segunda-feira, abril 28, 2008

Se nasceu para uma vida de merda como escreveu, Ferreira Gullar tem uma história que é orgulho para ele e todos os brasileiros. A Poesia que o diga.


Primeiros anos


Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferrreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Com versos que chicoteiam, Miguel Torga desafia o tempo. Mesmo sabendo que vai ser sacrificado no altar apetecido e odiado de um Deus que desconhece.


Chicotada

Corre, tempo! Depressa!
Que eu oiça o movimento!
Faz ressoar o vento,
O tropel agoirento dos teus passos,
E leva-me nos braços,
Como um pai desumano do passado,
A esse apetecido
E odiado
Altar,
Onde, fiel a um Deus desconhecido,
Me vais sacrificar.

Miguel Torga

(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

À sua musa consoladora, Machado de Assis pede que o acolha em seu seio amigo. Em vez de algumas ilusões que teve, ele busca a paz, o último bem.


Musa consolatrix

Que a mão do tempo e o hálito dos homens
Murchem a flor das ilusões da vida,
Musa consoladora,
É no teu seio amigo e sossegado
Que o poeta respira o suave sono.

Não há, não há contigo,
Nem dor aguda, nem sombrios ermos;
Da tua voz os namorados cantos
Enchem, povoam tudo
Da íntima paz de vida e de conforto.

Ante esta voz que as dores adormece,
E muda o agudo espinho em flor cheirosa,
Que vales tu, desilusão dos homens?
Tu que podes, ó tempo?
A alma triste do poeta sobrenada
À enchente das angústias,
E, afrontando o rugido da tormenta,
Passa cantando, alcíone divina.

Musa consoladora,
Quando da minha fronte da mancebo
A última ilusão cair, bem como
Folha amarela e seca
Que ao chão atira a viração do outono,
Ah! no teu seio amigo
Acolhe-me, — e haverá minha alma aflita,
Em vez de algumas ilusões que teve,
A paz, o último bem, último e puro!

Machado de Assis

(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

sábado, abril 26, 2008

Sou quem falhei ser. Somos tudo quem nos supusemos e a nossa realidade é o que não conseguimos nunca, diz Álvaro de Campos sobre sua triste vida.


Pecado Original


Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da Humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!


Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


Deus deu a Drummond um amor no tempo de madureza, quando os frutos não são colhidos ou sabem a verme. A Deus ou ao Diabo ele agradece, tem um amor.

Campo de flores

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Em versos de perdida esperança, Vinicius sofre o amor impossível. Um amor esperado e antigo como as pedras, que queima a carne até sua própria cinza.

A perdida esperança

De posse deste amor que é, no entanto, impossível
Este amor esperado e antigo como as pedras
Eu encouraçarei o meu corpo impassível
E à minha volta erguerei um alto muro de pedras.

E enquanto perdurar tua ausência, que é eterna
Por isso que és mulher, mesmo sendo só minha
Eu viverei trancado em mim como no inferno
Queimando minha carne até sua própria cinza.

Mas permanecerei imutável e austero
Certo de que, de amor, sei o que ninguém soube
Como uma estátua prisioneira de um castelo
A mirar sempre além do tempo que lhe coube.

E isento ficarei das antigas amadas
Que, pela Lua cheia, em rápidas sortidas
Ainda vêm me atirar flechas envenenadas
Para depois beber-me o sangue das feridas.

E assim serei intacto, e assim serei tranqüilo
E assim não sofrerei da angústia de revê-las
Quando, tristes e fiéis como lobas no cio
Se puserem a rondar meu castelo de estrelas.

E muito crescerei em alta melancolia
Todo o canto meu, como o de Orfeu pregresso
Será tão claro, de uma tão simples poesia
Que há de pacificar as feras do deserto.

Farto de saber ler, saberei ver nos astros
A brilharem no azul da abóbada no Oriente
E beijarei a terra, a caminhar de rastros
Quando a Lua no céu contar teu rosto ausente.

Eu te protegerei contra o Íncubo
Que te espreita por trás da Aurora acorrentada
E contra a legião dos monstros do Poente
Que te querem matar, ó impossível amada!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sexta-feira, abril 25, 2008

Longe andava o meu olhar, longe andava. E por trás dos muros do tempo, as pessoas que eu amava, amaram-se entre si, diz um sofrido Mario Quintana.

Mario Quintana, em "Canção do fundo do tempo", por ele mesmo.


Link para fazer o download do poema em mp3 no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/4346268-948

Canção do fundo do tempo

Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Creio que jamais te vi...
Linda corça enrodilhada
À espera do sacrifício,
Parece que te vejo agora
Só agora!
Levemente desenhada
Nos móveis biombos do tempo
Feitos de água e de gaze...
Ah! se eu pudessse jogar-me
Às águas que já passaram,
Decerto que morreria
Ou ficaria mais louco
Do que os anjos rebelados:
Ninguém quebra a lei do tempo,
Basta os cabelos de mortos
Que se enroscam em meus dedos,
Basta as vozes tão amadas
Que me chamam de tão longe...
Ah, decerto que eu morreria,
Se é que já não morri!
Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Por trás dos muros do tempo,
As pessoas que eu amava
Amaram-se entre si.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Onde estás tu, onde anda o teu olhar, pergunta na noite calma e triste Florbela Espanca. E não tem resposta para o seu coração , só um talvez...


