terça-feira, junho 30, 2009

Manuel Bandeira saiu menino de sua terra. E quando lhe diziam que o Recife estava completamente mudado, seu coração ficava pequenino.


Minha terra


Saí menino de minha terra.
Passei trinta anos longe dela.
De vez em quando me diziam:
Sua terra está completamente mudada,
Tem avenidas, arranha-céus...
É hoje uma bonita cidade!

Meu coração ficava pequenino.

Revi afinal o meu Recife.
Está de fato completamente mudado.
Tem avenidas, arranha-céus.
É hoje uma bonita cidade.

Diabo leve quem pôs bonita a minha terra!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Em doces noites, Schmidt conheceu a felicidade inconsciente, a inconsciência feliz. E diz, tudo passou, só eu sou o mesmo, ainda: não mudei.


Noites, estranhas noites, doces noites!


Noites, estranhas noites, doces noites!
A grande rua, lampiões distantes,
Cães latindo bem longe, muito longe.
O andar de um vulto tardo, raramente.

Noites, estranhas noites, doces noites!
Vozes falando, velhas vozes conhecidas.
A grande casa; o tanque em que uma cobra,
Enrolada na bica, um dia apareceu.

A jaqueira de doces frutos, moles, grandes.
As grades do jardim. Os canteiros, as flores.
A felicidade inconsciente, a inconsciência feliz.

Tudo passou. Estão mudas as vozes para sempre.
A casa é outra já, são outros os canteiros e as flores
Só eu sou o mesmo, ainda: não mudei!

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

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segunda-feira, junho 29, 2009

Sem o suor, a vida não seria luta, nem o amor amor. Segundo José Saramago, é assim mesmo a arte de amar, como já diziam os antigos.


Arte de Amar


Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.

José Saramago

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago

Para Paulo Leminski, de ilusão em ilusão, até a desilusão é um passo sem solução. Quem parece são não é, e os que não parecem são.


Luz versus luz


de ilusão em ilusão
até a desilusão
é um passo sem solução
um abraço
um abismo
um
soluço
adeus a tudo que é bom

quem parece são não é
e os que não parecem são

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

domingo, junho 28, 2009

Verdade, mentira, certeza, incerteza... Qualquer coisa mudou numa parte da realidade, nada é igual. Para Alberto Caeiro, ser real é isto.


Verdade, mentira


Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degraus alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade, mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade - os meus joelhos
e as minhas mãos.
Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

A uma senhora que lhe pediu uns versos, Machado de Assis ofereceu muito mais. Um conselho simples e profundo: pensa em ti mesma.


A uma senhora que me pediu uns versos


Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.

Machado de Assis
(1839-1908)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

sábado, junho 27, 2009

Ela é antecipação do último filme que João Cabral de Melo assistirá. Porque ela faz calar os astros, os rádios e as multidões na praça pública.


Dois estudos


I

Tu és a antecipação
do último filme que assistirei.
Fazes calar os astros,
os rádios e as multidões na praça pública.
Eu te assisto imóvel e indiferente.
A cada momento tu te voltas
e lanças no meu encalço
máquinas monstruosas que envenenam reservatórios
sobre os quais ganhaste um domínio de morte.
Trazes encerradas entre os dedos
reservas formidáveis de dinamite
e de fatos diversos.

II

Tu não representas as 24 horas de um dia,
os fatos diversos,
o livro e o jornal
que leio neste momento.
Tu os completas e os transcendes.
Tu és absolutamente revolucionária e criminosa,
porque sob teu manto
e sob os pássaros de teu chapéu
desconheço a minha rua,
o meu amigo e o meu cavalo de sela.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Existem pedras nos olhos, mas não as tragas contigo. Foi o que pediu Maria Teresa Horta ao seu amor e seu amigo.


Existem pedras


Existem pedras nos olhos
mas não as tragas
contigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras nas mãos
mas não as uses
comigo

meu amor
e meu amigo

Existem pedras sedentas
de amor e muito perigo

Não querias que elas inventem
motivos de meu castigo

Maria Teresa Horta

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

sexta-feira, junho 26, 2009

Na dedicatória de Florbela Espanca, um livro leva o seu amor. Um casto amor, nascido em um dia com a força do destino.


Dedicatória


É só teu o meu livro; guarda-o bem;
Nele floresce o nosso casto amor
Nascido nesse dia em que o destino
Uniu o teu olhar à minha dor.

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Depois que iniciou sua ascensão para a infância, foi que Manoel de Barros viu como o adulto é sensato. E se fez muitas perguntas, como uma criança.


Ascensão


Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz -
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo -
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes -
ainda sem penugens.
Por que não voltar a apalpar as primeiras formas
da pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a intenção está virgem?
Por que não ascender de volta para o tartamudo!

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quinta-feira, junho 25, 2009

Foram muitos anos de grandes alegrias e tristezas. Até Vinicius dizer à mulher ausente: te amo, te venero, te idolatro, numa perplexidade de criança.


Conjugação da ausente


Foram precisos mais dez anos e oito quilos
Muitas cãs e um princípio de abdômen
(Sem falar na Segunda Grande Guerra, na descoberta da penicilina e na desagregação do átomo)
Foram precisos dois filhos e sete casas
(Em lugares como São Paulo, Londres, Cascais, Ipanema e Hollywood)
Foram precisos três livros de poesia e uma operação de apendicite
Algumas prevaricações e um exequatur
Fora preciso a aquisição de uma consciência política
E de incontáveis garrafas; fora preciso um desastre de avião
Foram precisas separações, tantas separações
Uma separação...

Tua graça caminha pela casa
Moves-te blindada em abstrações, como um T. Trazes
A cabeça enterrada nos ombros qual escura
Rosa sem haste. És tão profundamente
Que irrelevas as coisas, mesmo do pensamento.
A cadeira é cadeira e o quadro é quadro
Porque te participam. Fora, o jardim
Modesto como tu, murcha em antúrios
A tua ausência. As folhas te outonam, a grama te
Quer. És vegetal, amiga...
Amiga! Direi baixo o teu nome
Não ao rádio ou ao espelho, mas à porta
Que te emoldura, fatigada, e ao
Corredor que pára
Para te andar, adunca, inutilmente
Rápida. Vazia a casa
Raios, no entanto, desse olhar sobejo
Oblíquos cristalizam tua ausência.
Vejo-te em cada prisma, refletindo
Diagonalmente a múltipla esperança
E te amo, te venero, te idolatro
Numa perplexidade de criança.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Uma galinha assustada, de bico aberto, barbelas e cristas envermelhadas, só as artérias palpitando no pescoço. Para Adélia Prado, uma descoberta.


Dia


As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral -
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, junho 24, 2009

Cecília Meireles aqui está, junto à tempestade, chorando como uma criança. Um criança que viu que não eram verdade o seu sonho e a sua esperança.


Acontecimento


Aqui estou, junto à tempestade,
chorando como uma criança
que viu que não eram verdade
o seu sonho e a sua esperança.

A chuva bate-me no rosto
e em meus cabelos sopra o vento.
Vão-se desfazendo em desgosto
as formas do meu pensamento.

Chorarei toda a noite, enquanto
perpassa o tumulto nos ares,
para não me veres em pranto,
nem saberes, nem perguntares:

"Que foi feito do teu sorriso,
que era tão claro e tão perfeito?"
E o meu pobre olhar indeciso
não se repetir: "Que foi feito...?"

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em meados do século 19, Castro Alves dedicou este belo poema à mulher do seu amor. Para a época, um poema sutilmente erótico e delicado.


Boa-noite


Boa-noite, Maria! Eu vou-me embora.
A lua nas janelas bate em cheio.
Boa-noite, Maria! É tarde...é tarde...
Não me apertes assim contra teu seio.

Boa-noite!...E tu dizes - Boa-noite.
Mas não digas assim por entre beijos...
Mas não mo digas descobrindo o peito,
- Mar de amor onde vagam meus desejos.

Julieta do céu! Ouve...a Calhandra
Já rumoreja o canto da matina.
Tu dizes que eu menti?...pois foi mentira...
...Quem cantou foi teu hálito, divina!

Se a estrela d'alva os derradeiros raios
Derrama nos jardins do Capuleto,
Eu direi, me esquecendo d'alvorada:
"É noite ainda em teu cabelo preto..."

