguntarem, Dionísio,
Se me amas, podes dizer que não. Pouco me importa
Ser nada a tua volta, sombra, coisa esgarçada
No entendimento de tua mãe e irmã. A mim me importa,
Dionísio, o que dizes deitado, ao meu ouvido
E o que tu dizes nem pode ser cantado
Porque é palavra de luta e despudor.
E no meu verso se faria injúria
E no meu quarto se faz verbo de amor.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

Ao contrário dos ricos banqueiros, Mayakovsky sabe que sozinho não pode carregar nem um cofre-forte. Por isso, depositou nela todo o seu amor.


Impossível

Sozinho não posso
carregar um piano
e menos ainda um cofre-forte.
Como poderia então
retomar de ti meu coração
e carregá-lo de volta?
Os banqueiros dizem com razão:
"Quando nos faltam bolsos,
nós que somos muitíssimo ricos,
guardamos o dinheiro no banco".
Em ti
depositei meu amor,
tesouro encerrado em caixa de ferro,
e ando por aí
como um Creso contente.
É natural, pois,
quando me dá vontade,
que eu retire um sorriso,
a metade de um sorriso
ou menos até
e indo com as donas
eu gaste depois da meia-noite
uns quantos rublos de lirismo à toa.

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

sexta-feira, outubro 10, 2008

Todo sentimento, Drummond pergunta ao velho poeta para onde ele vai, a que Pasárgada, a que abrigo? Ao meu destino, foi a resposta.


O chamado


Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples criatura
exposta aos ventos da cidade.

Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.

E pergunto ao poeta, pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai - a que angra serena,
a que Pasárgada, a que abrigo?

A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que, sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu destino.

E foi-se para onde a intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam, sem que ninguém
pressentisse, em torno, o Chamado.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Tudo cai, tudo tomba, derrocada pavorosa! Os versos de Florbela Espanca parecem muito atuais, mas têm a ver apenas com o pavoroso mal de ser sozinha.


Loucura

Tudo cai! Tudo tomba! Derrocada
Pavorosa! Não sei onde era dantes.
Meu solar, meus palácios, meus mirantes!
Não sei de nada, Deus, não sei de nada! ...

Passa em tropel febril a cavalgada
Das paixões e loucuras triunfantes!
Rasgam-se as sedas, quebram-se os diamantes!
Não tenho nada, Deus, não tenho nada! ...

Pesadelos de insônia, ébrios de anseio!
Loucura a esboçar-se, a enegrecer
Cada vez mais as trevas do meu seio!

Ó pavoroso mal de ser sozinha!
Ó pavoroso e atroz mal de trazer
Tantas almas a rir dentro da minha!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Hoje, os lindos versos de desejo de Álvares de Azevedo podem até ser considerados muito castos. Mas na época revelavam todo o ardor de sua paixão.

Meu desejo

Meu desejo? era ser a luva branca
Que essa tua gentil mãozinha aperta:
A camélia que murcha no teu seio,
O anjo que por te ver do céu deserta....

Meu desejo? era ser o sapatinho
Que teu mimoso pé no baile encerra....
A esperança que sonhas no futuro,
As saudades que tens aqui na terra....

Meu desejo? era ser o cortinado
Que não conta os mistérios do teu leito;
Era de teu colar de negra seda
Ser a cruz com que dormes sobre o peito.

Meu desejo? era ser o teu espelho
Que mais bela te vê quando deslaças
Do baile as roupas de escomilha e flores
E mira-te amoroso as nuas graças!

Meu desejo? era ser desse teu leito
De cambraia o lençol, o travesseiro
Com que velas o seio, onde repousas,
Solto o cabelo, o rosto feiticeiro....

Meu desejo? era ser a voz da terra
Que da estrela do céu ouvisse amor!
Ser o amante que sonhas, que desejas
Nas cismas encantadas de languor!

Álvares de Azevedo

(1831-1852)

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quarta-feira, outubro 08, 2008

Tenho fases como a lua, fases de andar escondida, fases de vir para a rua. Tenho fases de ser tua, tenho outras de ser sozinha, no lamento de Cecília.


Lua adversa


Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Aqui morava um rei, diz Ariano, quando eu menino vestia ouro e castanho no gibão.E Pedra da Sorte sobre meu Destino pulsava junto ao meu, seu coração.


Aqui morava um rei


Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

O amor de agora é o mesmo amor de outrora. E sinto na vida qualquer coisa de agora mas de eterno, diz em belos versos Dante Milano.