Talvez...


A esta hora branda d'amargura
A esta hora triste em que o luar
Anda chorando, ó minha desventura
Onde estás tu? Onde anda o teu olhar?

A noite é calma e triste...a murmurar
Anda o vento, de leva, na doçura
Ideal do aveludado ar
Onde estrelas palpitam...Noite escura

Dize-me onde ele está o meu amor
Onde o vosso luar o vai beijar,
Onde as vossas estrelas co'o fulgor

Do seu brilho de fogo o vão cobrir!...
Dize-me onde ele está! Talvez a olhar
A mesma linda noite a refulgir

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quinta-feira, abril 24, 2008

Na ânsia de se fazer em muitos, Guimarães Rosa sente saudade de todos os presentes vividos fora dele. E sonha com uma só alma-corpo, uma só, um!...


Saudade


Saudade de tudo!...

Saudade, essencial e orgânica,
de horas passadas,
que eu podia viver e não vivi!...
Saudade de gente que não conheço,
de amigos nascidos noutras terras,
de almas órfãs e irmãs,
de minha gente dispersa,
que talvez até hoje ainda espere por mim...

Saudade triste do passado,
saudade gloriosa do futuro,
saudade de todos os presentes,
vividos fora de mim!...

Pressa!...
Ânsia voraz de me fazer em muitos,
fome angustiosa da fusão de tudo,
sede da volta final
da grande experiência:
uma só alma em um só corpo,
uma só alma-corpo,
uma só,
um!...
Como quem fecha numa gota
o Oceano,
afogado no fundo de si mesmo...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Guimar%C3%A3es_Rosa

Tempo, vais para trás ou para diante, ou para diante e para trás? Em sua angústia, Dante Milano só sabe que a hora da despedida é a da partida.


Ao tempo

Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando...
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?

Dante Milano

(1899-1991)

Mais sobre Dante Milano em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano



Sou o tempo que passa, sem princípio, sem fim, sem medida. Vou levando a Ventura e a Desgraça, as saudades da vida, com tristeza diz Olavo Bilac.


O Tempo

Sou o tempo que passa, que passa
Sem princípio, sem fim, sem medida
Vou levando a Ventura e a Desgraça,
Vou levando as vaidades da Vida

A correr, de segundo em segundo
Vou
formando os minutos que correm...
Formo as horas que passam no mundo,
Formo os anos que nascem e morrem.

Ninguém pode evitar os meus danos...
Vou correndo sereno e constante:
Desse modo, de cem em cem anos,
Formo um século e passo adiante.

Trabalhai, porque a vida é pequena
E não há para o tempo demora!
Não gasteis os minutos sem pena!
Não façais pouco caso das horas!

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em

quarta-feira, abril 23, 2008

Gosto quando te calas porque estás como ausente. Mas basta uma palavra, um sorriso e estou alegre que não seja verdade, diz com paixão Neruda.


Me gustas quando te callas


Me gustas quando te callas
Me gustas quando callas porque estás como ausente,
y me oyes desde lejos, e my voz no te toca.
y parece que un beso te cerrara la boca.

Como todas las cosas están llenas de mi alma
emerges de las cosas, llena del alma mía.
Mariposa de sueño, te pareces a mi alma,
y te pareces a la palabra melancolía.

Me gustas cuando callas y estás como distante.
Y estás como quejándote, mariposa en arrullo.
Y me oyes desde lejos, y mi voz no te alcanza:
déjame que me calle con el silencio tuyo.

Déjame que te hable también con tu silencio
claro como una lámpara, simple como un anillo.
Eres como la noche, callada y constelada
Tu silencio es de estrella, tan lejano y sencillo.

Me gustas cuando callas porque estás como ausente.
Distante y dolorosa como si hubieras muerto.
Una palabra entonces, una sonrisa bastan.
Y estoy alegre, alegre de que no sea cierto.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Em um dos seus mais belos poemas de amor, Augusto Frederico Schmidt diz em versos à sua amada: eu nem quero te amar, porque te amo demais.


De Amor

Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.

Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.

Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.

Meu amor seria leve como as sombras.

Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, pertubar o teu sossego...

Eu nem quero te amar, porque te amo demais.


Augusto Frederico Schmidt

(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

Depois de tantos considerandos, Brecht grita em versos o lema de todos os trabalhadores:de agora em diante, temeremos mais a miséria do que a morte.


Resolução

I

Considerando nossa fraqueza
Os senhores forjaram suas leis
Para nos escravizarem
As leis não mais serão respeitadas
Considerando que não queremos mais ser escravos.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

II

Considerando que ficaremos famintos
Se suportarmos que continuem nos roubando
Queremos deixar bem claro que são apenas vidraças
Que nos separam deste bom pão que nos falta.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

III

Considerando que existem grandes mansões
Enquanto os senhores nos deixam sem teto
Nós decidimos: agora nelas nos instalaremos
Porque em nossos buracos não temos mais condições de ficar.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

IV

Considerando que está sobrando carvão
Enquanto nós gelamos de frio por falta de carvão
Nós decidimos que vamos toma-lo
Considerando que ele nos aquecerá.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

V

Considerando que para os senhores não é possível
Nos pagarem um salário justo
Tomaremos nós mesmos as fábricas
Considerando que sem os senhores, tudo será melhor para nós.
Considerando que os senhores nos ameaçam
Com fuzis e com canhões
Nós decidimos: de agora em diante
Temeremos mais a miséria que a morte.