É noite ainda! Brilha na cambraia
- Desmanchado o roupão, a espádua nua -
O globo de teu peito entre os arminhos
Como entre as névoas se balouça a lua...

É noite, pois! Durmamos, Julieta!
Recende a alcova ao trescalar das flores,
Fechemos sobre nós estas cortinas...
- São as asas do arcanjo dos amores.

A frouxa luz da alabastrina lâmpada
Lambe voluptuosa os teus contornos...
Oh! Deixa-me aquecer teus pés divinos
Ao doudo afago de meus lábios mornos.

Mulher do meu amor! Quando aos meus beijos
Treme tua alma, como a lira ao vento,
Das teclas de teu seio que harmonias,
Que escalas de suspiros, bebo atento!

Ai! Canta a cavatina do delírio,
Ri, suspira, soluça, anseia e chora...
Marion! Marion!...É noite ainda.
Que importa os raios de uma nova aurora?!...

Como um negro e sombrio firmamento,
Sobre mim desenrola teu cabelo...
E deixa-me dormir balbuciando:
- Boa-noite! - formosa Consuelo!...

Castro Alves
(1847-1871)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

terça-feira, junho 23, 2009

Murilo Mendes demonstra o teorema das compensações. Um teorema municipal, com um presidente da Câmara muito "sortudo".


Teorema das compensações


O bicheiro é vereador.
Depende do presidente
Da CâmaraMunicipal.
O Presidente é meio pobre,
Arrisca sempre na sorte,
Ai! depende do bicheiro.

O bicheiro ganha sempre
Na eleição pra vereador
E "seu" Presidente acerta
Muitas vezes na centena.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Numa bela homenagem a Fernando Pessoa, Sophia de Mello Breyner diz que ele é semelhante a um Deus de quatro rostos. E a um Deus de muitos nomes.


Fernando Pessoa


Teu canto justo que desdenha as sombras
Limpo de vida viúvo de pessoa
Teu corajoso ousar não ser ninguém
Tua navegação com bússola e sem astros
No mar indefinido
Teu exacto conhecimento impossessivo

Criaram teu poema arquitectura
E és semelhante a um Deus de quatro rostos
E és semelhante a um Deus de muitos nomes
Cariátide de ausência isento de destinos
Invocando a presença já perdida
E dizendo sobre a fuga dos caminhos
Que foste como as ervas não colhidas.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

segunda-feira, junho 22, 2009

Álvaro de Campos não traz nada e não achará nada. Mas deixou um escrito num livro abandonado em viagem.


Escrito num livro abandonado em viagem


Venho dos lados de Beja.
Vou para o meio de Lisboa.
Não trago nada e não acharei nada.
Tenho o cansaço antecipado do que não acharei,
E a saudade que sinto não é nem no passado nem no futuro.
Deixo escrita neste livro a imagem do meu desígnio morto.
Fui, como ervas, e não me arrancaram.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Não só de cinco séculos árduos de esperança se faz o sonho latino-americano. No coração de milhões, também muita dor, espanto e pranto.


O coração latino-americano


Incas, ianomamis, tiahuanacos, aztecas,
mayas, tupis-guaranis, a sagrada intuição
das nações mais saudosas. Os resíduos.
A cruz e o arcabuz dos homens brancos.
O assombro diante dos cavalos,
a adoração dos astros.
Uma porção de sangues abraçados.
Os heróis e os mártires que fincaram no
tempo
a espada de uma pátria maior.
A lucidez do sonho arando o mar.
As águas amazônicas, as neves da
cordilheira.
O quetzal dourado, o condor solitário
o uirapuru da floresta, canto de todos os
pássaros.
A destreza felina das onças e dos pumas.
Rosas, hortênsias, violetas, margaridas,
flores e mulheres de todas as cores,
todos os perfis. A sombra fresca
das tardes tropicais. O ritmo pungente,
rumba, milonga, tango, marinera,
samba-canção.
O alambique de barro gotejando
a luz-ardente do canavial.
O perfume da floresta que reúne,
em morna convivência, a árvore altaneira
e a planta mais rasteirinha do chão.
O fragor dos vulcões, o árido silêncio
do deserto, o arquipélago florido,
a pampa desolada, a primavera
amanhecendo luminosa nos pêssegos e nos
jasmineiros,
a palavra luminosa dos poetas,
o sopro denso e perfumado do mar,
a aurora de cada dia, o sol e a chuva
reunidos na divina origem do arco-íris.
Cinco séculos árduos de esperança.
De tudo isso, e de dor, espanto e pranto,
para sempre se fez, lateja e canta
o coração latino-americano.

Thiago de Mello

Mais sobre Thaigo de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

domingo, junho 21, 2009

Na tristura de Mário de Andrade, mais uma demonstração de seu grande amor pela Paulicéia. Há matrimônios assim...


Tristura


Profundo. Imundo meu coração...
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a Avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guisos nos meus interiores arlequinais!...

Paulicéia, minha noiva...Há matrimônios assim...
Ninguém os assistirá nos jamais!

As permanências de ser um na febre!

Nunca nos encontramos...
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenonville...

E tivemos uma filha, uma só...
Batismos do sr. cura Bruma;
água-benta das garoas monótonas...
Registrei-a no cartório da Consolação...
Chamei-a Solitude das Plebes...

Pobre cabelos cortados da nossa monja!

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

Para Gilberto Freyre, o fantasma é um marinheiro inglês. Que não soube separar-se do navio velho, perdido entre as mangueiras e jaqueiras do Recife.


Assombração inglesa


Perto da Avenida Malaquias
numa casa gótica levantada
por ex-capitão de navio inglês
que em frente à casa erguera o mastro do velho barco
durante anos comandado por ele,
em noites de muito escuro e vento mau
houve quem avistasse um marinheiro
no alto do mastro. Devia ser fantasma
do marinheiro inglês, alma de bife,
já descarnado em espírito mas sem saber
separar-se daquele pedaço de navio velho
perdido entre mangueiras e jaqueiras do Recife.

Gilberto Freyre
(1900-1987)

Mais sobre Gilberto Freyre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre

sexta-feira, junho 19, 2009

Para Ferreira Gullar, todo poema é feito de ar apenas. O que há nele é barulho quando rumoreja ao sopro da leitura.


Barulho


Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.

Ferreira Gullar


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Chegou o carnaval do Recife. Para o poeta Ascenso Ferreira, o carnaval do Recife é o carnaval melhor do mundo!


Carnaval do Recife


Meteram uma peixeira no bucho de Colombina
que a pobre, coitada, a canela esticou!
Deram um rabo-de-arraia em Arlequim,
um clister de sebo quente em Pierrô!

E somente ficaram os máscaras da terra:
Parafusos, Mateus e Papangus...
e as Bestas-Feras impertinentes,
os Cabeções e as Burras-Calus...
realizando, contentes, o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Mulata danada, lá vem Quitandeira,
lá vem Quitandeira que tá de matá!

- Olha o passso do siricongado!
- Olha o passo da siriema!
- Olha o passo do jaburu!
E a Nação-de-Cambinda-Velha!
E a Nação-de-Cambinda Nova!
E a Nação-de-Leão-Coroado!

- Danou-se, mulata, que o queima é danado!
- Eu quero virá arcanfô!
Que imensa poesia nos blocos cantando:
"Todo mundo emprega
grande catatau,
pra ver se me pega
o teu olho mal!"
- Viva o Bloco das Flores! Os Batutas!
Apois-fum!
(Como é brasileira a verve desse nome: Apois-fum!)
E o Clube do Pão Duro!
(É mesmo duro de roer o pão do pobre!)

- Lá vem o homem dos três cabaços na vara!
"Quem tirar a polícia prende!"

- Eh, garajuba!
Carnavá, meu carnavá,
tua alegria me consome...
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegô o tempo das muié largá os home!
Chegou lá nada...

Chegou foi o tempo delas pegarem os homens,
porque chegou o carnaval do Recife,
o carnaval mulato do Recife,
o carnaval melhor do mundo!

- Pega o pirão, esmorecido!

Ascenso Ferreira
(1895-1965)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira

quinta-feira, junho 18, 2009

No confronto da vida, Drummond conta que o Amor bateu à porta da loucura. Mas a Loucura desdenha recebê-lo, sabendo quanto Amor vive de engano.


Confronto


Bateu Amor à porta da Loucura.
"Deixa-me entrar - pediu - sou teu irmão.
Só tu me limparás da lama escura
a que me conduziu minha paixão."