O amor de agora é o mesmo amor de outrora


O amor de agora é o mesmo amor de outrora
Em que concentro o espírito abstraído,
Um sentimento que não tem sentido,
Uma parte de mim que se evapora.
Amor que me alimenta e me devora,
E este pressentimento indefinido
Que me causa a impressão de andar perdido
Em busca de outrem pela vida afora.
Assim percorro uma existência incerta
Como quem sonha, noutro mundo acorda,
E em sua treva um ser de luz desperta.
E sinto, como o céu visto do inferno,
Na vida que contenho mas transborda,
Qualquer coisa de agora mas de eterno.

Dante Milano
(1899-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

terça-feira, outubro 07, 2008

É a morte que te chama, que se passa, poeta, adiaste o futuro? Assim, Gullar questiona a poesia que não luta mais pela esperança de uma vida melhor.


Omissão


Não é estranho
que um poeta político
dê as costas a tudo e se fixe
em três ou quatro frutas que apodrecem
num prato
em cima da geladeira
numa cozinha da Rua Duvivier?

E isso quando vinte famílias
são expulsas de casa na Tijuca,
os estaleiros entram em greve em Niterói
e no Atlântico Sul começa
a guerra das Malvinal.

Não é estranho?
por que então
mergulho nessa minicatástrofe
doméstica
de frutas que morrem
e que nem minhas parentas são?
por que
me abismo
no sinistro clarão dessas formas
outrora coloridas
e que nos abandonam agora inapelavelmente
deixando a nossa cidade
com suas praias e cinemas
deixando a casa
onde frequentemente toca o telefone?
para virar lama.

II

É compreensível que tua pele se ligue à pele dessas frutas que apodrecem
pois ali
há uma intensificação do espaço, das forças
que trabalham dentro da polpa
(enferrujando na casca
a cor
em nódoas negras)
e ligam
uma tarde a outra tarde e a outra ainda
onde
bananas apodreceram
subvertendo a ordem da história humana, tardes
de hoje e de ontem
que são outras cada uma em mim
e a mesma talvez
no processo noturno da morte nas frutas
e que te ligam a ti através das décadas
como um trem que rompe a noite
furiosamente dentro
e em parte alguma

- é compreensível
que dês as costas à guerra das Malvinas
à luta de classes
e te precipites nesse abismo
de mel
que o clarão do açúcar nos cega
e diverte ser espectador da morte, que é também a nossa,
e que nos atrai com sua boca de lama sua vagina
de nada
por onde escorregamos docemente no sono
e é bom morrer
no teatro
vendo morrer
pêras ardendo
na sua própria fúria
e urinando
e afundando em si mesmas
a converter-se em mijo, a pêra, a banana ou o que seja
e assistes
à hecatombe
no prato
sob uma nuvem de mosquitos

e nao ouves o clamor da vida
aqui fora
na rua na fábrica na favela do Borel
não ouves
o tiro que matou Palito
e não ouves, poeta,
o alarido da multidão que pede emprego
(são dois milhões sem trabalho
há meses
sem ter como dar de comer à família
e cuja história
é assunto arredio ao poema).

É a morte que te chama?
É tua própria história
reduzida ao inventário de escombros
no avesso do dia
e não mais a esperança
de uma vida melhor?
que se passa, poeta?
adiaste o futuro?

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Quando ouvires a goteira caindo sobre o triste chão, serei eu que estou batendo na pedra do teu coração. Com amor, de Cassiano Ricardo para sua amada.


O tocador de clarineta


Quando ouvires o pássaro
Cantar em frente do teu quarto,
Naturalmente em vão,
não penses
que sou eu que aí vim tocar,
não.

Quando o vento disser,
ao teu ouvido de mulher
uma palavra
branca e fria como a cerração,
não penses que o vento fui eu,
não.

Quando receberes
uma carta anônima, trazida
por secreta mão
- quem será que assim me acusa? -
eu é que não serei,
não.

Quando ouvires, porém, no escuro,
a goteira caindo
sobre o triste chão, aí, então,
serei eu que estou batendo
na pedra
do teu coração.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

Dois corpos, frente a frente, são às vezes duas ondas e a noite é oceano. Às vezes, são navalhas e a noite relâmpago, no belo poema de Octavio Paz.


Dos cuerpos


Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos olas
y la noche es océano.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces dos piedras
y la noche desierto.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces raíces
en la noche enlazadas.

Dos cuerpos frente a frente
son a veces navajas
y la noche relámpago.

Octavio Paz
(1914-1998)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Octavio_Paz

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges. O que me dás, dás-mo, tanto me basta, diz um resignado Ricardo Reis.


Não sei se é amor que tens


Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,
O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.
Já que o não sou por tempo,
Seja eu jovem por erro.
Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.
Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva
É verdadeira. Aceito,
Cerro olhos: é bastante.
Que mais quero?

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Ana Cristina Cesar sai à revelia e procura uma síntese nas demoras. E demite o verbo como quem acena e vive como quem despede a raiva de ter visto.


Psicografia


Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração não soube e digo
da palavra não digo
(não posso ainda acreditar na vida)
e demito o verso como quem acena e
vivo como quem despede a raiva de ter visto.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

A solidão povoada de instrumentos era uma carga enorme e sem sentido. Um silêncio magoado e impermeável, no sentimento de Carlos Pena Filho.


A solidão e o seu desgaste


Freqüentador da solidão, às vezes
Jogava ao ar um desespero ou outro,
Mas guardava os menores objetos
Onde a vida morava e o amor nascia.

Era uma carga enorme e sem sentido,
Um silêncio magoado e impermeável...
A solidão povoada de instrumentos,
Roubando espaço à andeja liberdade.

Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele
Passeia pelos campos e os despreza
E porque sabe com certeza clara,

O princípio e o fim da coisa amada,
Guarda pouco da vida e o que retém
É só pelo impossível de eximir-se.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

segunda-feira, outubro 06, 2008

Em momento de reflexão sobre o amor, Mario Quintana diz que a vida é louca, o mundo é triste. E pergunta, vale a pena matar-se por isso?

Nunca ninguém sabe

Nunca ninguém sabe se estou louco para rir ou para chorar.
Por isso o meu verso tem
Esse quase imperceptível temor...
A vida é louca, o mundo é triste:
Vale a pena matar-se por isso?
Nem por ninguém!
Só se deve morrer de puro amor...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em um dos seus mais importantes poemas, John Doone enaltece a Vida ao desafiar a Morte. E diz, com raiva: Morte, tu deverás morrer.


Death, be not proud

Death, be not proud, though some have called thee
Mighty and dreadful, for thou are not so;
For those whom thou think’st thou dost overthrow
Die not, poor Death, nor yet canst thou kill me.

From rest and sleep, which but thy pictures be,
Much pleasure; then from thee much more must flow,
And soonest our best men with thee do go,
Rest of their bones, and soul’s delivery.

Thou’art slave to fate, chance, kings, and desperate men,
And dost with poison, war, and sickness dwell,
And poppy’or charms can make us sleep as well

And better than thy stroke; why swell’st thou then?
One short sleep past, we wake eternally,
And death shall be no more; Death, thou shalt die.

John Doone

(1572-1631)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Donne

Nem só do teu silêncio direi raiva, nem de todo o meu corpo direi vício. E apenas do teu pênis direi ter sido, diz uma ousada Maria Tereza Horta.


Nem só

Nem só do teu silêncio
direi raiva
Nem de todo o meu corpo
direi vício

nem de todo o pênis
direi arma
e apenas do teu direi ter sido

Quando o vácuo é de
vingar
ou de vergar
cravando sobre os seios a sua enxada

Quando a minha boca se conjuga
no baixo do teu ventre
e tua espada...

nem de todo o desejo
direi verão
nem de todo o grito
a tua imagem

nem de toda a ausência
direi chão
e só de teus flancos
a viagem

Maria Tereza Horta

Mais sobre Maria Tereza Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

domingo, outubro 05, 2008

Vinicius de Moraes não foi apenas um grande romântico a cantar o amor em prosa e verso. Ele também foi um homem voltado para as lutas do nosso povo.

Sacrifício

Num instante foi o sangue, o horror, a morte na lama do chão.
– Segue, disse a voz. E o homem seguiu, impávido
Pisando o sangue do chão, vibrando, na luta.
No ódio do monstro que vinha
Abatendo com o peito a miséria que vivia na terra
O homem sentiu a própria grandeza
E gritou que o heroísmo é das almas incompreendidas.

Ele avançou.
Com o fogo da luta no olhar ele avançou sozinho.
As únicas estrelas que restavam no céu
Desapareceram ofuscadas ao brilho fictício da lua.
O homem sozinho, abandonado na treva
Gritou que a treva é das almas traídas
E que o sacrifício é a luz que redime.

Ele avançou.
Sem temer ele olhou a morte que vinha
E viu na morte o sentido da vitória do Espírito.
No horror do choque tremendo
Aberto em feridas o peito
O homem gritou que a traição é da alma covarde
E que o forte que luta é como o raio que fere
E que deixa no espaço o estrondo da sua vinda.

No sangue e na lama
O corpo sem vida tombou.
Mas nos olhos do homem caído
Havia ainda a luz do sacrifício que redime
E no grande Espírito que adejava o mar e o monte
Mil vozes clamavam que a vitória do homem forte tombado na luta
Era o novo Evangelho para o homem da paz que lavra no campo.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 04, 2008

Vai pela sombra o desejo desespero de voltar antes mesmo de ir-me. Antes de me transformar em outro ou em outro transformar-me, sabe lá Leminski.


Sei lá


vai pela sombra, firme,
o desejo desespero de voltar
antes mesmo de ir-me
antes de cometer o crime,
me transformar em outro
ou em outro transformar-me
quem sabe obra de arte,
talvez, sei lá, falso alarme,
grito caindo no poço,
neste pouco poço nada vejo nem ouço,
mais mais mais
cada vez menos

poder isso, sinto, é tudo que posso,
o tão pouco tudo que temos

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Em sua Oração por Marilyn Monroe, Ernesto Cardenal pede ao Senhor que atenda a última ligação dela. A única ligação que Marilyn fez e ninguém atendeu.


Oración a Marilyn Monroe


Senõr
recibe a esta muchacha conocida en toda la tierra com el nombre de Marilyn Monroe
aunque ese no era su verdadero nombre
(pero Tu conoces su verdadero nombre, el de la huerfanita violada a los 9 anos
y la empleadita de tienda que a los 16 se habia querido matar)
y que ahora se presenta ante Ti sin ningún maquillaje
sin su Agente de Prensa sin fotógrafos
y sin firmar autógrafos
sola como un astronauta frente a la noche espacial.

Ella soño quando niña que estaba desnuda en una Iglesia (según cuente El Time)
ante una multitud prostrada con las cabezas en el suelo
y tenia que caminar em puntillas para no pizar las cabezas.
Tu conoces nuestros sueños mejor que los psiquiatras.
Iglesia, casa, cueva, son la seguridad del seno materno
pero también algo más que eso...
Las cabezas son los admiradores, es claro
(la masa de cabezas en la obscuridad bajo el chorro de luz).
Pero el templo no son los estudios de la 2oth Century Fox.
El templo - de mármol y oro - es el templo de su cuerpoen el que está el Hijo del Hombre com um látigo en la mano
expulsando a los mercaderes de la 2oth Century Fox
que hicieron de Tu casa de oración una cueva de ladrones.

Señor
en este mundo contaminado de pecados y radioactividad
Tu no culparás tan sólo a una empleadita de tienda,
que como toda empleadita soñó ser estrella de cine.
Y el sueño fue realidad (pero como la realidad del technicolor).
Ella no hizo sino actur según el script que le dimos
- El de nuestras proprias vidas - Y era un script absurdo. Perdónala Señor y perdónanos a nosotros
por nuestra 20th Centyry
por esta Colosal Super-Producción en la que todos hemos trabajado.

Ella tenia hambre de amor y le oferecimos tranquilizantes.
Para la tristeza de no ser santos se le recomendó el Psicoanálisis
Recuerda Señor su creciente pavor a la cámara
y el odio al maquillaje - insistiendo en maquillarse em cada escena - y como se fue haciendo mayor el horrory mayor la impontualidad a los estudios.

Como toda empleadita de tienda
soñó ser estrella de cine.
Y su vida fue irreal como un sueño que psiquiatra y archiva.

Sus romances fueron un beso com los ojos cerrados
que cuando se abren los ojos
se descubre que fue bajo los reflectores y apagan los reflectores!
y desmontan las dos paredes del aposento (era un set cinematográfico)
mientras el Director se aleja con su libreta porque la escena ya fue tomada.
O como un viaje en yate, un beso en Singapur, un baile en Rio
la recepción en la mansión del Duque y la Duquesa de Windsor
vistos en la salita del apartamento miserable.
La pelicula terminó sin el beso final.
La hallaron muerta en su cama con la mano en el teléfono.
Y los detetives no supieron a quién iba a llamar.
Fue
como alguien que ha marcado el número de la única voz amiga
y oye tan solo la voz de un disco que le dice: WRONG NUMBER
O como alguien que herido por los gangsters
alarga la mano a un teléfono desconectado.

Senõr
quienquiera que haya sido el que ella iba a llamar
y no llamó (y tal vez no era nadie
o era Alguien cuyo número no está en el Directorio de Los Angeles)
contesta Tú el telefono!

Ernesto Cardenal

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