quinta-feira, agosto 30, 2007

Segue o teu destino, vê de longe a vida, nunca a interrogues, diz Ricardo Reis em seus versos. Para ele, os deuses são deuses porque não pensam.


Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Ferreira Gullar denuncia em versos a exploração dos camponeses e a violência criminosa dos Coronéis. Uma história ainda atual no Brasil de hoje.


João Boa Morte Cabra Marcado para Morrer


Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro".
Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Com a sua famosa e crônica enxaqueca, João Cabral de Melo Neto se rendeu aos encantos da aspirina. Para ele, o mais prático dos sóis.


Num monumento à aspirina


Claramente: o mais prático dos sóis,
o sol de um comprimido de aspirina:
de emprego fácil, portátil e barato,
compacto de sol na lápide sucinta.
Principalmente porque, sol artificial,
que nada limita a funcionar de dia,
que a noite não expulsa, cada noite,
sol imune às leis de meteorologia,
a toda hora em que se necessita dele
levanta e vem (sempre num claro dia):
acende, para secar a aniagem da alma,
quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos
da lente do comprimido de aspirina:
o acabamento esmerado desse cristal,
polido a esmeril e repolido a lima,
prefigura o clima onde ele faz viver
e o cartesiano de tudo nesse clima.
De outro lado, porque lente interna,
de uso interno, por detrás da retina,
não serve exclusivamente para o olho
a lente, ou o comprimido de aspirina:
ela reenfoca, para o corpo inteiro,
o borroso de ao redor, e o reafina.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

terça-feira, agosto 28, 2007

Florbela Espanca bebeu até a Mágoa no leite de sua mãe. Mas para ela a maior tortura é não ser poeta, para gritar num verso a sua dor.


A maior tortura


A um grande poeta de Portugal

Na vida, para mim, não há deleite.
Ando a chorar convulsa noite e dia...
E não tenho uma sombra fugidia
Onde poise a cabeça, onde me deite!

E nem flor de lilás tenho que enfeite
A minha atroz, imensa nostalgia!...
A minha pobre Mãe tão branca e fria
Deu-me a beber a Mágoa no seu leite!

Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés
Sou, como tu, um riso desgraçado!

Mas a minha tortura inda é maior.
Não ser poeta assim como tu és
Para gritar num verso a minha dor!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Ana Cristina Cesar abriu curiosa o céu, afastando de leve as cortinas. Ela não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal, mas foi.


Fagulha


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar






Se é verdade que sem mim só vês monotonia, manda-me buscar, provoca Hilda Hilst. Mas ela garante ao seu amor que voltará a vê-lo, revestida de luz.


O poeta inventa viagem, retorno e morre de saudades

Se for possível, manda-me dizer:
- É lua cheia. A casa está vazia -
Manda-me dizer, e o paraíso
Há de ficar mais perto, e mais recente
Me há de parecer teu rosto incerto.
Manda-me buscar se tens o dia
Tão longo como a noite. Se é verdade
Que sem mim só vês monotonia.
E se te lembras do brilho das marés
De alguns peixes rosados
Numas águas
E dos meus pés molhados, manda-me dizer:
- É lua nova -
E revestida de luz te volto a ver.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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domingo, agosto 26, 2007

Vi sempre o mundo independente de mim. Então, eu que me aguente comigo e com os comigos de mim, reconhece Álvaro de Campos.


Contudo

Contudo, contudo,
Também houve gládios e flâmulas de cores
Na Primavera do que sonhei de mim.
Também a esperança
Orvalhou os campos da minha visão involuntária,
Também tive quem também me sorrisse.
Hoje estou como se esse tivesse sido outro.
Quem fui não me lembra senão como uma história apensa.
Quem serei não me interessa, como o futuro do mundo.

Caí pela escada abaixo subitamente,
E até o som de cair era a gargalhada da queda.
Cada degrau era a testemunha importuna e dura
Do ridículo que fiz de mim.

Pobre do que perdeu o lugar oferecido por não ter casaco limpo com que aparecesse,
Mas pobre também do que, sendo rico e nobre,
Perdeu o lugar do amor por não ter casaco bom dentro do desejo.
Sou imparcial como a neve.
Nunca preferi o pobre ao rico,
Como, em mim, nunca preferi nada a nada.

Vi sempre o mundo independentemente de mim.
Por trás disso estavam as minhas sensações vivíssimas,
Mas isso era outro mundo.
Contudo a minha mágoa nunca me fez ver negro o que era cor de laranja.
Acima de tudo o mundo externo!
Eu que me agüente comigo e com os comigos de mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Cora Coralina lembra que a escola da Mestra Silvina foi o seu ponto de partida para o mundo. E volta a ser Aninha, aquela em que ninguém acreditava.


Mestra Silvina


Vesti a memória com meu mandrião balão.
Centrei nas mãos meu vintém de cobre.
Oferta de uma infância pobre, inconsciente, ingênua,
revivida nestas páginas.

Minha escola primária, fostes meu ponto de partida,
dei voltas ao mundo.
Criei meus mundos...
Minha escola primária. Minha memória reverencia minha
velha Mestra.
Nas minhas festivas noites de autógrafos, minhas colunas de
jornais
e livros, está sempre presente minha escola primária.
Eu era menina do banco das mais atrasadas

Minha escola primária...
Eu era um casulo feio, informe, inexpressivo.
E ela me refez, me desencantou.
Abriu pela paciência e didática da velha mestra,
cinqüentanos mais do que eu, o meu entendimento ocluso.

A escola da Mestra Silvina...
Tão pobre ela. Tão pobre a escola...
Sua pobreza encerrava uma luz que ninguém via.
Tantos anos já corridos...
Tantas voltas deu-me a vida...

No brilho de minhas noites de autógrafos,
luzes, mocidade e flores à minha volta, bruscamente a
mutação se faz.
Cala o microfone, a voz da saudação.

Peça a peça se decompõe a cena,
retirados os painéis, o quadro se refaz,
tão pungente, diferente.

Toda pobreza da minha velha escola
se impõe e a mestra é iluminada de uma nova dimensão.

Estão presentes nos seus bancos
seus livros desusados, suas lousas que ninguém mais vê,
meus colegas relembrados...
Queira ou não, vejo-me tão pequena, no banco das
atrasadas.

E volto a ser Aninha,
aquela em que ninguém
acreditava.

Cora Coralina
(1889-1985)

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Só a força garante a injustiça, disse Bertolt Brecht. Ele sabia que os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã e que o hoje nascerá do jamais.


Elogio da Dialética

A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.
No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

Bertolt Brecht

(1898-1956)

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sábado, agosto 25, 2007

Mario Quintana e o amor pela sua Porto Alegre, a cidade do seu andar e do seu repouso. Onde hoje ele é poeira ou folha levada no vento da madrugada .

O Mapa

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...

(É nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...

Há tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Há tanta moça bonita
Nas ruas que não andei
(E há uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei...)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso...

Mario Quintana

(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

No meio da noite, Adélia Prado descobriu que queria ser singela. Depois, soluçou alto, chorou, chorou, até ficar singela e dormir de novo.


No meio da noite

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:
sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas de um escuro.
Não fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
"A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos”.
Doía como um prazer
Vendo que eu não mentia ele falou:
as mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também.
Respondi que queria ser singela e na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
como as buganvílias do sonho. Me atropelou.
— O que que foi? — ele disse.
— As buganvílias...
Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Ilimitado, para Affonso Romano de Sant'Anna, o amor às vezes se limita. Proibido, se liberta.


Limites do amor

Condenado estou a te amar
nos meus limites
até que exausta e mais querendo
um amor total, livre das cercas,
te despeça de mim, sofrida,
na direção de outro amor
que pensas ser total e total será
nos seus limites da vida.

O amor não se mede
pela liberdade de se expor nas praças
e bares, em empecilho.
É claro que isto é bom e, às vezes,
sublime.
Mas se ama também de outra forma, incerta,
e este o mistério:

- ilimitado o amor às vezes se limita,
proibido é que o amor às vezes se liberta.
Ele quis morrer para arrasar a morte e voltar.

Affonso Romano de Sant'Anna

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quinta-feira, agosto 23, 2007

Nos versos de Paulo Leminski, a lua foi ao cinema onde passava um filme engraçado. A triste história de uma estrela que não tinha namorado.


A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.

Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Paulo Leminski

(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Nuno Júdice sabe como as coisas do amor são difíceis. Mesmo assim, ela empurra-o para dentro, onde o fogo consome o que resta do quebra-cabeças.

Jogo

Eu, sabendo que te amo,
E como as coisas do amor são difíceis,
Preparo em silêncio a mesa
do jogo,estendo as peças
sobre o tabuleiro,disponho os lugares
necessários para que tudo
comece: as cadeiras
uma em frente da outra, embora saiba
que as mãos não se podem tocar,
e que para além das dificuldades,
hesitações, recuos
ou avanços possíveis, só os olhos
transportam, talvez uma hipótese
de entendimento.É então que chegas,
e como se um vento do norte
entrasse por uma janela aberta,
o jogo inteiro voa pelos ares,
o frio enche-te os olhos de lágrimas,
e empurras-me para dentro, onde
o fogo consome o que resta
do nosso quebra-cabeças.

Nuno Júdice

http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

terça-feira, agosto 21, 2007

Camponês, um dia vais ser o dono do verde do nosso chão. Nunca vi verde tão verde quanto o do teu coração, canta em versos Thiago de Mello.


Cantiga de claridão

Camponês, plantas o grão
no escuro – e nasce um clarão.
Quero chamar-te de irmão.

De noite, comendo o pão,
sinto o gosto dessa aurora
que te desponta da mão.

Fazes de sombras um facho
de luz para a multidão.
És um claro companheiro,
mas vives na escuridão.
Quero chamar-te de irmão.

E enquanto não chega o dia
em que o chão se abra em reinado
de trabalho e de alegria,
cantando juntos, ergamos
a arma do amor em ação.

A rosa já se fez flama
no gume do coração.

Camponês, plantas o grão
no escuro – e nasce um clarão.
Quero chamar-te de irmão.

Um dia vais ser o dono
do verde do nosso chão:
nunca vi verde tão verde
como o do teu coração.

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Vencedor, o coração de Augusto dos Anjos triunfava nas arenas. Ninguém pôde domá-lo, porque ninguém doma um coração de poeta.


Vencedor

Toma as espadas rútilas, guerreiro,

E a rutilância das espadas, toma

A adaga de aço, o gládio de aço, e doma

Meu coração – estranho carniceiro!

Não podes?! Chama então presto o primeiro

E o mais possante gladiador de Roma.

E qual mais pronto, e qual mais presto assoma

Nenhum pôde domar o prisioneiro.

Meu coração triunfava nas arenas.

Veio depois um domador de hienas

E outro mais, e, por fim, veio um atleta,

Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...

E não pôde domá-lo, enfim, ninguém,

Que ninguém doma um coração de poeta!

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Mesmo que eu morra, o poema encontrará uma praia onde quebrar as suas ondas. E me levará no tempo, quando eu já não for eu, disso estava certa Sophia.


O Poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem

O
poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento

No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar as suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio ser confundirá
Com o poema no tempo

Sophia de Mello Breyner

(1919-2004)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner


domingo, agosto 19, 2007

Vinicius de Moraes sofreu até entender que ela era sua amiga nunca superável. E sua insuperável inimiga.


O amor dos homens

Na árvore em frente
eu
terei mandado instalar um alto-falante com que os passarinhos
amplifiquem seus alegres cantos para o teu lânguido despertar.
Acordarás feliz sob o lençol de linho antigo
com um raio de sol a brincar no talvegue de teus seios
e me darás a boca em flor; minhas mãos amantes
te buscarão longamente e tu virás de longe, amiga
do fundo do teu ser de sono e plumas
para me receber; nossa fruição
será serena e tarda, repousarei em ti
como
o homem sobre o seu túmulo, pois nada
haverá fora de nós. Nosso amor será simples e sem tempo.
Depois saudaremos a claridade. Tu dirás
bom dia ao teto que nos abriga
e ao espelho que recolhe a tua rápida nudez.
Em seguida teremos fome: haverá chá-da-índia
para matar a nossa sede e mel
para adoçar o nosso pão. Satisfeitos, ficaremos
como dois irmãos que se amam além do sangue
e fumaremos juntos o nosso primeiro cigarro matutino.
Só então nos separaremos. Tu me perguntarás
e eu te responderei, a olhar com ternura as minhas pernas
que o amor pacificou, lembrando-me que elas andaram muitas léguas de mulher
até te descobrir. Pensarei que tu és a flor extrema
dessa desesperada minha busca; que em ti
fez-se
a unidade. De repente, ficarei triste
e solitário como um homem, vagamente atento
aos ruídos longínquos da cidade, enquanto te atarefas absurda
no teu cotidiano, perdida, ah tão perdida
de mim. Sentirei alguma coisa que se fecha no meu peito
como pesada porta. Terei ciúme
da luz que te configura e de ti mesma
que te deixas viver, quando deveras
seguir comigo como a jovem árvore na corrente de um rio
em demanda do abismo. Vem-me a angústia
do limite que nos antagoniza. Vejo a redoma de ar
que te circunda – o espaço
que separa os nossos tempos. Tua forma
é outra: bela demais, talvez, para poder
ser totalmente minha. Tua respiração
obedece a um ritmo diverso. Tu és mulher.
Tu tens seios, lágrimas e pétalas. À tua volta
o ar se faz aroma. Fora de mim
és pura imagem; em mim
és como um pássaro que eu subjugo, como um pão
que eu mastigo, como uma secreta fonte entreaberta
em que bebo, como um resto de nuvem
sobre que me repouso. Mas nada
consegue arrancar-te à tua obstinação
em ser, fora de mim – e eu sofro, amada
de não me seres mais. Mas tudo é nada.
Olho de súbito tua face, onde há gravada
toda a história da vida, teu corpo
rompendo em flores, teu ventre
fértil. Move-te
uma infinita paciência. Na concha do teu sexo
estou eu, meus poemas, minhas dores
minhas ressurreições. Teus seios
são cântaros de leite com que matas
a fome universal. És mulher
como folha, como flor e como fruto
e eu sou apenas só. Escravizado em ti
despeço-me
de mim, sigo caminhando à tua grande
pequenina sombra. Vou ver-te tomar banho
lavar de ti o que restou do nosso amor
enquanto busco em minha mente algo que te dizer
de estupefaciente. Mas tudo é nada.
São teus gestos que falam, a contração
dos lábios de maneira a esticar melhor a pele
para passar o creme, a boca
levemente entreaberta com que mistificar melhor a eterna imagem
no eterno espelho. E então, desesperado
parto de ti, sou caçador de tigres em Bengala
alpinista
no Tibet, monje em Cintra, espeleólogo
na Patagônia. Passo três meses
numa jangada em pleno oceano para
provar a origem polinésica dos maias. Alimento-me
de plancto, converso com as gaivotas, deito ao mar poesia engarrafada, acabo
naufragando nas costas de Antofagasta. Time, Life e Paris-Match
dedicam-me enormes reportagens. Fazem-me
o "Homem do Ano" e candidato certo ao Prêmio Nobel.
Mas eis que comes um pêssego. Teu lábio
inferior dobra-se sob a polpa, o suco
escorre pelo teu queixo, cai uma gota no teu seio
E tu te ris. Teu riso
desagrega os átomos. O espelho pulveriza-se, funde-se o cano de descarga
quantidades insuspeitadas de estrôncio-90
acumulam-se nas camadas superiores do banheiro
só os genes de meus tataranetos poderão dar prova cabal de tua imensa
radioatividade. Tu te ris, amiga
e me beijas sabendo a pêssego. E eu te amo
de morrer. Interiormente
procuro afastar meus receios: "Não, ela me ama..."
Digo-me, para me convencer, enquanto sinto
teus seios despontarem em minhas mãos
e se crisparem tuas nádegas. Queres ficar grávida
imediatamente. Há em ti um desejo súbito de alcachofras. Desejarias
fazer o parto-sem-dor à luz da teoria dos reflexos condicionados
de Pavlov. Depois, sorrindo
silencias. Odeio o teu silêncio
que não me pertence, que não é
de ninguém: teu silêncio
povoado de memórias. Esbofeteio-te
e vou correndo cortar o pulso com gilete-azul; meu sangue
flui como um pedido de perdão. Abres tua caixa de costura
e coses com linha amarela o meu pulso abandonado, que é para
combinar bem as cores; em seguida
fazes-me
sugar tua carótida, numa longa, lenta
transfusão. Eu convalescente
começas a sair: foste ao cabeleireiro. Perscruto em tua face. Sinto-me
traído, delinqüescente, em ponto de lágrimas. Mas te aproximas
só com o casaco do pijama e pousas
minha mão na tua perna. E então eu canto:
tu és a mulher amada: destrói-me! Tua beleza
corrói minha carne como um ácido! Teu signo
é o da destruição! Nada resta
depois de ti senão ruínas! Tu és o sentimento
de todo o meu inútil, a causa
de minha intolerável permanência! Tu és
uma contrafação da aurora! Amor, amada
abençoada sejas: tu e a tua
impassibilidade. Abençoada sejas
tu que crias a vertigem na calma, a calma
no seio da paixão. Bendita sejas
tu que deixas o homem nu diante de si mesmo, que arrasas
os alicerces do cotidiano. Mágica é tua face
dentro da grande treva da existência. Sim, mágica
é a face da que não quer senão o abismo
do ser amado. Exista ela para desmentir
a falsa mulher, a que se veste de inúteis panos
e inúteis danos. Possa ela, cada dia
renovar o tempo, transformar
uma hora num minuto. Seja ela
a que nega toda a vaidade, a que constrói
todo o silêncio. Caminhe ela
lado a lado do homem em sua antiga, solitária marcha
para o desconhecido – esse eterno par
com que começa e finda o mundo – ela que agora
longe de mim, perto de mim, vivendo
da constante presença da minha saudade
é mais do que nunca a minha amada: a minha amada e a minha amiga
a que me cobre de óleos santos e é portadora dos meus cantos
a minha amiga nunca superável
a minha inseparável inimiga.

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Em seus versos, Lya Luft avisa que se quiserem amá-la, terá que ser agora, terá que ser hoje. Depois, ela estará cansada. E amanhã, ela estará mudada.


Aviso

Se me quiserem amar, terá de ser agora:
depois, estarei cansada.
Minha vida
foi feita de parceria com a morte:
pertenço um pouco a cada uma,
para mim sobrou quase nada.

Ponho a máscara do dia,
um rosto cômodo e fixo:
assim garanto a minha sobrevida.
Se me quiserem amar, terá de ser hoje:
amanhã, estarei mudada.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Para Eugénio de Andrade, é urgente o amor, é urgente destruir certas palavras, é urgente inventar alegria, é urgente permanecer. Urgentemente.


Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente permanecer.

Eugénio de Andrade

(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

sexta-feira, agosto 17, 2007

Quando escreveu estes versos, Carlos Drummond de Andrade talvez não soubesse que a poesia daquele momento também iria inundar nossas vidas inteiras.

Poesia

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

Mais sobre Carlso Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quarta-feira, agosto 15, 2007

Para João Cabral de Melo, aquela mulher exerce sobre o homem efeito igual ao de uma casa: a vontade de corrê-la por dentro, de visitá-la.


A mulher e a casa


Tua sedução é menos
de mulher do que de casa;
pois vem de como é por dentro
ou por detrás da fachada.

Mesmo quando ela possui
tua plácida elegância,
esse teu reboco claro,
riso franco de varandas,

uma casa não é nunca
só para ser contemplada;
melhor: somente por dentro
é possível contemplá-la.

Seduz pelo que é dentro,
ou será, quando se abra;
pelo que pode ser dentro
de suas paredes fechadas;

pelo que dentro fizeram
com seus vazios, com o nada;
pelos espaços de dentro,
não pelo que dentro guarda;

pelos espaços de dentro:
seus recintos, suas áreas,
organizando-se dentro
em corredores e salas,

os quais sugerindo ao homem
estâncias aconchegadas,
paredes bem revestidas
ou recessos bons de cavas,

exercem sobre esse homem
efeito igual ao que causas:
a vontade de corrê-la
por dentro, de visitá-la.


João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto





Murilo Mendes está no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações. E se desespera por não estar presente a todos os atos da vida.


Mapa

Me colaram no tempo, me puseram
uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluído,
depois chego à consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz, numa única vida.
Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando, aos solavancos.
Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem
nem o mal.
Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em nenhuma técnica.
Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio às vezes pra rua combatendo personagens imaginários,
depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos, levantando populações...
Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,
presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a cara,
a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

Andarei no ar.
Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que te tapeiam,
os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.
Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque jejuavam muito...
viva eu, que inseguro no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que tive,
vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto da praia de Botafogo,
no pensamento dos homens que movem o mundo,
nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em transformação.

Murilo Mendes

(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

terça-feira, agosto 14, 2007

Nos versos de Gilka Machado, a língua é carne de som que empresta à idéia. E ainda profere frases mudas nos silêncios do amor.


Lépida e leve


Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
O verso não descreve...
Lépida e leve,
guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.

És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesmo acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.

Dominadora do desejo humano,
estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes, solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá do tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!

— Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
— Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de
alucinação,
és o elástico da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
— Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me veste quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...

Língua-lâmina, língua-labareda,
língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inféria e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...

Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...

Gilka Machado

(1893-1980)

Mais sobre Gilka Machado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pr%C3%AAmio_Machado_de_Assis

segunda-feira, agosto 13, 2007

Florbela Espanca quer o seu amor ao pé dela na hora de morrer. E que venha a morte, que ela morrerá feliz.


Desejo

Quero-te ao pé de mim na hora de morrer.
Quero, ao partir, levar-te, todo suavidade,
Ó doce olhar de sonho, ó vida dum viver
Amortalhado sempre à luz duma saudade!

Quero-te junto a mim quando o meu rosto branco
Se ungir da palidez sinistra do não ser,
E quero ainda, amor, no meu supremo arranco
Sentir junto ao meu seio teu coração bater!

Que seja a tua mão tão branda como a neve
Que feche o meu olhar numa carícia leve
Em doce perpassar de pétala de lis...

Que seja a tua boca rubra como o sangue
Que feche a minha boca, a minha boca exangue!...
.......................................................................
Ah, venha a morte já que eu morrerei feliz!...

Florbela Espanca

(1894-1930)

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Para fazer um soneto, diz Carlos Pena, tome um pouco de azul, se a tarde é clara.E espere um instante que Deus prepara e lhe oferta a palavra inicial.


Para fazer um Soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere um instante ocasional
neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial

Ai, adote uma atitude avara
se você preferir a cor local
não use mais que o sol da sua cara
e um pedaço de fundo de quintal

Se não procure o cinza e esta vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse
antes, deixe levá-lo a correnteza

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza
ponha tudo de lado e então comece.

Carlos Pena Filho

(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

sábado, agosto 11, 2007

Mario Quintana e o seu primeiro amor falavam de coisas que achavam bobas. Eles também não sabiam que levariam toda a vida procurando uma coisa assim.


Indivisíveis

O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.
Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

Mario Quintana

(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em Invenção de Orfeu, Jorge de Lima pede que o céu jamais lhe dê a tentação funesta de adormecer ao léu, na lomba da floresta. E penetrou-se do Verbo.


“O céu jamais me dê a tentação funesta”

(de invenção de Orfeu”)

O céu jamais me dê a tentação funesta

de adormecer ao léu, na lomba da floresta,

onde há visgo, onde certa erva sucosa e fria,

carnívora decerto o sono nos espia.

Que culpa temos nós dessa planta da infância,

de sua sedução, de seu viço e constância?

Minha cabeça estava em pedra, adormecida,

quando me sobreveio a cena pressentida.

Em sonâmbulo arriei as mãos e os pés culpados

dos passos e do gesto em vão desperdiçados.

Despi-me de outros bens, de glória mais modesta:

reserva-me por fim a minha pobre testa

confundida com a pedra em meio da floresta.

Que doces olhos têm as coisas simples e unas

onde a loucura dorme inteira e sem lacunas!

Agora posso ver as mãos entrecruzadas

e as plantas de meus pés nas entranhas amadas,

nesse início que é a clara insônia verdadeira.

Ó seres primordiais que sois testa e viseira,

restituo-me em vós, sangue e máscara vividos,

desejo de esquecer tempo e espaço existidos;

e em vós e em vossa paz meus solilóquios paro-os

penetro-me do Verbo em seus silêncios claros,

invisto-me de vós, vossa fronte me espia

através dessa pedra em que nasce o meu dia.


Jorge de Lima

(1893-1953)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

Nos versos de Carlos Nejar, Camões não é um tempo ou uma cidade extinta. E jamais pensou ser pai de tantos filhos.


Luiz Vaz de Camões


Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

Carlos Nejar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

quinta-feira, agosto 09, 2007

Agora, creio que vou morrer. Foi assim que, em sua desventura, Cecília Meirelles encerrou um lindo poema de amor.


Desventura

Tu és como o rosto das rosas:

diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.

Teu lábio sorriu para todos os ventos

e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,

como um segredo que cai dos sonho.

Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.

Cecília Meirelles

(1901-1964)

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A mãe de Adélia Prado achava estudo a coisa mais fina do mundo. Mas, para ela, a coisa mais fina do mundo é o sentimento.


Ensinamento

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa
palavra de luxo.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Paulo Mendes Campos não sabia que o tempo cava na face um caminho escuro, onde a formiga passa lutando com a folha. O tempo é seu disfarce.


Sentimento do tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados

Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados

E as borboletas pousavam nos dedos de meus pés.

As coisas estavam mortas, muito mortas,

Mas a vida tem outras portas, muitas portas.

Na terra, três ossos repousavam

Mas há imagens que não podia explicar: me ultrapassavam.

As lágrimas correndo podiam incomodar

Mas ninguém sabe dizer por que deve passar

Como um afogado entre as correntes do mar.

Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz

Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.

Fizeram muitas vezes minha fotografia

Mas meus pais não souberam impedir

Que o sorriso se mudasse em zombaria

Sempre foi assim: vejo um quarto escuro

Onde só existe a cal de um muro.

Costumo ver nos guindastes do porto

O esqueleto funesto de outro mundo morto

Mas não sei ver coisas mais simples como a água.

Fugi e encontrei a cruz do assassinado

Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,

Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.

Meus pássaros caíam sem sentidos.

No olhar do gato passavam muitas horas

Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.

Não sabia que o tempo cava na face

Um caminho escuro, onde a formiga passe

Lutando com a folha.

O tempo é meu disfarce.

Paulo Mendes Campos

(1922-1991)

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quarta-feira, agosto 08, 2007

Tenho a impressão, como de um sonho, de haver melhor em mim do que eu. Mas sou eu mesmo, que remédio, lamenta Álvaro de Campos.


Sou Eu


Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.

Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

Álvaro de Campos,um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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Quando sentires a saudade retroar, fecha os teus olhos e verás o meu sorriso, disse Guimarães Rosa. Para ele, nem a distância apaga a chama da paixão.


Soneto da saudade

Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.
E ternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo!

Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas...
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas...

Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,
Como uma gota de orvalho indo ao chão.
Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos...
Nem a distância apaga a chama da paixão.

Guimarães Rosa

(1908-1967)

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Manoel de Barros é um apanhador de desperdícios e seu quintal é maior que o mundo. Mas só usa a palavra para compor seus silêncios.


O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água, pedra, sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos,
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.


Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

domingo, agosto 05, 2007

No beco de suas tristezas, mas também dos seus amores, dos seus beijos, dos seus sonhos, Manuel Bandeira canta para dizer Adeus para nunca mais.


Última canção do beco

Beco que cantei num dístico

Cheio de elipses mentais,

Beco das minhas tristezas,

Das minhas perplexidades

(Mas também dos meus amores,

Dos meus beijos, dos meus sonhos),

Adeus para nunca mais!

Vão demolir esta casa.

Mas meu quarto vai ficar,

Não como forma imperfeita

Neste mundo de aparências:

Vai ficar na eternidade,

Com seus livros, com seus quadros,

Intacto, suspenso no ar!

Beco de sarças de fogo,

De paixões sem amanhãs,

Quanta luz mediterrânea

No esplendor da adolescência

Não recolheu nestas pedras

O orvalho das madrugadas,

A pureza das manhãs!

Beco das minhas tristezas,

Não me envergonhei de ti!

Foste rua de mulheres?

Todas são filhas de Deus!

Dantes foram carmelitas...

E eras só de pobres quando,

Pobre, vim morar aqui.

Lapa – Lapa do Desterro -,

Lapa que tanto pecais!

(Mas quando bate seis horas,

Na primeira voz dos sinos,

Como na voz que anunciava

A conceição de Maria,

Que graças angelicais!)

Nossa Senhora do Carmo,

De lá de cima do altar,

Pede esmolas para os pobres,

- Para mulheres tão tristes,

Para mulheres tão negras,

Que vêm nas portas do templo

De noite se agasalhar.

Beco que nasceste à sombra

De paredes conventuais,

És como a vida, que é santa

Pesar de todas as quedas.

Por isso te amei constante

E canto para dizer-te

Adeus para nunca mais!

Manuel Bandeira

(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Em sua cantiga de banheiro, Mauro Mota descobre que há na fechadura um olho que chama outro olho. E ele pode ver tudo, quando a moça fica nua.


Cantiga de banheiro

A moça vai tomar banho,

banho domiciliar.

A moça não se dispersa

na piscina nem no mar.

A moça entra no banheiro

e torce a chave e o ferrolho

da porta. (Há na fechadura

um olho que chama outro olho).

A moça vai tomar banho.

Deixa os chinelos no canto.

Perdeu os itinerários.

Solta os cabelos castanhos.

Fica nua. Dela saltam

peitos agressivos de

bicos rubros, insinuantes,

de leite e amor para as bocas

dos babies e dos amantes.

A moça morena espia

dentro do espelho da pia

a exclusivamente sua

liberta beleza nua.

Comprime-se o espelho quando

a moça se distancia.

Na solidão do banheiro,

vê-se emparedada viva

nas paredes do azulejo

e nua fica debaixo

do chuveiro de onde a água

humaniza-se e, acrobata,

dá um pulo da cascata

doméstica com a intenção

de levar a moça longe,

de fazer um filho plástico

no ventre virgem lambido

de esponja e de sabonete.

Quando a branca toalha asséptica

abriu-se na fúria ambiente,

a água já roubara a moça

camuflada pela espuma,

que ia embora pela rua

nadando pela sarjeta

a imagem da moça nua.

Mauro Mota

(1911-1984)

Mais sobre Mauro Mota em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

Para Augusto Meyer, o Minuano vem de longe, vem do pampa e do céu.Traz todas as vozes numa voz, todas as dores numa dor, todas as raivas em sua raiva.


Minuano


Este vento faz pensar no campo, meus amigos,
Este vento vem de longe, vem do pampa e do céu.
Olá compadre, levante a poeira em corrupios,
Assobia e zune encanado na aba do chapéu.
Curvo, o chorão arrepia a grenha fofa,
Giram na dança de roda as folhas mortas
Chaminés botam fumaça horizontal ao sopro louro
E a vaia fina fura a frincha das portas.
Olá compadre, mais alto, mais alto!
As ondas roxas do rio rolando a espuma
Batem nas pedras da praia o tapa claro...
Esfarrapadas, nuvens nuvens galopeiam
No céu gelado, altura azul.
Este vento macho é um batismo de orgulho.
Quando passa lava a cara, enfuna o peito,
Varre a cidade onde eu nasci sobre a coxilha.
Não sou daqui, sou lá de fora...
Ouço o meu grito gritar na voz do vento:
- Mano Poeta, se enganche na minha garupa!
Comedor de horizontes,
Meu compadre andarengo, entra!
Que bem me fez o teu galope de três dias
Quando se atufa zunindo na noite gelada...
Ó mano
Minuano
Upa upa
Na garupa!
Casuarinas cinamonos pinhais
Largo lamento gemido intenso, vento!
Minha infância tem a voz do vento virgem:
Ele ventava sobre o rancho onde morei.
Todas as vozes numa voz, todas as dores numa dor,
Todas as raivas na raiva do meu vento!
Que bem me faz! mais alto, compadre!
Derrube a casa!me leva junto!eu quero o longe!
Não sou daqui, sou lá de fora, ouve o meu grito!
Eu sou o irmão das solidões sem sentido...
Upa upa sobre o pampa e sobre o mar....

Augusto Meyer
(1902-1970)

Mais sobre Augusto Meyer em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Meyer

sexta-feira, agosto 03, 2007

Na carta que não foi mandada, Vinícius de Moraes chora ao lembrar canções do amor demais. Para ele, existe sempre uma mulher pra se ficar pensando.


A carta que não foi mandada

Paris, outono de 73
Estou no nosso bar mais uma vez
E escrevo pra dizer
Que é a mesma taça e a mesma luz
Brilhando no champanhe em vários tons azuis
No espelho em frente eu sou mais um freguês
Um homem que já foi feliz, talvez
E vejo que em seu rosto correm lágrimas de dor
Saudades, certamente, de algum grande amor

Mas ao vê-lo assim tão triste e só
Sou eu que estou chorando
Lágrimas iguais
E, a vida é assim, o tempo passa
E fica relembrando
Canções do amor demais
Sim, será mais um, mais um qualquer
Que vem de vez em quando
E
olha para trás
É, existe sempre uma mulher
Pra se ficar pensando
Nem sei... nem lembro mais

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

A esperança chama e Lya Luft salta a bordo como se fosse a primeira viagem. Para ela, a dor eventual é o preço da vida: passagem, seguro e pedágio.


Ônus

A esperança me chama,
e eu salto a bordo
como se fosse a primeira viagem.
Se não conheço os mapas,
escolho o imprevisto:
qualquer sinal é um bom presságio.

Seja como for, eu vou,
pois quase sempre acredito:
ando de olhos fechados
feito criança brincando de cega.
Mais de uma vez saio ferida
ou quase afogada,
mas não desisto.

A dor eventual é o preço da vida:
passagem, seguro e pedágio.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Eugénio de Andrade está a amar como o frio corta os lábios. Para ele, assim é o amor: mortal e navegável.


O amor

Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.

A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.

A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.

Assim é o amor: mortal e navegável.

Eugénio de Andrade

(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quinta-feira, agosto 02, 2007

Em seus versos, Cecília Meirelles nos ensina que a vida, a vida só é possível reinventada.


Reinvenção


A vida só é possível
reinventada.

Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinas
de ilusionismo... - mais nada.

Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.

Não te encontro, não te alcanço...
Só - no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só - na treva,
fico: recebida e dada.

Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.

Cecília Meirelles

(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Paulo Leminski não sabe se amor acaba. Mas sabe que a vida se encarrega de transformar o amor em raiva, ou em rima.


Amor, então

Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.

Paulo Leminski

(1944-1989)

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José Régio sabe que é uma paródia dele mesmo. Sabe tudo, e para quê, por que sabê-lo? Afinal, viver é entrar no rol dos que não o sabem!


Struggle for life

Sim, bem sei que o tablado em que figuro
Longe está bem de mim léguas e léguas.
Minhas pupilas viam longe... e eu cego-as;
Mas sei que finjo achar o que procuro.

Sei que o meu sonho é imenso e anseia ar puro,
Mas, no meu gabinete, o meço a réguas.
Sei que devo aguardar, velar sem tréguas,
Mas busco o sono e embrulho-me no escuro.

Sei que este meu aspecto dúbio, fez-mo
A vida em que o meu Ser supremo e belo
E os meus gestos indómitos não cabem.

Sei que sou a paródia de mim mesmo.
Sei tudo... E para quê?, porque sabê-lo?
Viver é entrar no rol dos que o não sabem!

José Régio

(1901-1969)

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quarta-feira, agosto 01, 2007

Drummond descobriu que no céu também há uma hora melancólica. É quando Deus se pergunta, por que fiz o mundo? E se responde, não sei.


Tristeza no céu

No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra as almas.
Porque fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.

Os anjos olham-no com reprovação,
e plumas caem. Todas as hipóteses: a graça, a eternidade,
o amor caem, são plumas.

Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Nuno Júdice até sabe, mas como dizer que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca se poderá ter, e ter o que está condenado a perder-se?


Poema

Podemos falar dos sentimentos, descrever
as impressões que nos ameaçam, e revelar o vazio
que se descobre na ausência um do outro: nada,
porém, é tão inquietante como a dúvida,
o não saber de ti, ouvir o desânimo na tua voz,
agora que a tarde começa a descer e, com ela,
todas as sombras da alma. É verdade que o amor não é
apenas um registo de memórias. É no presente
que temos de o encontrar: aí, onde a tua imagem
se tornou mais real do que tu própria,
mesmo que nada te substitua. Então, é
porque as palavras são supérfluas; mas como viver
sem elas? Como encontrar outra forma de te dizer
que o amor é esta coisa tão estranha, dar o que nunca
se poderá ter, e ter o que está condenado
a perder-se? A não ser que guardemos dentro de nós,
num canto de um e outro a que só nós chegamos,
sabendo que esse pouco que nos pertence é
tudo o que cabe neste sentimento.

Nuno Júdice

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Sophia de Mello Breyner um dia quebrará todas as pontes que a ligam à agitação do mundo do irreal. E irá até as fontes beber a voz de uma promessa.


As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um vôo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner

(1919-2004)

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