A Loucura desdenha recebê-lo,
sabendo quanto Amor vive de engano,
mas estarrece de surpresa ao vê-lo,
de humano que era, assim tão inumano.

"E exclama: "Entre correndo, o pouso é teu.
Mais que ninguém mereces habitar
minha casa infernal, feita de breu,

enquanto me retiro, sem destino,
pois não sei de mais triste desatino
que este mal sem perdão, o mal de amar."

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

No belo poema de Paulo Mendes Campos, um menino ziguezagueava de chuteiras no campo de topázio. Era uma criança, frágil e forte.


Um menino


Ziguezagueava de chuteiras no campo de topázio, a seriema do crepúsculo em grito
indireto, macegas revelando serpentes frágeis, caminhava
com as mangas de uniforme encolhidas, o coração
priápico, a alma
plo avesso, imaginando encontrar um braço estendido, um ninho,
olhos femininos
de pássaro,
onde ele (só ele)
indefinidamente se esfregassse à vida.
Desceu o caminho do açude quando o martim-pescador regressava a seu mundo.
Água lisa e escura, o esperma do capim-gordura recendia,
os araticuns articulando-se ao verde
com os amarelos tortos e lenhosos de Van
Gogh. As torres se removiam quando cruzou a ponte,
suspirando, a trabalhar-se,
todos os pressentimentos farejando para sete ou oito sentidos,
sua avó ainda viva, compartilhando da inocência
montanhesa, somente agora perturbada: pois
ele aparecia enfim à tarde, mãos nos bolsos,
uma fome escancarada de espaço-tempo e maldade. Aparecia emfim
à tarde, para a tarde, com a tarde,
o frescor do pequeno porco-espinho, e o mal-estar
dos gambás que cheiravam mal antes da morte.
Caminhava pela casta masturbação dos verdes amarelos
que se remexiam,
os músculos a produzir um calor
que se perdia,
cuspindo o leite das margaridas mastigadas,
vacas chanfradas em flor para receber o girassol de um touro
subnutrido.

Uma criança. Frágil e forte.

Mas em laranjais de paraíso imprevisível.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

quarta-feira, junho 17, 2009

No espelho, Mario Quintana viu que o Tempo, desconcertado, estava parado, parado em cima do telhado... Como um catavento que perdeu as asas!


O espelho


E como eu passasse por diante do espelho
não vi meu quarto com as suas estantes
nem este meu rosto
onde escorre o tempo.

Vi primeiro uns retratos na parede:
janelas onde olham avós hirsutos
e a vovozinhas de saia-balão
como pára-quedistas às avessas que subissem
do fundo do tempo.

O relógio marcava a hora
mas não dizia o dia. O Tempo,
desconcertado,
estava parado.

Sim, estava parado
em cima do telhado...
como um catavento que perdeu as asas!

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

No poema de Jorge de Lima, o andarilho sem destino viu que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo. Onde os horizontes são as nuvens que fogem.


Tarde oculta no tempo


O andarilho sem destino reparou então
que seus sapatos tinham a poeira indiferente
de todas as pátrias pitorescas;
e que seus olhos conservavam as noites e os dias
dos climas mais vários do universo;
e que suas mãos se agitaram em adeuses
a milhares de cais sem saudades e amigos;
e que todo o seu corpo tinha conhecido
as mil mulheres que Salomão deixou.
E o andarilho sem destino viu
que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo
sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
mas com a vastidão infinita onde os horizontes
são as nuvens que fogem.

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

terça-feira, junho 16, 2009

Parte, e tu verás como as coisas que eram, não são mais. E o amor dos que te esperam parece ter ficado para trás, nos versos de Vinicius de Moraes.


Parte e tu verás


Parte, e tu verás
Como as coisas que eram, não são mais
E o amor dos que te esperam
Parece ter ficado para trás
E tudo o que te deram
Se desfaz.

Parte, e tu verás
Como se quedam mudos os que ficam
Como se petrificam
Os adeuses que ficaram a te acenar no cais
E como momentos que passaram apenas
Parecem tempos imemoriais.

Parte, e tu verás
Como o que era real, resta impreciso
Como é preciso ir por onde vais
Com razão, sem razão, como é preciso
Que andes por onde estás.

Parte, e tu verás
Como insensivelmente esquecerás
Como a matéria de que é feito o tempo
Se esgarça, se dilui, se liquefaz
E qualquer novo sentimento
Te compraz.

Repara como um novo sofrimento
Te dá paz
Repara como vem o esquecimento
E como o justificas
E como mentes insensivelmente
Porque és, porque estás.

Ah, eterno limite do presente
Ah, corpo, cárcere, onde faz
O amor que parte e sente
Saudade, e tenta, mas
Para viver, subitamente, mente
Que já não sabe mais
Vida, o presente; morte, o ausente -
Parte, e tu verás...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Ânsia de Rosa e braços nus, findou de enleios ou de enjôos. Que desbaratos os meus vôos, que espantalho a minha cruz, grita Mário de Sá-Carneiro.


Desquite


Dispam-me o Oiro e o Luar,
Rasguem as minhas togas de astros -
Quebrem os ónix e alabastros
Do meu não me querer igualar.

Que faço só na grande Praça
Que o meu orgulho rodeou -
Estátua, ascensão do que não sou,
Perfil prolixo de que ameaça?...

...E o sol...ah, o sol do ocaso,
Perturbação de fosco e Império -
A solidez dum ermitério
Na impaciência dum atraso...

O cavaleiro que partiu,
E não voltou nem deu notícias -
Tão belas foram as primícias,
Depois só luto o anel cingiu...

A grande festa anunciada
A gala e elmos principescos,
Apenas foi executada
A guinchos e esgares simiescos...

Ânsia de Rosa e braços nus,
Findou de enleios ou de enjôos...
- Que desbaratos os meus vôos;
Ai, que espantalho a minha cruz...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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segunda-feira, junho 15, 2009

Quem me roubou quem nunca fui e a vida? Quem, de dentro de mim, é que a roubou? Fernando Pessoa procura respostas para sua vida e não as encontra.


Quem me roubou


Quem me roubou quem nunca fui e a vida?
Quem, de dentro de mim, é que a roubou?
Quem ao ser que conheço por quem sou
Me trouxe, em estratagemas de descida?

Onde me encontro nada me convida.
Onde me eu trouxe nada me chamou.
Desperto: este lugar em que me estou,
Se é abismo ou cume, onde estão vinda ou ida?

Quem, guiando por mim meus passos dados,
Entre sombras e muros que me deu
A súbita fusão dos mudos fados?

Quem sou, que assim que me caminhei sem eu,
Quem são, que assim me deram aos bocados
À reunião em que acordo e não sou meu?

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Menotti del Picchia sabe que tem a alma errante. E sente uma estranha delícia em tudo que passa e não dura, em tudo que foge e não pára...


Canção do meu sonho errante


Eu tenho a alma errante
e vago na terra a sonhar maravilhas...

Não para um momento!
Eu busco irriquieto o meu sonho inconstante
e sou como as asas, as velas, as quilhas,
as nuvens, o vento...

Eu sou como as coisas inquietas: o veio
que canta na leira; a fumaça que voa
na espira que sobe das achas; o anseio
dos longos coqueiros esguios;
a esteira de prata que deixa uma proa
no espelho dos rios.

Eu tenho a alma errante...

Boêmio, o meu sonho procura a carícia
fugace, procura
a glória mendaz e preclara.
Sou como a veia fenícia
ao largo, uma vela distante...

Eu tenho a alma errante...

E sinto uma estranha delícia
em tudo que passa e não dura,
em tudo que foge e não pára...

Menotti Del Picchia
(1892-1988)

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sábado, junho 13, 2009

Recife, Ponte Buarque de Macedo... Assim, Augusto dos Anjos dá início a um de seus mais importantes poemas.


As cismas do destino


I

Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava no Destino, e tinha medo!

Na austera abóbada alta o fósforo alvo
Das estrelas luzia... O calçamento
Sáxeo, de asfalto rijo, atro e vidrento,
Copiava a polidez de um crânio calvo.

Lembro-me bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte.
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!

A noite fecundava o ovo dos vícios
Animais. Do carvão da treva imensa
Caía um ar danado de doença
Sobre a cara geral dos edifícios!

Tal uma horda feroz de cães famintos,
Atravessando uma estação deserta,
Uivava dentro do eu, com a boca aberta,
A matilha espantada dos instintos!