VI

Considerando que o que o governo nos promete sempre
Está muito longe de nos inspirar confiança
Nós decidimos tomar o poder
Para podermos levar uma vida melhor.
Considerando: vocês escutam os canhões -
Outra linguagem não conseguem compreender -
Deveremos então, sim, isso valerá a pena
Apontar os canhões contra os senhores!


Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://en.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht


segunda-feira, abril 21, 2008

João Cabral de Melo não se conforma com a vida da mulher que vive na camisa de força de uma gaiola. A gaiola em que ela reside, de que está vestida.

Mulher vestida de gaiola

Parece que vives sempre
de uma gaiola envolvida,
isenta, numa gaiola,
de uma gaiola vestida,

de uma gaiola, cortada
em tua exata medida
numa matéria isolante:
gaiola-blusa ou camisa.

E assim como tu resides
nessa gaiola, cingida,
o vasto espaço que sobra
de tua gaiola-ilha

é como outra gaiola
igual que o mar: sem medida
e aberto em todos os lados
(menos no que te limita).

Pois nessa gaiola externa
onde tudo tem cabida,
onde cabe Pernambuco
e o resto da geografia,

três bilhões de humanidade
e até canaviais de usina
sei que se debate um pássaro
que a acha pequena ainda.

Tal gaiola para ele
mais do que gaiola é brida;
como cárcere lhe aperta
sua gaiola infinita

e lhe aperta exatamente
por essa parede mínima
em que sua gaiola-mundo
com a tua faz divisa.

Contra essa curta parede
entre ti e ele contígua,
que te defende e para ele
é de força, se é camisa,

todo o dia se debate
a sua força expansiva
(não de pássaro, de enchente,
de enchente do mar de Olinda).

Por que ele a quem sua gaiola
de outros lados não limita,
deseja invadir o espaço
de nada que tu lhe tiras?

por que deseja assaltar
precisamente a área estrita
da gaiola em que resides,
melhor: de que estás vestida?

João Cabral de Melo
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Em sua cantata, Sophia de Melo Breyner protesta contra os que provocam a fome, a injustiça e as guerras. Para ela, o nosso tempo é Pecado organizado.


Cantata de paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2005)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Nos versos de Castro Alves, os mortos não têm coração no peito, Eles voltam aos ninhos, como os pássaros.


Quando eu Morrer


Quando eu morrer... não lancem meu cadáver
No fosso de um sombrio cemitério...
Odeio o mausoléu que espera o morto
Como o viajante desse hotel funéreo.

Corre nas veias negras desse mármore
Não sei que sangue vil de messalina,
A cova, num bocejo indiferente,
Abre ao primeiro o boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério...
Que povo estranho no porão profundo!
Emigrantes sombrios que se embarcam
Para as pragas sem fim do outro mundo.

Tem os fogos — errantes — por santelmo.
Tem por velame — os panos do sudário...
Por mastro — o vulto esguio do cipreste,
Por gaivotas — o mocho funerário ...

Ali ninguém se firma a um braço amigo
Do inverno pelas lúgubres noitadas...
No tombadilho indiferentes chocam-se
E nas trevas esbarram-se as ossadas ...

Como deve custar ao pobre morto
Ver as plagas da vida além perdidas,
Sem ver o branco fumo de seus lares
Levantar-se por entre as avenidas! ...

Oh! perguntai aos frios esqueletos
Por que não têm o coração no peito...
E um deles vos dirá "Deixei-o há pouco
De minha amante no lascivo leito."

Outro: "Dei-o a meu pai". Outro: "Esqueci-o
Nas inocentes mãos de meu filhinho"...
... Meus amigos! Notai... bem como um pássaro
O coração do morto volta ao ninho!...

Castro Alves
(1847-1871)

Mais sobre Castro Alves em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

sábado, abril 19, 2008

Que importa àquele a quem já nada importa que um perca e outro vença, se a aurora nasce sempre? Ricardo Reis preferia rosas à pátria.


Prefiro rosas

Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.

Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.

Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,

Se cada ano com a primavera
As folhas aparecem
E com o outono cessam?

E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?

Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa


Como não tinha nada que fazer, o menino vivia namorando as pernas morenas da lavadeira. Foi assim a iniciação amorosa do menino Carlos Drummond.


Iniciação amorosa

A rede entre duas mangueiras
balançava no mundo profundo.
O dia era quente, sem vento.
O sol lá em cima,
as folhas no meio,
o dia era quente.

E como eu não tinha nada que fazer vivia
namorando as pernas morenas da lavadeira.

Um ida ela veio para a rede,
se enroscou nos meus braços,
me deu um abraço,
me deu as maminhas
que eram só minhas.
A rede virou,
o mundo afundou.

Depois fui para a cama
febre 40 graus febre.
Uma lavadeira imensa, com duas tetas imensas,
girava no espaço verde.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Eu vi a carne, senti a carne que me afogava o peito e me trazia à boca o beijo maldito. Agora, nada mais resta para mim, sofre em versos Vinicius.


Ânsia

Na treva que se fez em torno a mim
Eu vi a carne.
Eu senti a carne que me afogava o peito
E me trazia à boca o beijo maldito.
Eu gritei.
De horror eu gritei que a perdição me possuía a alma
E ninguém me atendeu.
Eu me debati em ânsias impuras
A treva ficou rubra em torno a mim
E eu caí!

As horas longas passaram.
O pavor da morte me possuiu.
No vazio interior ouvi gritos lúgubres
Mas a boca beijada não respondeu aos gritos.

Tudo quebrou na prostração.

O movimento da treva cessou ante mim.

A carne fugiu
Desapareceu devagar, sombria, indistinta
Mas na boca ficou o beijo morto.
A carne desapareceu na treva
E eu senti que desaparecia na dor
Que eu tinha a dor em mim como tivera a carne
Na violência da posse.

Olhos que olharam a carne
Por que chorais?
Chorais talvez a carne que foi
Ou chorais a carne que jamais voltará?
Lábios que beijaram a carne
Por que tremeis?
Não vos bastou o afago de outros lábios
Tremeis pelo prazer que eles trouxeram
Ou tremeis no balbucio da oração?
Carne que possui a carne
Onde o frio?
Lá fora a noite é quente e o vento é tépido
Gritam luxúria nesse vento
Onde o frio?

Pela noite quente eu caminhei...
Caminhei sem rumo, para o ruído longínquo
Que eu ouvia, do mar.
Caminhei talvez para a carne
Que vira fugir de mim.

No desespero das árvores paradas busquei consolação
E no silêncio das folhas que caíam senti o ódio
Nos ruídos do mar ouvi o grito de revolta
E de pavor fugi.

Nada mais existe para mim
Só talvez tu, Senhor.
Mas eu sinto em mim o aniquilamento...

Dá-me apenas a aurora, Senhor
Já que eu não poderei jamais ver a luz do dia.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes














quinta-feira, abril 17, 2008

As lágrimas que Florbela Espanca chora, ninguém as vê brotar dentro da alma. E ninguém as vê cair dentro dela.


Lágrimas ocultas

Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...

E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!

E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...

E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca

(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Derrama sobre mim tua esperança de homem, larga a solidão e vem para esta enseada onde não há ventania. É assim que Lya Luft declara todo o seu amor.


Dádiva


Derrama sobre mim tua esperança de homem,
tanto tempo contida:
planta em meu solo a árvore da renovação,
mais alta do que a noite escura.

Larga a solidão, apaga a desesperança,
inventa um novo reino
onde as águas não são naufrágio,
nem o amor desengano.

Vem para esta enseada, onde há ventania
e risco, mas podes ancorar teu coração
depois da longa procura,
para que ele pouse e pulse e brilhe

como a estrela-do-mar em seu fundo
de oceano.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

quarta-feira, abril 16, 2008

O homem passava o dia catando pregos no chão. Para Manoel de Barros, essa tarefa lhe dava algum estado, o estado de pessoas que se enfeitam a trapos.


O Catador

Um homem catava pregos no chão.
Sempre os encontrava deitados de comprido,
ou de lado,
ou de joelhos no chão.
Nunca de ponta.
Assim eles não furam mais - o homem pensava.
Eles não exercem mais a função de pregar.
São patrimônios inúteis da humanidade.
Ganharam o privilégio do abandono.
O homem passava o dia inteiro nessa função de catar
pregos enferrujados.
Acho que essa tarefa lhe dava algum estado.
Estado de pessoas que se enfeitam a trapos.
Catar coisas inúteis garante a soberania do Ser.
Garante a soberania de Ser mais do que Ter.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

No clamor da noite gélida, caminhos fechados, Cora Coralina se veste de cinzas. Perdida e só, escuta a maldição das pedras, seus errados rumos.


Errados rumos


A caminhada...
Amassando a terra.
Carreando pedras.
Construindo com as mãos
sangrando
a minha vida.

Deserta a longa estrada.
Mortas as mãos viris
que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta
leiteando imensos vegetais,
cavalgando o negro corcel da febre,
desmontado para sempre.

Passa a falange dos mortos...
Silêncio! Os namorados dormem.
Os poetas cobriram as liras.
Flutuam véus roxos
no espaço.

Na esquina do tempo morto,
a sombra dos velhos seresteiros.
A flauta. O violão. O bandolim.
Alertas as vigilantes
barroando portas e janelas
cerradas.
Cantava de amor a mocidade.

A estrada está deserta.
Alguma sombra escassa.
Buscando o pássaro perdido
morro acima, serra abaixo.
Ninho vazio de pedras.
Eu avante na busca fatigante
de um mundo impreciso,
todo meu,
feito de sonho incorpóreo
e terra crua.

Bandeiras rotas.
Desfraldadas.
Despedaçadas.
Quebrado o mastro
na luta desigual.

Sozinha...
Nua. Espoliada. Assexuada.
Sempre caminheira.
Morro acima. Serra abaixo.
Carreando pedras.

Longa procura
de uma furna escura
fugitiva me esconder,
estendida no meu mundo.
Longe...longe...
Indefinido longe.
Nem sei onde.

O tardio encontro...
Passado o tempo
de semear o vale
de colher o fruto.
O desencontro.
Da que veio cedo e do que veio tarde.

A candeia está apagada.
E na noite gélida
eu me vesti de cinzas.

Restos. Restolhos.
Renegados os mitos.
Quebrados os ícones.
Desfeitos os altares.
Meus olhos estão cansados.
Meus olhos estão cegos.
Os caminhos estão fechados.

Perdida e só...
No clamor da noite
escuto a maldição das pedras.
Meus errados rumos.
Apagada a lâmpada votiva,
tão inútil.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

O que se perdeu foi pouco, mas era o que eu mais amava, nos diz Henriqueta Lisboa. Que sofrimento será este, o que se esconde em seus tristes versos?


Sofrimento


No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
Ficou o espírito, mais livre
que o corpo.
A música, muito além,
do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso.
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive à estrela e
é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.

Henriqueta Lisboa
(1904-1985)

Mais sobre Henriqueta Lisboa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Henriqueta_Lisboa

terça-feira, abril 15, 2008

Sou poeta, só sei cantar, sou simplesmente um cantor. Canto o que a vida me pede, porque cantar é um modo de repartir, diz em versos Thiago de Mello.


Só sei cantar

Sou simplesmente um cantor.
Já disse que nada invento
nem produzo formatos diferentes.
Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Canto a luz da primavera,
canto a chuva da floresta,
canto a dor dos deserdados,
e a alvorada da justiça.
Canto o olhar da minha amada
e as pernas dela também.
Canto a plumagem celeste
do tucano que me acorda
e canto o peito encarnado
do rouxinol que chegou
dos altos do Rio Negro
para ver de perto o vôo
das pipiras azuladas.
(Alguns, da arte só pela arte,
me torcem a cara quando
canto em nome do meu povo
a aurora da liberdade.)
Canto o que suja e o que lava,
canto o que dói e o que abranda,
canto a rosa e seu espinho
e a cantiga de ciranda
que se faz de fogo e neve,
canto o amor, de novo canto,
só para aprender a amar.
Mas não canto o que bem quero
pelo gosto de cantar
que às vezes sabe a desgosto.
Canto o que a vida me pede,
imperiosa ou macia,
porque sabe que cantar
é um modo de repartir.
Sou poeta, só sei cantar.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em

Antigamente, morria-se praticamente de tudo, aquilo sim é que era morrer. Agora, a morte tem limites e a vida é crônica, diz Paulo Leminski em versos.


O que passou, passou?


Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria
e todo o mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que têm que morrer,
tinha coisas que têm que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
e virar fotografia?
Ningém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski









Aos que só pensam encher a pança e o cofre, Mayakovsky diz que jamais dará a vida por aquela gente. Prefere servir suco de ananás no bar às putas.


A Vocês!


Vocês que vão de orgia em orgia, vocês
Que têm mornos bidês e W.C.s,
Não se envergonham ao ler os noticiários
Sobre a Cruz de São Jorge nos diários?

Sabem, vocês, inúteis, diletantes
Que só pensam encher a pança e o cofre,
Que talvez uma bomba neste instante
Arranque as pernas ao Tenente Pietrov?...

E se ele, conduzido ao matadouro,
Pudesse vislumbrar, banhado em sangue,
Como vocês, lábios untados de gordura,
Lúbricos trauteiam Sievierânin!

Vocês, gozadores de fêmeas e de pratos,
Dar a vida por suas bacanais?
Mil vezes antes no bar às putas
Ficar servindo suco de ananás.

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

domingo, abril 13, 2008

Álvaro de Campos não dorme, nem espera dormir, e seu sentimento é um pensamento vazio. Lá fora, a Humanidade esquece suas alegrias e amarguras.


Insônia


Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever qundo acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite -
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
- Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos -
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora dele e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Slavo o necessário para sentir consciência,
Salvo - sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto...Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
todos os versos são escritos no dia seguinte.

Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente. Mas não durmo.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Nos versos de Carlos Drummond de Andrade, amor é bicho instruído. Quando se estrepa, a ferida às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã.


O amor bate na aorta


Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo.

Suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormente.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui, estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas,
vejo beijos que se beijam,
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender...

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Se anuncia para Vinicius de Moraes a vinda da mulher amada. Chega de longe, como a estrela de longe, como o tempo, a sua amada última.


A brusca poesia da mulher amada - III


Minha mãe, alisa de minha fronte todas as cicatrizes do passado
Minha irmã, conta-me histórias da infância em que eu haja sido herói sem mácula
Meu irmão, verifica-me a pressão, o colesterol, a turvação do timol, a bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta baixa em calorias, preciso perder cinco quilos
Chamem-me a massagista, o florista, o amigo fiel para as confidências
E comprem bastante papel; quero todas as minhas esferográficas
Alinhadas sobre a mesas, as pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo sumamente grave
A vinda da mulher amada, de cuja fragrância
Já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de plumas
E seu canto inaudíval acompanha desde muito a migração dos ventos
Empós meu canto. É ela uma menina.
Como um jovem pássaro, uma súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim, eis que os arautos
Da descrença começam a encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus réquiems e os falsos profetas
A ganhar rapidamente os logradouros para gritar suas memórias
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem as aves,
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas...Ei-lo que vem vindo
Como uma escura rosa voltejante
Surgida de um jardim imenso em trevas.
Ela vem vindo...Desnudai-me, aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras nascituras!
Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

sexta-feira, abril 11, 2008

Iam de caminhada, o santo fútil que vivia fazendo milagres e Mario Quintana. Até que Deus resolveu mostrar que também sabia fazer milagres.


O peregrino malcontente


Íamos de caminhada. O santo e eu.
Naquele tempo dizia-se: íamos de longada...
E isso explicava tudo, porque longa, longa era a viagem...
Íamos, pois, o santo, eu, e outros.
Ele era um santo tão fútil que vivia fazendo milagres.
Eu, nada...
Ele ressuscitou uma flor murcha e uma criança morta
E transformou uma pedra, na beira da estrada,
Em flor de lótus.
(Por que flor de lótus?)
Uma dia chegamos ao fim da peregrinação.
Deus, então,
Resolveu mostrar que também sabia fazer milagres:
O santo desapareceu!
Mas como? Não sei! desapareceu, bem ali, diante dos nossos olhos que a terra já comeu!
E nós nos prostramos por terra e adoramos ao Senhor Deus todo - poderoso
E foi-nos concedida a vida eterna: isto!
Deus é assim.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Na poesia erótica de Bocage, a donzela ansiosa perde os sentidos. Porém vai com tal ânsia trabalhando, que os homens é que vêm a ser fodidos.


Soneto da donzela ansiosa

Arreitada donzela em fofo leito
Deixando erguer a virginal camisa,
Sobre as roliças coxas se divisa
Entre sombras sutis pachacho estreito.

De louro pêlo um círculo imperfeito
Os papudos beicinhos lhe matiza;
E a branda crica, nacarada e lisa,
Em pingos verte alvo licor desfeito.

A voraz porra, as guelras encrespando,
Arruma a focinheira, e entre gemidos
A moça treme, os olhos requebrando.

Como é inda boçal, perde os sentidos;
Porém vai com tal ânsia trabalhando,
Que os homens é que vêm a ser fodidos.

Manuel Maria Barbosa de Bocage

(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa de Bocage em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage

Por mais que eu seja bom, por mais que sejas boa, nunca te perdoarei, nunca me perdoarás. Vivi, sofri, amei, confessa em versos Guilherme de Almeida.


Vivi, sofri, amei


Vivi. Quando cheguei, trazia os olhos cheios
da saudade de um céu que foi meu mundo antigo.
A vida me fez mau. E os homens por castigo,
odiaram-se. E eu também, porque eram maus, odiei-os.

Sofri. Tudo o que tive – ideais, sonhos, anseios –
naufragou numa pobre lágrima... E, comigo,
mais de um homem chorou, mais de um me disse: (“Amigo!”
A dor tornou-nos bons: perdoaram-me, perdoei-os.

Amei: vivi, sofri contigo. Em um segundo
resumimos a vida e, em nosso ninho, o mundo...
No entanto, a ti que amei, que o amor fez incapaz

de ódio – esse mal que é um bem, porque ele só perdoa -,
por mais que eu seja bom, por mais que sejas boa,
nunca te perdoarei, nunca me perdoarás!


Guilherme de Almeida
(1890-1969)

Mais sobre Guilherme de Almeida em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quinta-feira, abril 10, 2008

Às vezes, Olavo Bilac pensa nos sonhos e nos amores, na multidão dos sofredores e nas amizades sem raízes. E sempre pensa no milagre dos seus versos.


Consolação


Penso, às vezes, nos sonhos, nos amores,
Que inflamei à distância pelo espaço;
Penso nas ilusões do meu regaço
Levadas pelo vento a alheias dores...

Penso na multidão dos sofredores,
Que uma bênção tiveram do meu braço;
Talvez algum repouso ao seu cansaço,
Talvez ao seu deserto algumas flores...

Penso nas amizades sem raízes,
Nos afetos anônimos, dispersos,
Que tenho sob os céus de outros países...

Penso neste milagre dos meus versos:
Um pouco de modéstia aos mais felizes,
Um pouco de bondade aos mais perversos...

Olavo Bilac
(1865-1928)

Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac

Havia na planície um passarinho, um pé de milho, uma mulher sentada e um homem deitado no caminho. Sobre eles, Carlos Pena pinta um retrato campestre.


Retrato campestre


Havia na planície um passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

Horas, horas sem fim, esperarei por ti até que um pássaro me saia da garganta e no silêncio desapareça, diz em seu poema de amor Eugénio de Andrade.


Espera

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

terça-feira, abril 08, 2008

Não penses que não te espero na aparente indiferença, esta fingida descrença só disfarça desespero. Dia-a-dia morro um pouco, diz Menotti del Picchia.


Velha canção

Não penses que não te espero
na aparente indiferença.
Esta fingida descrença
só disfarça desespero.

Se a falsa máscara fria
pudesse quebrar esta ânsia
saberias que a constância
é meu pão de cada dia.

Um pudor duro e severo
esperar desesperado
é o que nutre este pecado
de querer como te quero.

Destarte - tímido louco -
não ouso sondar tua alma
e nesta insofrida calma
dia a dia morro um pouco.

Menotti Del Picchia

(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

Impressionado pela beleza pré-antropofágica da tela "Caipirinha", de Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade escreveu este lindo poema modernista.


Atelier

Caipirinha vestida por Poiret
A preguiça paulista reside nos teus olhos
Que não viram Paris nem Piccadilly
Nem as exclamações dos homens
Em Sevilha
À tua passagem entre brincos

Locomotivas e bichos nacionais
Geometrizam as atmosferas nítidas
Congonhas descora sob o pálio
Das procissões de Minas
A verdura do azul klaxon
Cortada
Sobre a poeira vermelha

Arranha-céus
Fords
Viadutos
Um cheiro de café
No silêncio emoldurado

Oswald de Andrade

(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

Quando eu morrer batam em latas, chamem palhaços e acrobatas. A um morto nada se recusa, grita em seus versos tristes Mário de Sá-Carneiro.


Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir

Mário de Sá-Carneiro

(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

domingo, abril 06, 2008

Sinto que é noite porque dentro de mim, no fundo de mim, o grito se calou, fêz-se desânimo. E salve dia que surge, o essencial é viver, diz Drummond.


Passagem da noite


É noite. Sinto que é noite.
não porque a noite descesse
(bem me importa a fase negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
Sinto que nós somos noite,
que palmitamos no escuro
e em noite nos dissolvemos.
Sinto que é noite no vento,
noite nas águas, na pedra.

E que adianta uma lâmpada?
E que adianta uma voz?
É noite no meu amigo.
É noite no submarino.
É noite na roça grande.
É noite, não é morte, é noite
de sono espesso e sem praia.
Não é dor, nem paz, é noite,
é perfeitamente a noite.

Mas salve, olhar de alegria!
E salve, dia que surge!
Os corpos saltam do sono,
o mundo se recompõe.
Que gozo na bicicleta!
Existir: seja como for.
A fraterna entrega do pão.
Amar: mesmo nas canções.

De novo andar: as distâncias,
as cores, posse das ruas.
Tudo que à noite perdemos
se nos confia outra vez.
Obrigado, coisas fiéis!
Saber que ainda há florestas,
sinos, palavras, que a terra
prossegue seu giro, e o tempo
não murchou: não nos diluimos!
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

É por isso que eu te peço: resta um pouco em minha vida que meus deuses estão mortos, minhas musas estão findas. Coisa Linda, primavera de Vinicius.


Na esperança de teus olhos


Eu ouvi no meu silêncio o prenúncio de teus passos
Penetrando lentamente as solidões da minha espera
E tu eras, Coisa Linda, me chegando dos espaços
Como a vinda impressentida de uma nova primavera.
Vinhas cheia de alegria, coroada de guirlandas
Com sorrisos onde havia borborinhos de água clara
Cada gesto que fazias semeava uma esperança
E existiam mil estrelas nos olhares que me davas.
Ai de mim, eu pus-me a amar-te, pus-me a amar-te mais ainda
Porque a vida no meu peito se fizera nun deserto
E tu apenas me sorrias, me sorrias, Coisa Linda,
Como a fonte inacessível que de súbito está perto.
Pelas rútilas ameias do teu riso entreaberto
Fui subindo, fui subindo no desejo de teus olhos
E o que vi era tão lindo, tão alegre, tão desperto
Que do alburno do meu tronco despontaram folhas novas.
Eu te juro, Coisa Linda: vi nascer a madrugada
Entre os bordos delicados de tuas pálpebras meninas
E perdi-me em plena noite, luminosa e espiralada
Ao cair no negro vórtice letal de tuas retinas.
E é por isso que eu te peço: resta um pouco em minha vida
Que meus deuses estão mortos, minhas musas estão findas
E de ti eu só quisera fosses minha primavera
E só espero, Coisa Linda, dar-te muitas coisas lindas...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Manuel Bandeira diz que beija pouco, fala menos ainda. Mas inventa palavras que traduzem a ternura mais funda: Teadorar.


Neologismo


Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sábado, abril 05, 2008

Minha esperança perdeu seu nome, fechei meu sonho, para chamá-la, diz Cecília. Um campo de estrelas irá brotando atrás das lembranças ardentes.


Atitude


Minha esperança perdeu seu nome...
Fechei meu sonho, para chamá-la.
A tristeza transfigurou-me
como o luar que entra numa sala.

O último passo do destino
parará sem forma funesta,
e a noite oscilará como um dourado sino
derramando flores de festa,

Meus olhos estarão sobre espelhos, pensando
nos caminhos que existem dentro das coisas transparentes.

E um campo de estrelas irá brotando
atrás das lembranças ardentes.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Eu, pecador, me confesso de ser assim como sou, me confesso de ser eu, eu aqui, diante de mim. Assim, se expõe Miguel Torga em seus versos tristes.


Livro de horas

Aqui, diante de mim,
eu, pecador, me confesso
de ser assim como sou.
Me confesso o bom e o mau
que vão ao leme da nau
nesta deriva em que vou.

Me confesso
possesso
das virtudes teologais,
que são três,e dos pecados mortais,
que são sete,
quando a terra não repete
que são mais.

Me confesso
o dono das minhas horas.
O das facadas cegas e raivosas
e o das ternuras lúcidas e mansas.
E de ser de qualquer modo andanças
do mesmo todo.

Me confesso de ser charco
e luar de charco, à mistura.
De ser a corda do arco
que atira setas acima
e abaixo da minha altura.

Me confesso de ser tudo
que possa nascer em mim.
De ter raízes no chão
desta minha condição.
Me confesso de Abel e de Caim.

Me confesso de ser homem.
De ser um anjo caído
do tal céu que Deus governa;
de ser um monstro saído
do buraco mais fundo da caverna.

Me confesso de ser eu.
Eu, tal e qual como vim
para dizer que sou eu
aqui, diante de mim!

Miguel Torga

(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

De muito desejar altura e eternidade, me vem a fantasia de que Existo e Sou. Quando sou nada, égua fantasmagórica, diz Hilda sorvendo a lua n'água.

Égua Fantasmagórica

De tanto te pensar, me veio a Ilusão.
A mesma ilusão
Da égua que sorve a água pensando sorver a lua.
De te pensar me deito nas aguadas
E acredito luzir e estar atada
Ao fulgor do costado de um negro cavalo de cem luas.
De te sonhar, tenho nada,
Mas acredito em mim o ouro e o mundo.
De te amar, possuída de ossos e de abismos
Acredito ter carne e vadiar
Ao redor dos teus cismos. De nunca te tocar
Tocando os outros
Acredito ter mãos, acredito ter boca
Quando só tenho patas e focinho.
De muito desejar altura e eternidade
Me vem a fantasia de que Existo e Sou.
Quando sou nada: égua fantasmagórica
Sorvendo a lua n’água.

Hilda Hilst

(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

sexta-feira, abril 04, 2008

João Cabral de Melo pensa o poema de face sonhada, metade flor, metade apagada. E nas nascidas manhãs, ele é o vulto longínquo de um homem dormindo.


Poema da desintoxação


Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.
Raízes de árvores
enlaçam-me os sonhos
no ar sem aves
vagando tristonhos.
Eu penso o poema
da face sonhada,
metade de flor
metade apagada.
O poema inquieta
o papel e a sala.
Ante a face sonhada
o vazio se cala.
Ó face sonhada
de um silêncio de lua,
na noite da lâmpada
pressinto a tua.
Ó nascidas manhãs
que uma fada vai rindo,
sou o vulto longínquo
de um homem dormindo.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Amor feinho não tem ilusão, o que ele tem é esperança. Mesmo assim, em seus versos Adélia Prado confessa: eu quero amor feinho.


Amor feinho

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

O menino triste, sentado à soleira da porta, olha o menino rico na varanda, rodando na bicicleta. É triste a luta de classes, diz Murilo Mendes.


Meninos

Sentado à soleira da porta
Menino triste
Que nunca leu Julio Verne
Menino que não joga bilboquê
Menino das brotoejas e da tosse eterna

Contempla o menino rico na varanda
Rodando na bicicleta
O mar autônomo sem fim.

É triste a luta de classes.

Murilo Mendes

(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, abril 03, 2008

Tenho mais almas que uma, há mais eus do que eu mesmo. Vivem em nós inúmeros, este o sentimento dos lindos versos de Ricardo Reis.


Vivem em nós inúmeros

Vivem em nós inúmeros;
Se penso ou sinto, ignoro
Quem é que pensa ou sente.
Sou somente o lugar
Onde se sente ou pensa.

Tenho mais almas que uma.
Há mais eus do que eu mesmo.
Existo todavia
Indiferente a todos.
Faço-os calar: eu falo.

Os impulsos cruzados
Do que sinto ou não sinto
Disputam em quem sou.
Ignoro-os. Nada ditam
A quem me sei: eu 'screvo.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Abre as asas da Vida à Vida que há lá fora, porque Deus é Deus, Bem ou Mal, cantando em mim. E questiona em versos Pedro Kilkerry, que Deus és tu?


Ritmo eterno

Abro as asas da Vida à Vida que há lá fora.
Olha... Um sorriso da alma! — Um sorriso da aurora!
E Deus — ou Bem! ou Mal — é Deus cantando em mim,
Que Deus és tu, sou eu — a Natureza assim.

Árvore! boa ou má, os frutos que darás
Sinto-os sabendo em nós, em mim, árvore, estás.
E o Sol, de cujo olhar meu pensamento inundo,
Casa multiplicando as asas deste mundo...

Oh, braços para a Vida! Oh, vida para amar!
Sendo uma onda do mar, dou-me ilusões de um mar...
Alvor, turquesa, ondula a matéria... É veludo,

É minh'alma, é teu seio, e um firmamento mudo.
Mas, aos ritmos da Terra, és um ritmo do Amor?
Homem! ouve a teus pés a Natureza em flor!

Pedro Kilkerry

(1855-1917)

Mais sobre Pedro Kilkerry em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Kilkerry

Eu te amo, na profunda imensidade do vazio e a cada lágrima dos meus pensamentos. Até que o universo caia sobre mim, suavemente, diz Adalgisa Nery.


Poema da amante

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que estás presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda estás ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.


Adalgisa Nery

(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery