quinta-feira, março 28, 2013

Por enquanto, o assunto de Ferreira Gullar é a desordem, o que se nega à fala. Mas a fala, para ele, não fede nem cheira.


Desordem

meu assunto por enquanto é a desordem
o que se nega
à fala

o que escapa
ao acurado apuro
do dizer
a borra
a sobra
a escória
a incúria
o não caber

ou talvez
- pior dizendo -
o que a linguagem
não disse
por não dizer

porque
por mais que diga
e porque disse
sempre restará
no dito
o mundo
o por dizer
já que não é da linguagem
dizer tudo

ou é
se se
entender
que
o que foi dito
é o que é
e por isso
nada há mais por dizer

portanto
o meu assunto
é o não dito não
o sublime indizível
mas o fortuito
e possível
de ser dito
e não o é
por descuido
ou por intuito
já que somente a própria coisa
se diz toda
(por ser muda)

é próprio da palavra
não dizer
ou
melhor dizendo
só dizer
a palavra
é o não ser

isto porque
a coisa
(o ser)
repousa
fora de toda
fala
ou ordem sintática

e o dito (a
não coisa) é só
gramática

o jasmim, por exemplo,
é um sistema
como a aranha
(diferente do poema)
o perfume
é um tipo de desordem
a que o olfato
põe ordem
e sorve
mas o que ele diz
excede à ordem
do falar
por isso
que

desordenando
a escrita
talvez se diga
aquela perfunctória
ordem
inaudita

uma pera
também
funciona
como máquina
viva
enquanto quando
podre
entra ela (o sistema)
em desordem:
instala-se a anarquia
dos ácidos
e a polpa se desfaz
em tumulto
e diz
assim
bem mais do que dizia
ao extravasar
o dizer

dir-se-ia
então
que
para dizer
a desordem
da fruta
teria a fala
- como a pera -
de se desfazer?
que de certo
modo
apodrecer?

mas a fala
é só rumor
e idéia
não exala
odor
(como a pera)
pela casa inteira

a fala, meu amor,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar








quarta-feira, março 27, 2013

A casa que Eugénio de Andrade só tem no poema ergue-se pedra a pedra. Um dia a casa será bosque e ele encontrará a fonte onde um rumor de água será só silêncio.


Metamorfoses da casa

Ergue-se aérea pedra a pedra
a casa que só tenho no poema.

A casa dorme, sonha no vento
a delícia súbita de ser mastro.

Como estremece um torso delicado,
assim a casa, assim um barco.

Uma gaivota passa e outra e outra,
a casa não resiste: também voa.

Ah, um dia a casa será bosque,
à sua sombra encontrarei a fonte
onde um rumor de água é só silêncio.


Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

terça-feira, março 26, 2013

Suspiro do vento, lágrima do mar, este tormento ainda pode acabar? A dúvida, no sofrimento de Cecília Meireles.


Noturno

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
este tormento
ainda pode acabar?

De dia e de noite,
meu sonho combate:
vem sombras, vão sombras,
não há quem o mate!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
as armas que invento
são aromas no ar!

Mandai-me soldados
de estirpe mais forte,
com todas as armas
que levam à morte!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
meu pensamento
não sabe matar!

Mandai-me esse arcanjo
de verde cavalo,
que desça a este campo
a desbaratá-lo!

Suspiro do vento,
lágrima do mar,
que leve esse arcanjo meu longo tormento,
e também a mim, para o acompanhar!

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em

segunda-feira, março 25, 2013

Tomara, apenas uma palavra. E Vinicius disse tudo que gostaria que ela entendesse.


Tomara

Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho

Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz

E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz
E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

domingo, março 24, 2013

Manuel Bandeira diz que deve ser bom gostar de uma mulher feia! Mas reconhece que o seu amor porém não tem bondade alguma, é fraco, fraco!


Mulheres

Como as mulheres são lindas!
Inútil pensar que é do vestido...
E depois não há só as bonitas:
Há também as simpáticas.
E as feias em cujos olhos vejo isto:
Uma menininha que é batida e pisada e nunca sai da cozinha.
Como deve ser bom gostar de uma feia!
O meu amor porém não tem bondade alguma.
É fraco! fraco!.
Meu Deus, eu amo como as criancinhas...

És linda como um história da carochinha...
E eu preciso de ti como precisava de mamãe e papai
(No tempo em que pensava que os ladrões moravam no morro atrás de casa e tinham cara de pau).

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sexta-feira, março 22, 2013

Florbela Espanca procurou o amor que lhe mentiu. E chegou à conclusão que pediu à Vida mais do que ela lhe dava.


Inconstância

Procurei o amor que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava.
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!

Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!

Passei a vida a amar e a esquecer...
Um sol a apagar-se e outro a acender
Nas brumas dos atalhos por onde ando...

E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há de partir também... nem eu sei quando...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

quinta-feira, março 21, 2013

Cora Coralina aceitou contradições, lutas e pedras como lições de vida e delas se serviu. Assim, aprendeu a viver.


Assim eu vejo a vida

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria.
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes.
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo.
Aprendi a viver.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

quarta-feira, março 20, 2013

Leminski nunca quis ser freguês distinto, pedindo isso e aquilo. Ele queria entrar com os dois pés no peito dos porteiros.


Nunca quis ser

Nunca quis ser
Freguês distinto
Pedindo isso e aquilo
Vinho tinto
Obrigado
Hasta la vista

Queria entrar
Com os dois pés
No peito dos porteiros
Dizendo pro espelho
- cala a boca
E pro relógio
- abaixo os ponteiros

terça-feira, março 19, 2013

Para Emílio Moura, viver não dói. O que dói é a vida que se não vive, que tudo o mais é perdido.


Canção

Viver não dói. O que dói
é a vida que se não vive.
Tanto mais bela sonhada,
quanto mais triste perdida.

Viver não dói. O que dói
é o tempo, essa força onírica
em que se criam os mitos
que o próprio tempo devora.

Viver não dói. O que dói
é essa estranha lucidez,
misto de fome e de sede
com que tudo devoramos.

Viver não dói. O que dói,
ferindo fundo, ferindo,
é a distância infinita
entre a vida que se pensa
e o pensamento vivido.

Que tudo o mais é perdido. 


Emílio Moura
(1902-1971)

Mais sobre Emílio Moura em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Moura

segunda-feira, março 18, 2013

Que é que fiz, não fiz, de mim, que é que fiz na vida, da vida? Darcy Ribeiro sente-se só cheio de saudades dele mesmo, dos tantos "eus" que ele foi.


Idos Sidos

Que é que fiz, não fiz, de mim?
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.
Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.
Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.
As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.
Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.
Quem sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.
Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.

Darcy Ribeiro
(1922-1997)

Mais sobre Darcy Ribeiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Darcy_Ribeiro

domingo, março 17, 2013

Palavras, versos, poesia, o balanço de uma vida. De Carlos Drummond de Andrade para todos nós.


Balanço

A pobreza do eu
a opulência do mundo

A opulência do eu
a pobreza do mundo

A pobreza de tudo
a opulência de tudo

A incerteza de tudo
na certeza de nada.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

sexta-feira, março 15, 2013

Pedra sendo, Manoel de Barros tem gosto de jazer no chão. E ainda vê outros privilégios de ser pedra.


A pedra

Pedra sendo
Eu tenho gosto de jazer no chão.
Só privo com lagarto e borboletas.
Certas conchas se abrigam em mim.
De meus interstícios crescem musgos.
Passarinhos me usam para afiar seus bicos.
Às vezes uma garça me ocupa de dia.
Fico louvoso.
Há outros privilégios de ser pedra:
a - Eu irrito o silêncio dos insetos.
b - Sou batido de luar nas solitudes.
c - Tomo banho de orvalho de manhã.
d - E o sol me cumprimenta por primeiro


Manoel de Barros
(1916)

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

quinta-feira, março 14, 2013

Venham, vamos falar de sujeira, grita Alexander Search! A maldição de Deus está sobre nossas cabeças!


Canção suja 

Venham, vamos falar de sujeira!
A maldição de Deus está sobre nossas cabeças!
Deixemos que os nossos lábios derramem irreverência!
Nós somos todos sofredores; vamos, ao invés
De preces, oferecer a Deus o sacrifício
Das nossas mentes que ele amaldiçoou com crime e vício,
Dos nossos corpos a quem a doença atemoriza!

Vamos oferecer ao maior tirano de todos,
Para que perdure na entrada de seu palácio de dor,
Uma mortalha,
E um vestido branco de noiva com uma mancha,
E as vestes enlutadas da viúva, e os lençóis amarrotados
Da cama da esposa.
Deixem que simbolizem o conflito humano!
Dê-me Deus a sujeira das ruas
Do nosso espírito, feito lama como nossas lágrimas
A poeira das nossas alegrias, o lodaçal dos nossos medos,
E a podridão da nossa vida!

Alexandre Search, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935))

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, março 13, 2013

Para Ronald de Carvalho, a realidade é apenas um milagre da nossa fantasia. Porque transforma numa Eternidade o teu rápido instante de alegria.


Filosofia

A realidade é apenas
um milagre da nossa fantasia...
Transforma numa Eternidade
o teu rápido instante de alegria!
Ama, chora, sorri... e dormirás sem penas,
porque foi bela a tua realidade.

Ronald de Carvalho
(1893-1935)

Mais sobre Ronald de Carvalho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_de_Carvalho

segunda-feira, março 11, 2013

Um poema melancólico a não sei que mulher. Um poema com um sentimento que pode ser o meu, o seu ou o de Miguel Torga.


Poema melancólico a não sei que mulher

Dei-te os dias, as horas e os minutos 
Destes anos de vida que passaram;
Nos meus versos ficaram
Imagens que são máscaras anónimas
Do teu rosto proibido;
A fome insatisfeita que senti
Era de ti,
Fome do instinto que não foi ouvido.

Agora retrocedo, leio os versos,
Conto as desilusões no rol do coração,
Recordo o pesadelo dos desejos,
Olho o deserto humano desolado,
E pergunto porquê, por que razão
Nas dunas do teu peito o vento passa
Sem tropeçar na graça
Do mais leve sinal da minha mão... 


Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga


sexta-feira, março 08, 2013

Para todos as mulheres, de Vinicius de Moraes.


Poema para todas as mulheres

No teu branco seio eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas.
Ai! Teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pêlos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha quero o colo de Nossa Senhora!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

quinta-feira, março 07, 2013

Mario Quintana diz que é um deixador, tem mania de deixar tudo para depois. E que só porque vai deixando tudo para depois é que Deus é eterno e o mundo incompleto.


O deixador

Eu tenho mania de deixar tudo para depois...
Depois a contagem das cartas e responder...
Depois a arrumação das coisas...
Depois, Adalgisa...Ah,
Me lembrar mais uma vez de romper definitivamente com Adalgisa!
Depois, tanta, tanta coisa...
Depois o testamento as últimas vontades a morte
Só porque vai deixando tudo para depois
É que Deus é eterno
E o mundo incompleto
Inquieto...
Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!

Mario Quintana
(1906-1994)
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quarta-feira, março 06, 2013

Rui Espinheira nos lembra as palavras finais de Sá-Carneiro quando decidiu abraçar a noite escura: "Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou."


De súbito, do nada, uma carta

Sá-Carneiro disse, em carta, não incomodá-lo muito a possibilidade
de suicídio,
mas a consciência de
ter de morrer forçosamente um dia.
Seu correspondente deve ter pensado em tais palavras muitas vezes
ao escrever certos versos,
como, por exemplo
(16 anos mais tarde, com a alma já por si conturbada
de Álvaro de Campos)
alguns de Tabacaria,
nos quais observou que o dono da loja morreria,
como ele próprio,
um deixando a tabuleta, o outro versos,
que a certa altura também morreriam,
como morreria depois a rua onde estivera a tabuleta
e a língua em que foram escritos os versos,
e, por fim, o planeta girante em que tudo isto se deu.
Sim, tais reflexões já tumultuavam Sá-Carneiro,
mas com menos longo sofrimento,
porque logo soube livrar-se delas com
cinco frascos de arseniato de estricnina
em 26 de abril de 1916,
aos 26 anos de idade.
às 8 da noite, no Hotel Nice,
Paris. E assim
terminou o tormento do Esfinge Gorda,
como certa vez se definiu.
E que ainda mais gorda e com mais mistérios de esfinge ficou,
após a morte,
avolumando-se a ponto de mal caber no caixão,
tornando definitivamente impossível que seu enterro fosse levado sobre um burro,
como pedira num poema,
embora tivesse lembrado
(como se antevendo sua última vontade
não sendo respeitada)
que a um morto nada se recusa,
e insistindo mesmo, peremptório:E eu quero por força ir de burro.(Não, ninguém se moveu para encontrar um burro capaz
de tal façanha,
ainda que não
— como pedido —
ajaezado à andaluza.Sim, a um morto tudo pode ser
recusado.)
 

2
Não sei como as linhas acima se escreveram,
pois não havia pensado em nada parecido.
Pelo que recordo, pensara que estava velho,
não propriamente por me sentir assim,
mas por constatar que de então a agora
passara muito tempo.
É a lógica, bastante desagradável:
se muito tempo passou desde a nossa juventude
não há o que discutir: estamos velhos.
Quanto mais tempo, mais velhos.
Sem dúvida, o que de melhor havia no Paraíso,
antes da descoberta do fruto do bem e do mal,
era a ausência de lógica. Não houve nenhuma lógica
na Criação,
as possíveis justificativas do Criador não têm lógica.
Apenas, entediado por tamanha Eternidade,
Ele resolveu brincar de Deus. E, como não havia
nenhuma lógica em tudo isso
(pois só uma absoluta falta de lógica admitiria a criação de algo
tão tentador que poria fatalmente em risco o equilíbrio do Éden),
deu no que deu.
 
3
Coisas assim é que eu pensava,
quando saltou do nada a carta do poeta
para outro poeta.
Assim me tem sido a vida com frequência:
tarda (às vezes indefinidamente) no que espero
e de súbito serve
o inesperado.
Tudo bem, contando que não venha a lógica
deduzir que eu tenha forçosamente de estar velho
já que de então a agora muito tempo passou.
O tempo, que se oferece ironicamente em Ontem
(que já não é),
Hoje
(que acabou de ser)
e Amanhã
(que, se chegar, não chegará,
pois logo será o que acabou de ser,
o que já não é).
Enfim, envolvido em incômodos
similares aos meus,
e em linguagem bem melhor,
suspirou Ricardo Reis: ...
e quanto pouco falta
para o fim do futuro!
 
4
Ah, o quanto pouco falta...
Aliás, uma característica do tempo: subtrair-se avaramente,
sobretudo quando gostaríamos que permanecesse mais...
Difícil acreditar que faz pouco,
muito pouco,
estávamos todos aqui...
E então, de súbito,
tivemos e temos que
forçosamente morrer...

5
Bem, Sá-Carneiro resolveu tudo por conta própria,
interrompendo o que sentia como apenas cruel alongamento do tempo;
apagando os remorsos que eram como
terraços sobre o Mar,
deixando-nos as palavras com que também gostaríamos de abrir
docemente
a nossa noite:

Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.

Rui Espinheira Filho
(1970)

Mais sobre Rui Espinheira Filho em

terça-feira, março 05, 2013

Os livros de Jorge Luis Borges não sabem que ele existe. Melhor desse modo, as vozes dos mortos o dirão para sempre.


Mis libros

Mis libros (que no saben que yo existo)
son tan parte de mí como este rostro
de sienes grises y de grises ojos
que vanamente busco en los cristales
y que recorro con la mano cóncava.
No sin alguna lógica amargura
pienso que las palabras esenciales
que me expresan están en esas hojas
que no saben quién soy, no en las que he escrito.
Mejor así. Las voces de los muertos
me dirán para siempre.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

Mais sobre Jorge Luis Borges em 
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_luis_borges