Era como se, na alma da cidade,
Profundamente lúbrica e revolta,
Mostrando as carnes, uma besta solta
Soltasse o berro da animalidade.

E aprofundando o raciocínio obscuro,
Eu vi, então, à luz de áureos reflexos,
O trabalho genésico dos sexos,
Fazendo à noite os homens do Futuro.

Livres de microscópios e escalpelos,
Dançavam, parodiando saraus cínicos,
Bilhões de centrossomas apolínicos
Na câmara promíscua do vitellus.

Mas, a irritar-me os globos oculares,
Apregoando e alardeando a cor nojenta,
Fetos magros, ainda na placenta,
Estendiam-me as mãos rudimentares!

Mostravam-me o apriorismo incognoscível
Dessa fatalidade igualitária,
Que fez minha família originária
Do antro daquela fábrica terrível!

A corrente atmosférica mais forte
Zunia. E, na ígnea crostra do Cruzeiro,
Julgava eu ver o fúnebre candeeiro
Que há de me alumiar na hora da morte.

Ninguém compreendia o meu soluço,
Nem mesmo Deus! Da roupa pelas brechas,
O vento bravo me atirava flechas
E aplicações hiemais de gelo russo.

A vingança dos mundos astronômicos
Enviava à terra extraordinária faca,
Posta em rija adesão de goma laca
Sobre os meus elementos anatômicos.

Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso,
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!

Mas o vento cessara por instantes
Ou, pelo menos, o ignis sapiens do Orco
Abafava-me o peito arqueado e porco
Num núcleo de substâncias abrasantes.

É bem possível que eu um dia cegue.
No ardor desta letal tórrida zona,
A cor do sangue é a cor que me impressiona
E a que mais neste mundo me persegue!

Essa obsessão cromática me abate.
Não sei por que me vêm sempre à lembrança
O estômago esfaqueado de uma criança
E um pedaço de víscera escarlate.

Quisera qualquer coisa provisória
Que a minha cerebral caverna entrasse,
E até ao fim cortasse e recortasse
A faculdade aziaga da memória.

Na ascensão barométrica da calma,
Eu bem sabia, ansiado e contrafeito,
Que uma população doente do peito
Tossia sem remédio na minh´alma!

E o cuspo que essa hereditária tosse
Golfava, à guisa de ácido resíduo,
Não era o cuspo só de um indivíduo
Minado pela tísica precoce.

Não! Não era o meu cuspo, com certeza
Era a expectoração pútrida e crassa
Dos brônquios pulmonares de uma raça
Que violou as leis da Natureza!

Era antes uma tosse ubíqua, estranha,
Igual ao ruído de um calhau redondo
Arremessado no apogeu do estrondo,
Pelos fundibulários da montanha!

E a saliva daqueles infelizes
Inchava, em minha boca, de tal arte,
Que eu, para não cuspir por toda a parte,
Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!

Na alta alucinação de minhas cismas
O microcosmos líquido da gota
Tinha a abundância de uma artéria rota,
Arrebentada pelos aneurismas.

Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Cuspo, cujas caudais meus beiços regam,
Sob a forma de mínimas camândulas,
Benditas sejam todas essas glândulas,
Que, quotidianamente, te segregam!

Escarrar de um abismo noutro abismo,
Mandando ao Céu o fumo de um cigarro,
Há mais filosofia neste escarro
Do que em toda a moral do cristianismo!

Porque, se no orbe oval que os meus pés tocam
Eu não deixasse o meu cuspo carrasco,
Jamais exprimiria o acérrimo asco
Que os canalhas do mundo me provocam!

II

Foi no horror dessa noite tão funérea
Que eu descobri, maior talvez que Vinci,
Com a força visualística do lince,
A falta de unidade na matéria!

Os esqueletos desarticulados,
Livres do acre fedor das carnes mortas,
Rodopiavam, com as brancas tíbias tortas,
Numa dança de números quebrados!

Todas as divindades malfazejas,
Siva e Arimã, os duendes, o In e os trasgos,
Imitando o barulho dos engasgos,
Davam pancadas no adro das igrejas.

Nessa hora de monólogos sublimes,
A companhia dos ladrões da noite,
Buscando uma taverna que os açoite,
Vai pela escuridão pensando crimes.

Perpetravam-se os atos mais funestos,
E o luar, da cor de um doente de icterícia,
Iluminava, a rir, sem pudicícia,
A camisa vermelha dos incestos.

Ninguém, decerto, estava ali, a espiar-me,
Mas um lampião, lembrava ante o meu rosto,
Um sugestionador olho, ali posto
De propósito, para hipnotizar-me!

Em tudo, então, meus olhos distinguiram
Da miniatura singular de uma aspa,
À anatomia mínima da caspa,
Embriões de mundos que não progrediram!

Pois quem não vê aí, em qualquer rua,
Com a fina nitidez de um claro jorro,
Na paciência budista do cachorro
A alma embrionária que não continua?!

Ser cachorro! Ganir incompreendidos
Verbos! Querer dizer-nos que não finge,
E a palavra embrulhar-se no laringe,
Escapando-se apenas em latidos!

Despir a putrescível forma tosca,
Na atra dissolução que tudo inverte,
Deixar cair sobre a barriga inerte
O apetite necrófago da mosca!

A alma dos animais! Pego-a, distingo-a,
Acho-a nesse interior duelo secreto
Entre a ânsia de um vocábulo completo
E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos,
Nos antiperistálticos abalos
Que produzem nos bois e nos cavalos
A contração dos gritos instintivos!

Tempo viria, em que, daquele horrendo
Caos de corpos orgânicos disformes
Rebentariam cérebros enormes
Como bolhas febris de água, fervendo!

Nessa época que os sábios não ensinam,
A pedra dura, os montes argilosos
Criariam feixes de cordões nervosos
E o neuroplasma dos que raciocinam!

Almas pigméias! Deus subjuga-as, cinge-as
À imperfeição! Mas vem o Tempo, e vence-O,
E o meu sonho crescia no silêncio,
Maior que as epopéias carolíngias!

Era a revolta trágica dos tipos
Ontogênicos mais elementares,
Desde os foraminíferos dos mares
À grei liliputiana dos polipos.

Todos os personagens da tragédia,
Cansados de viver na paz de Buda,
Pareciam pedir com a boca muda
A ganglionária célula intermédia.

A planta que a canícula ígnea torra,
E as coisas inorgânicas mais nulas
Apregoavam encéfalos, medulas
Na alegria guerreira da desforra!

Os protistas e o obscuro acervo rijo
Dos espongiários e dos infusórios
Recebiam com os seus órgãos sensórios
O triunfo emocional do regozijo!

E apesar de já ser assim tão tarde,
Aquela humanidade parasita,
Como um bicho inferior, berrava, aflita,
No meu temperamento de covarde!

Mas, refletindo, a sós, sobre o meu caso,
Vi que, igual a um amniota subterrâneo,
Jazia atravessada no meu crânio
A intercessão fatídica do atraso!

A hipótese genial do microzima
Me estrangulava o pensamento guapo,
E eu me encolhia todo como um sapo
Que tem um peso incômodo por cima!

Nas agonias do delirium-tremens,
Os bêbedos alvares que me olhavam,
Com os copos cheios esterilizavam
A substância prolífica dos semens!

Enterravam as mãos dentro das goelas,
E sacudidos de um tremor indômito
Expeliam, na dor forte do vômito,
Um conjunto de gosmas amarelas.

Iam depois dormir nos lupanares
Onde, na glória da concupiscência,
Depositavam quase sem consciência
As derradeiras forças musculares.

Fabricavam destarte os blastodermas,
Em cujo repugnante receptáculo
Minha perscrutação via o espetáculo
De uma progênie idiota de palermas.

Prostituição ou outro qualquer nome,
Por tua causa, embora o homem te aceite,
É que as mulheres ruins ficam sem leite
E os meninos sem pai morrem de fome!

Por que há de haver aqui tantos enterros?
Lá no “Engenho” também, a morte é ingrata...
Há o malvado carbúnculo que mata
A sociedade infante dos bezerros!

Quantas moças que o túmulo reclama!
E após a podridão de tantas moças,
Os porcos espojando-se nas poças
Da virgindade reduzida à lama.

Morte, ponto final da última cena,
Forma difusa da matéria imbele,
Minha filosofia te repele,
Meu raciocínio enorme te condena!

Diante de ti, nas catedrais mais ricas,
Rolam sem eficácia os amuletos,
Oh! Senhora dos nossos esqueletos
E das caveiras diárias que fabricas!

E eu desejava ter, numa ânsia rara,
Ao pensar nas pessoas que perdera,
A inconsciência das máscaras de cera
Que a gente prega, com um cordão, na cara!

Era um sonho ladrão de submergir-me
Na vida universal, e, em tudo imerso,
Fazer da parte abstrata do Universo,
Minha morada equilibrada e firme!

Nisto, pior que o remorso do assassino,
Reboou, tal qual, num fundo de caverna,
Numa impressionadora voz interna,
O eco particular do meu Destino:

III

“Homem! por mais que a Idéia desintegres,
Nessas perquirições que não têm pausa,
Jamais, magro homem, saberás a causa
De todos os fenômenos alegres!

Em vão, com a bronca enxada árdega, sondas
A estéril terra, e a hialina lâmpada oca,
Trazes, por perscrutar (oh! ciência louca!)
O conteúdo das lágrimas hediondas.

Negro e sem fim é esse em que te mergulhas
Lugar do Cosmos, onde a dor infrene
É feita como é feito o querosene
Nos recôncavos úmidos das hulhas!

Porque, para que a Dor perscrutes, fora
Mister que, não como és, em síntese, antes
Fosses, a refletir teus semelhantes,
A própria humanidade sofredora!

A universal complexidade é que Ela
Compreende. E se, por vezes, se divide,
Mesmo ainda assim, seu todo não reside
No quociente isolado da parcela!

Ah! Como o ar imortal a Dor não finda!
Das papilas nervosas que há nos tatos
Veio e vai desde os tempos mais transatos
Para outros tempos que hão de vir ainda!

Como o machucamento das insônias
Te estraga, quando toda a estuada Idéia
Dás ao sôfrego estudo da ninféia
E de outras plantas dicotiledôneas!

A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua
Que da ígnea flama bruta, estriada, espirra;
A formação molecular da mirra,
O cordeiro simbólico da Páscoa;

As rebeladas cóleras que rugem
No homem civilizado, e a ele se prendem
Como às pulseiras que os mascates vendem
A aderência teimosa da ferrugem;

O orbe feraz que bastos tojos acres
Produz; a rebelião que, na batalha,
Deixa os homens deitados, sem mortalha,
Na sangueira concreta dos massacres;

Os sanguinolentíssimos chicotes
Da hemorragia; as nódoas mais espessas,
O achatamento ignóbil das cabeças,
Que ainda degrada os povos hotentotes;

O Amor e a Fome, a fera ultriz que o fojo
Entra, à espera que a mansa vítima o entre,
— Tudo que gera no materno ventre
A causa fisiológica do nojo;

As pálpebras inchadas na vigília,
As aves moças que perderam a asa,
O fogão apagado de uma casa,
Onde morreu o chefe da família;

O trem particular que um corpo arrasta
Sinistramente pela via férrea,
A cristalização da massa térrea,
O tecido da roupa que se gasta;

A água arbitrária que hiulcos caules grossos
Carrega e come, as negras formas feias
Dos aracnídeos e das centopeias,
O fogo-fátuo que ilumina os ossos;

As projeções flamívomas que ofuscam,
Como uma pincelada rembradtesca,
A sensação que uma coalhada fresca
Transmite às mãos nervosas dos que a buscam;

O antagonismo de Tifon e Osíris,
O homem grande oprimindo o homem pequeno,
A lua falsa de um parasseleno,
A mentira meteórica do arco-íris;

Os terremotos que, abalando os solos,
Lembram paióis de pólvora explodindo,
A rotação dos fluidos produzindo
A depressão geológica dos pólos;

O instinto de procriar, a ânsia legítima
Da alma, afrontando ovante aziagos riscos,
O juramento dos guerreiros priscos
Metendo as mãos nas glândulas da vítima;

As diferenciações que o psicoplasma
Humano sofre na mania mística,
A pesada opressão característica
Dos 10 minutos de um acesso de asma;

E, (conquanto contra isto ódios regougues)
A utilidade fúnebre da corda
Que arrasta a rês, depois que a rês engorda,
À morte desgraçada dos açougues...

Tudo isto que o terráqueo abismo encerra
Forma a complicação desse barulho
Travado entre o dragão do humano orgulho
E as forças inorgânicas da terra!

Por descobrir tudo isso, embalde cansas!
Ignoto é o gérmen dessa força ativa
Que engendra, em cada célula passiva,
A heterogeneidade das mudanças!

Poeta, feto malsão, criado com os sucos
De um leite mau, carnívoro asqueroso,
Gerado no atavismo monstruoso
Da alma desordenada dos malucos;

Última das criaturas inferiores
Governada por átomos mesquinhos,
Teu pé mata a uberdade dos caminhos
E esteriliza os ventos geradores!

O áspero mal que a tudo, em torno, trazes,
Análogo é ao que, negro e a seu turno,
Traz o ávido filóstomo noturno
Ao sangue dos mamíferos vorazes!

Ah! Por mais que, com o espírito, trabalhes
A perfeição dos seres existentes,
Hás de mostrar a cárie dos teus dentes
Na anatomia horrenda dos detalhes!

O Espaço — esta abstração spenceriana
Que abrange as relações de coexistência
E só! Não tem nenhuma dependência
Com as vértebras mortais da espécie humana!

As radiantes elipses que as estrelas
Traçam, e ao espectador falsas se antolham
São verdades de luz que os homens olham
Sem poder, no entretanto, compreendê-las.

Em vão, com a mão corrupta, outro éter pedes
Que essa mão, de esqueléticas falanges,
Dentro dessa água que com a vista abranges,
Também prova o princípio de Arquimedes!

A fadiga feroz que te esbordoa
Há de deixar-te essa medonha marca,
Que, nos corpos inchados de anasarca,
Deixam os dedos de qualquer pessoa!

Nem terás no trabalho que tiveste
A misericordiosa toalha amiga,
Que afaga os homens doentes de bexiga
E enxuga, à noite, as pústulas da peste!

Quando chegar depois a hora tranqüila,
Tu serás arrastado, na carreira,
Como um cepo inconsciente de madeira
Na evolução orgânica da argila!

Um dia comparado com um milênio
Seja, pois, o teu último Evangelho...
E a evolução do novo para o velho
E do homogêneo para o heterogêneo!

Adeus! Fica-te aí, com o abdômen largo
A apodrecer!... És poeira, e embalde vibras!
O corvo que comer as tuas fibras
Há de achar nelas um sabor amargo!”

IV

Calou-se a voz. A noite era funesta.
E os queixos, a exibir trismos danados,
Eu puxava os cabelos desgrenhados
Como o rei Lear, no meio da floresta!

Maldizia, com apóstrofes veementes,
No estentor de mil línguas insurretas,
O convencionalismo das Pandetas
E os textos maus dos códigos recentes!

Minha imaginação atormentada
Paria absurdos... Como diabos juntos,
Perseguiam-me os olhos dos defuntos
Com a carne da esclerótica esverdeada.

Secara a clorofila das lavouras.
Igual aos sustenidos de uma endecha
Vinha-me às cordas glóticas a queixa
Das coletividades sofredoras.

O mundo resignava-se invertido
Nas forças principais do seu trabalho...
A gravidade era um princípio falho,
A análise espectral tinha mentido!

O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.

Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!

Mas a Terra negava-me o equilíbrio...
Na Natureza, uma mulher de luto
Cantava, espiando as àrvores sem fruto,
A canção prostituta do ludíbrio!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos



É a chuva, é o vento, é o medo, é a treva, é o tédio. É inútil, não há remédio, na bela canção de Guilherme de Almeida.


A canção do tédio


Anda uma estrela pelo céu,
sozinha, arrastando um véu
de viúva.
- É a chuva.

Rola um soluço leve no ar,
bem longo no seu rolar,
bem lento.
- É o vento.

Perpassa o passo oco de algum
fantasma, quieto como um
segredo.
- É o medo.

Batem à porta. Abro. Quem é?
Uma alta sombra, de pé,
se eleva.
- É a treva.

Mas, desde então, alguém está
comigo. É inútil. Não há
remédio.
- É o tédio.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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sexta-feira, junho 12, 2009

Guimarães Rosa conhece como ninguém as águas da serra. Águas que correm, claras, do escuro dos morros, cantando nas pedras a canção do mais-adiante.


Águas da Serra


Águas que correm,
claras,
do escuro dos morros,
cantando nas pedras a canção do mais-adiante,
vivendo no lodo a verdade do sempre-descendo...
Águas soltas entre os dedos da montanha,
noite e dia,
na fluência eterna do ímpeto da vida...
Qual terá sido a hora da vossa fuga,
quando as formas e as vidas se desprenderam
das mãos de Deus,
talvez enquanto o próprio Deus dormia?...
E então, do semi-sono dos paraísos perfeitos,
os diques se romperam,
forças livres rolaram,
e veio a ânsia que redobra ao se fartar,
e os pensamentos que ninguém pode deter,
e novos amores em buscas de caminhos,
e as águas e as lágrimas sempre correndo,
e Deus talvez ainda dormindo,
e a lua a avançar, sempre mais longe,
nos milênios de treva do sem-fim...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

quarta-feira, junho 10, 2009

Sim, sei bem que nunca serei alguém. Sim, mas agora, deixem-me crer o que nunca poderei ser, diz Ricardo Reis em uma de suas mais belas odes.


Sim


Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos,
Deixem-me crer
O que nunca poderei ser.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Ariano Suassuna considera a poesia como o melhor de sua obra literária. Depois de ler seu belo canto armorial, fica fácil entender o porquê.


Canto armorial do Recife
, capital do Reino do Nordeste

I

Eram sete as Coroas deste Reino,
sete as Torres sagradas da Cidade,
sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre,
sete Clarins de calcedônia e jade,
e o meu Reino-sagrado do Nordeste
luzia, do Recife à claridade.

Eu velava na pedra do Arrecife
e vi, nesse repente, uma Visagem:
a esmeralda do Mar se alumiava
e o Sertão lhe infundiu sua coragem.
O rubi resplandece na turqueza:
Mar e sol, água e pedras da Pastagem.

A Coroa-de-Ferro de Canudos
resplende sobre a Torre-quadrejada.
O Sertão de Acauhan, da casa-forte,
na do Engenho Pombal, limpa e sagrada.
Os clarins de Princesa e Piancó
reluzem na da torre-ameaçada.

E a colina-sagrada da Batalha
brilha na Conceição-dos-Militares:
as quilhas afundadas dos navios
são púlpitos, Cariátides e altares.
Estalam tiros secos de mosquetes,
as Espadas rebrilham pelos ares.

Duas torres iguais de Santo-Antônio
são as pedras do Reino, as Encantadas,
incrustradas de prata e diamantes,
ungidas pelo Sangue e consagradas:
torres da Catedral dos Sertanejos,
proibida, luzente e soterrada.

O Castelo-roqueiro, em Cinco-Pontas,
é a Casa da Pólvora também:
os Fortes do meu Reino, reluzindo,
pelas pontas da estrela se detêm,
como, na esfera-de-ouro do Brasil
as moedas de ourique e Santarém.

Sim! Porque na Colina-consagrada
onde o Leão do Coelho pôs a pata
(Ouro-Velho, Ouro-Preto, Pombo-Verde
do Salvador, das águas e das arcas)
se funde todo o Império do Brasil,
o ouro das Minas e o torçal-de-prata.

Por isso aqui, brilham também, fundidos,
o clarim do Sertão e o dos Engenhos,
a Lua-moura, a Estrela-da-Judéia,
a Onça-negra, a Parda, 0 rubro Lenho,
- a corneta das Quinas e padrões
encravados de estrelas e desenhos.

E por isso o Recife era a Esmeralda
e a Muralha-de-pedra, a Vastidão:
Pedra-Angular do Reino-esverdeado.
Rosa-vermelha-e-bruna do Brasão,
Porta-azul dos Engenhos e do Mar,
Porta-rubra-e-castanha do Sertão.

II

Lá vem a frota-ibérica das Naus:
brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!
São Cavalos-marinhos, Bois-azuis,
Hipocampos-vermelhos de madeira
ferrados com a Cruz-de-Leopardo,
do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!

Vem nelas o Assassino, o Mau-Poeta,
o Fidalgo-judeu blasfemador:
canta o Leão e as quinas-da-nobreza,
os castelos e o preço do Senhor,
- Voz dos Autos, das trovas e sonetos
que, para nós, é o Sol-começador!

Pois o Recife é um Cisne sacro e branco,
um Búzio desigual e retorcido
que se sentou na Pedra-cavernosa,
de pérolas e aljôfar guarnecido,
de Coral fino, crespo e marchetado,
depois de o Mar azul ter dividido.

III

E a Voz forja a Sereia-nordestina,
a Anfitrite de penas-coloradas:
as casas são Guaràzes-escarlates,
são penas de Saíra recamadas;
estrelas e topázios das Jandaias
são cachos-de-ouro em Campo de esmeralda.

E as heráldicas Flores do meu Reino:
o flamejante, o cravo, o girassol,
a acácia-de-ouro, e a rainha, a Rosa,
e a rosa da Paixão-do-Rouxinol
o emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas,
a lança, o sangue e espinhos do meu Sol!

E assim moldou-se o sangue da Cidade,
esta fêmea e pantera dos Bruxedos.
Ela entreabre seu Manto e nos revela
seus encantos musgosos e secretos,
seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,
seus embruxos, e filtros, e segredos.

Sua tigre-bravura se admira,
seus encantos de Fêmea se deseja,
a finura da Faca e da coragem,
a nobreza e a Faminta-malfazeja,
essa Gata de graça-florentina
e o Sol dessa muralha-sertaneja.

IV

Canta, ó clarim do Teuto-sergipano,
a onça-da-nobreza, a Desumana.
Não te enganes: o cheiro desse Mel
(mesmo de prata, mesmo em Massangana)
é forjado no sangue que bebeu
a leoa-dos-nobres, a Tirana!

Vai! Chama teu irmão desabusado,
teu irmão sertanejo e brasileiro,
Lagarto alumiado pelo sol,
escorpião da Raça e do braseiro,
gila-do-sangue, Povo-coroado.
Arauto-inicial do Romanceiro.

Que o Nordeste é uma Onça e estão seus ombros
queimados pelo Sol e pelo sal:
as garras de arrecifes, os Lajedos,
são seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.
A Liberdade e o sangue da Inumana
precisam de teu Gládio e do Punhal!

V

Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,
que esse Golfim de corpo bronzeado
que sai da espuma branca-e-azul do Mar
(esse sangue-estanhoso do Sagrado)
é o mesmo da Batalha, ali gravada
nesse painel castanho e esbraseado!

Canta as Flechas no campo de Ouro-verde,
as bandeiras, a espada do Latino.
Não cantaste a Onça-negra veludosa,
nem a Parda-castanha (meu destino),
mas o urucu-vermelho, as áureas-penas,
como escudos, brasões e Paladinos!

Tu viste teus fidalgos em Castelos,
e Peri com a cor de sua Dama.
Viste a Loura-fidalga (azul e ouro)
e a Morena-bastarda em sua cama.
Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,
a corneta-de-tíbia é nossa Fama.

Passa o Capitão-mor das Oiticicas
com seu Gibão dourado de fidalgo.
É falso? É sertanejo o Cavaleiro:
vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo!
Que é preciso, também, nesta Insensata,
cantar a prata e o Sonho do sonhado!

VI

Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue,
canta os Campos, de sangue já laivados,
a arena-rubra, a terra-bem-fadada,
sol dos pulsos-de-ferro venerados,
que, em perpétua Aliança, reluziram
o Reino, o território-consagrado.

E a Rota da cruzada-sertaneja,
teu Reino de Acauhan, o gado-crioulo
com seus tipos de Raça e de nobreza,
na Malhada-da-Onça, cor de ouro,
onde o Sol e o brasido das Estrelas
são esporas-do-céu - Gibão de couro!

VII

Soa o quinto Clarim, Cunha de fogo,
e a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.
A faca. A lazarina de Canudos,
no Pajeú-da-raiva, cresce e estala.
O foto é um tabocal se incendiando
ao som das Ladainhas e das balas.

E a Catedral - o antro, o doido templo,
reduto, fortaleza e Santuário,
de fachada sem módulos e regras,
vasto, retangular, desafrontado,
cortado e esburacado de troneiras,
o brutal Hipogeu desenterrado!

VIII

Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro),
junto a ti (que és mortal e ensolarado),
sopra o Clarim-augusto-dos-engenhos,
o noturno Duende enferrujado:
canta as asas do Corvo e canta a Morte,
o Sangue e as coisas podres do Paudarco.

As canas, o homem-sem-conchego-nobre,
o musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,
as lagartixas-dos-esconderijos,
o doido Sol-ignívomo da Ponte...
E a Máquina-do-mundo queima tudo
na sua pele-de-rinoceronte!

Se ele cantou o mel de seus Engenhos,
pressentiu meu Sertão com seus segredos:
os Rifles pipocando o som das quedas
de mil lajedos sobre mil lajedos
e os Capitães-de-couro se matando
nas pontas escarpadas dos Rochedos!

Ouço na Voz-noturna desse Engenho
os jambeiros verdosos do Paudarco
chovendo rosa-púrpura no chão
do Recife do signo-estrelado,
e o Dono dos escudos-da-bandeira
no Cais-da-aurora canta seu passado.

IX

Ó paudarco, flor-de-ouro! O Corredor,
com seu búzio-de-sonho, sonha e passa:
no açafrão, nos vestidos das meninas,
no cheiro de jasmins que ali perpassa,
na argamassa do Tempo impiedoso,
pedra e cal dos bueiros sem fumaça!

Salvou, assim, o verde de seu Reino
e o Pajeú-de-pedra do Sertão:
gemem os Catolés, estrala a bala,
e passa, doido, El-Rei-Sebastião,
sujo de sangue e pó a real Fronte,
mas vivo no chapéu do Capitão!

E o búzio-decadente troa a Raça
e forja o Cavaleiro-destroçado,
o de esporas-quebradas, mas sem freio
na Burra que é castanha e que é sem rabo!
E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos
no Pombal que é meu Reino-conquistado!

X

E todo o Reino canta nesse nome,
pela Dama-de-sangue-coroado:
o Sínople, os Pescoços-de-serpente,
a Banda-sanguinosa do Enforcado;
quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue
tinha visto nos campos do Sagrado!

Ela era leve, e tinha os olhos
como o paudarco-âmbar da Acauhan,
e os ouros das acácias do Recife
nos cabelos de sol-pela-manhã:
olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,
boca, vermelha flor de flamboiã!

E, misturando tudo, o mel do Engenho
mais o mel das abelhas do Sertão.
Cana-caiana doce, olhos-estranjas,
tão bonita, tão boa e tão do-chão!
Era, mesmo, a Leoa-coroada,
flecha em meu sangue, anel da solidão!
E eu vi que minha Dama era o Recife,
o engenho e o sertão do meu Sagrado.
Os clarins já se calam e as Coroas
fulgiam pelo Reino-do-Encampado.
O Sol comia o cobre do horizonte:
terminava a viagem do sonhado!

Soltou-se a Onça-Negra da estrelada
e o meu Recife, ali, na escuridão,
era, agora, o Fortim-iluminado,
o baluarte, a Nau, o bastião,
colocado entre o Reino-azul do Mar
e o meu Reino-castanho do Sertão!

Ariano Suassuna
(1927)

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terça-feira, junho 09, 2009

O que tu chamas tua paixão, é tão somente curiosidade. E os teus desejos ferventes vão batendo as asas na irrealidade, diz um irônico Manuel Bandeira.


Poemeto irônico


O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.
E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...

Curiosidade sentimental
Do seu aroma, da sua pele.
Sonhas um ventre de alvura tal,
Que escuro o linho fique ao pé dele.

Dentre os perfumes sutis que vêm
Das suas charpas, dos seus vestidos,
Isolar tentas o odor que tem
A trama rara dos seus tecidos.

Encanto a encanto, toda a prevês.
Afagos longos, carinhos sábios,
Carícias lentas, de uma maciez
Que se diriam feitas por lábios...

Tu me perguntas, curioso, quais
Serão seus gestos, balbuciamento,
Quando descerdes nas espirais
Deslumbradoras do esquecimento...

E acima disso, buscas saber
Os seus instintos, suas tendências...
Espiar-lhe na alma por conhecer
O que há sincero nas aparências.

E os teus desejos ferventes vão
Batendo as asas na irrealidade...
O que tu chamas tua paixão,
É tão-somente curiosidade.

Manuel Bandeira
(1886-1978)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

A noite reúne a casa e o seu silêncio. E o vazio caminha em seus espaços vivos, nos belos versos de Sophia de Mello Breyner.


A noite e a casa


A noite reúne a casa e o seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até à flor imóvel
Apenas se ouve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispersa se divide
Tudo está como o cipreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

domingo, junho 07, 2009

Álvaro de Campos também sabe fazer conjeturas. Por isso diz que os deuses nunca morrem e têm a consciência na própria carne divina.


Também sei fazer conjeturas


Também sei fazer conjeturas.
Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.
Na planta está por fora e é uma ninfa pequena.
No animal é um ser interior longínquo.
No homem é a alma que vive com ele e é já ele.
Nos deuses tem o mesmo tamanho
E o mesmo espaço que o corpo
E é a mesma cousa que o corpo.
Por isso se diz que os deuses nunca morrem.
Por isso os deuses não têm corpo e alma
Mas só corpo e são perfeitos.
O corpo é que lhes é alma.
E têm a consciência na própria carne divina.

Alvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Para Carlos Nejar, é preciso esperar contra a esperança. Esperar, amar, criar e depois desesperar a esperança.


Contra a esperança


É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar, enquanto
um fio de água, um remo,
peixes existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater
a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro a correr
sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite
em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha, tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança
e sobre nós.

Carlos Nejar

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sábado, junho 06, 2009

Na noite carioca de Murilo Mendes, tudo perde o equilíbrio. As sonatas de Beethoven são valsas arrebentadas e as mulatas dançam nos criouléus.


Noite carioca


Noite da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro
tão gostosa
que os estadistas europeus lamentam ter conhecido tão tarde.
Casais grudados nos portões de jasmineiros...
A baía de Guanabara, diferente das outras baías, é camarada,
recebe na sala de visita todos os navios do mundo
e não fecha a cara.
Tudo perde o equilíbrio nesta noite,
as estrelas não são mais constelações célebres,
são lamparinas com ares domingueiros,
as sonatas de Beethoven realejadas nos pianos dos bairros distintos
não são mais obras importantes do gênio imortal,
são valsas arrebentadas...
Perfume vira cheiro,
as mulatas de brutas ancas dançam nos criouléus suarentos.

O Pão de Açúcar é um cão de fila todo especial
que nunca se lembra de latir pros inimigos que transpõem a barra
e às 10 horas apaga os olhos pra dormir.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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José Régio sonhou uma canção cruel sobre o amor e a morte. E pede: não te apagues, sonho, mata-me como eu sonhei.


O amor e a morte


Canção cruel

Corpo de ânsia.
Eu sonhei que te prostrava,
E te enleava
Aos meus músculos!

Olhos de êxtase,
Eu sonhei que em vós bebia
Melancolia
De há séculos!

Boca sôfrega,
Rosa brava
Eu sonhei que te esfolhava
Pétala a pétala!

Seios rígidos,
Eu sonhei que vos mordia
Até que sentia
Vómitos!

Ventre de mármore,
Eu sonhei que te sugava,
E esgotava
Como a um cálice!

Pernas de estátua,
Eu sonhei que vos abria,
Na fantasia,
Como pórticos!

Pés de sílfide,
Eu sonhei que vos queimava
Na lava
Destas mãos ávidas!

Corpo de ânsia,
Flor de volúpia sem lei!
Não te apagues, sonho! mata-me
Como eu sonhei.

José Régio
(1901-1969)

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sexta-feira, junho 05, 2009

A mulher que eu não sabia deita comigo nas nuvens. Vou cuspir nos olhos brancos dessa mulher que eu não sei, diz João Cabral em versos de amor e dor.


A mulher no hotel


A mulher que eu não sabia
(rosas nas mãos que eu não via,
olhos, braços, boca, seios),
deita comigo nas nuvens.
Nos seus ombros correm ventos,
crescem ervas no seu leito,
vejo gente no deserto
onde eu sonhara morrer.
Terei de engolir a poeira
que seus cabelos levantam
e pousa na minha alma
me dando um gosto de inferno?
Terei de esmagar crianças?
Pisar as flores crescendo?
Terei de arrasar as cidades
sob seu corpo bulindo?
Hei de achar um cemitério
onde um seu pé plantarei.
Vou cuspir nos olhos brancos
dessa mulher que eu não sei.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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Estou a amar-te como o frio corta os lábios. Assim é o amor: mortal e navegável, como no belo poema de amor de Eugénio de Andrade.


O amor


Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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quinta-feira, junho 04, 2009

Por que procuram pelos olhos meus rastros de choro, direções de olhar? Adeus, que é tempo de marear, diz Cecília Meireles em belo poema.


Despedida


Adeus,
que é tempo de marear!

Por que procuram pelos olhos meus
rastros de choro,
direções de olhar?

Quem fala em praias de cristal e de ouro,
abrindo estrelas nos aléns do mar?
Quem pensa num desembarcadouro?
- É hora, apenas, de marear.

Quem chama o sol? Mas quem procura o vento?
e âncora? e bússola? e rumo e lugar?
Quem levanta do esquecimento
esses fantasmas de perguntar?

Lenço de adeuses já perdi...Por onde?
- na terra, andando, e só de tanto andar...
Não faz mal. Que ninguém responde
a um lenço movido no ar...

Perdi meu lenço e meu passaporte
- senhas inúteis de ir e chegar.
Quem lembra a fala da ausência
num mundo sem correspondência?

Viajante da sorte na barca da sorte,
sem vida nem morte...

Adeus,
que é tempo de marear!

Cecília Meireles
(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Para Cesário Verde, o mundo é velha cena ensanguentada. E a vida é chula farsa assobiada, ou selvagem tragédia romanesca.


Manias!


O mundo é velha cena ensanguentada,
Coberta de remendos, picaresca;
A vida é chula farsa assobiada,
Ou selvagem tragédia romanesca.

Eu sei um bom rapaz, - hoje uma ossada, -
Que amava certa dama pedantesca,
Perversíssima, esquálida e chagada,
Mas cheia de jactância quixotesca.

Aos domingos a deia já rugosa,
Concedia-lhe o braço, com preguiça,
E o dengue, em atitude receosa,

Na sujeição canina mais submissa,
Levava na tremente mão nervosa,
O livro com que a amante ia ouvir missa!

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

quarta-feira, junho 03, 2009

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida? Este é o sentir de Alberto Caeiro.


Quando está frio


Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,
Porque para o meu ser adequado à existência das cousas
O natural é o agradável só por ser natural.

Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,
Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno -
Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita,
E encontra uma alegria no fato de aceitar -
No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.

Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me acontece
Senão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?
O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,
Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime.
Da mesma inevitável exterioridade a mim,
Que o calor da terra no alto do Verão
E o frio da serra no cimo do Inverno.

Aceito por personalidade.
Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,
Mas nunca ao erro de compreender demais,
Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência.
Nunca ao defeito de exigir do Mundo
Que fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Eles querem matar todo amor, denuncia Oswald de Andrade. E grita, com revolta: atira, resiste, defende, o futuro será de toda a humanidade.


Alerta


Lá vem o lança-chamas
Pega a garrafa de gasolina
Atira
Eles querem matar todo amor
Corromper o pólo
Estancar a sede que eu tenho doutro ser
Vem do flanco, de lado
Por cima, por trás
Atira
Atira
Resiste
Defende
De pé
De pé
De pé
O futuro será de toda a humanidade.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

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terça-feira, junho 02, 2009

Rola mundo, rola mundo. Drummond já viu muitas coisas em sua vida e chegou à conclusão que é melhor deixar o mundo existir!


Rola mundo


Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi: já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Manoel de Barros conta em versos que o desorgulhoso só andava por lugares pobres. E era ainda mais pobre do que os lugares pobres por onde andava.


O bandarra


Ele só andava por lugares pobres
E era ainda mais pobre
Do que os lugares pobres por onde andava.
Falou de começo: Quem abandona a natureza entra a
verme.
Aves nutriam por ele deslumbramentos de criança.
Ele sabia o sotaque das lesmas
E tinha um modo de árvore pregado no olhar.
O homem usava um dólmã de lã sujo de areia e cuspe
de aves.
Mas ele nem tô aí para os estercos.
Era desorgulhoso.
Para ele a pureza do cisco dava alarme.
E só pelo olfato esse homem descobria as cores do
amanhecer.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

segunda-feira, junho 01, 2009

Em sua Canção de Domingo, Mario Quintana diz que quem ganhou maior esmola foi o Mendigo Aprendiz. Mas o olhar mais azul foi só ela quem lhe deu!


Canção de domingo


Que dança que não se dança?
Que trança não se destrança?
O grito que voou mais alto
Foi um grito de criança.

Que canto que não se canta?
Que reza que não se diz?
Quem ganhou maior esmola
Foi o Mendigo Aprendiz.

O céu estava na rua?
A rua estava no céu?
Mas o olhar mais azul
Foi só ela quem me deu!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Pelas eternas naus do Sonho, Ascenso Ferreira viaja em versos por Oropa, França e Bahia. E conta o triste fim do amor de Manuel e Maria.


"Oropa, França e Bahia"


Num sobradão arruinado,
Tristonho, mal-assombrado,

Que dava fundos prá terra.
( "para ver marujos,
Ttituliluliu!
ao desembarcar").

...Morava Manuel Furtado,
português apatacado,
com Maria de Alencar!

Maria, era uma cafuza,
cheia de grandes feitiços.
Ah! os seus braços roliços!
Ah! os seus peitos maciços!
Faziam Manuel babar...

A vida de Manuel,
que louco alguém o dizia,
era vigiar das janelas
toda noite e todo o dia,
as naus que ao longe passavam,
de "Oropa, França e Bahia"!

— Me dá uma nau daquelas,
lhe suplicava Maria.
— Estás idiota , Maria.
Essas naus foram vintena
Que eu herdei da minha tia!
Por todo o ouro do mundo
eu jamais a trocaria!

Dou-te tudo que quiseres:
Dou-te xale de Tonquim!
Dou-te uma saia bordada!
Dou-te leques de marfim!
Queijos da Serra Estrela,
perfumes de benjoim...

Nada.
A mulata só queria
que seu Manuel lhe desse
uma nauzinha daquelas,
inda a mais pichititinha,
prá ela ir ver essas terras
"De Oropa, França e Bahia"...

— Ó Maria, hoje nós temos
vinhos da quinta do Aguirre,
uma queijadas de Sintra,
só prá tu te distraire
desse pensamento ruim...
— Seu Manuel, isso é besteira!
Eu prefiro macaxeira
com galinha de oxinxim!

"Ó lua que alumias
esse mundo de meu Deus,
alumia a mim também
que ando fora dos meus..."
Cantava Seu Manuel
espantando os males seus.

"Eu sou mulata dengosa,
linda, faceira, mimosa,
qual outras brancas não são"...
Cantava forte Maria,
pisando fubá de milho,
lentamente no pilão...

Uma noite de luar,
que estava mesmo taful,
mais de 400 naus,
surgiram vindas do Sul...
— Ah! Seu Manuel, isso chega...
Danou-se de escada abaixo,
se atirou no mar azul.

— "Onde vais mulhé?"
— Vou me daná no carrosé!
— Tu não vais, mulhé,
— mulhé, você não vai lá..."

Maria atirou-se n'água,
Seu Manuel seguiu atrás...
— Quero a mais pichititinha!
— Raios te partam, Maria!
Essas naus são meus tesouros,
ganhou-as matando mouros
o marido da minha tia !
Vêm dos confins do mundo...
De "Oropa, França e Bahia"!

Nadavam de mar em fora...
(Manuel atrás de Maria!)
Passou-se uma hora, outra hora,
e as naus nenhum atingia...
Faz-se um silêncio nas águas,
cadê Manuel e Maria?!

De madrugada, na praia,
dois corpos o mar lambia...
Seu Manuel era um "Boi Morto",
Maria, uma "Cotovia"!

E as naus de Manuel Furtado,
herança de sua tia?

— continuam mar em fora,
navegando noite e dia...
Caminham para "Pasárgada",
para o reino da Poesia!
Herdou-as Manuel Bandeira,
que, ante a minha choradeira,
me deu a menor que havia!

— As eternas naus do Sonho,
de "Oropa, França e Bahia"...


Ascenso Ferreira

(1895-1965)


Mais sobre Ascenso Ferreira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira