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quinta-feira, janeiro 24, 2013

Carlos Pena e o refrão do Bar Savoy: são trinta copos de chopp, são trinta homens sentados, trezentos desejos presos, trinta mil sonhos frustrados.


Chopp


Na avenida Guararapes,
o Recife vai marchando.
O bairro de Santo Antonio,
tanto se foi transformando
que, agora, às cinco da tarde,
mais se assemelha a um festim,
nas mesas do Bar Savoy,
o refrão tem sido assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados.
Ah, mas se a gente pudesse
fazer o que tem vontade:
espiar o banho de uma,
a outra amar pela metade
e daquela que é mais linda
quebrar a rija vaidade.
Mas como a gente não pode
fazer o que tem vontade,
o jeito é mudar a vida
num diabólico festim.
Por isso no Bar Savoy,
o refrão é sempre assim:
São trinta copos de chopp,
são trinta homens sentados,
trezentos desejos presos,
trinta mil sonhos frustrados

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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segunda-feira, maio 21, 2012

Carlos Pena Filho emociona com a lembrança do solitário sofrimento da eterna musa. Em louvor da decadência bem comportada.


Soneto para Greta Garbo

(Em louvor da decadência bem comportada)

Entre silêncio e sombra se devora
e em longínquas lembranças se consome
tão longe que esqueceu o próprio nome
e talvez já não sabe por que chora

Perdido o encanto de esperar agora
o antigo deslumbrar que já não cabe
transforma-se em silêncio porque sabe
que o silêncio se oculta e se evapora

Esquiva e só como convém a um dia
despregado do tempo, esconde a tua face
que já foi sol e agora é cinza fria

Mas vê nascer da sombra outra alegria
como se o olhar magoado contemplasse
o mundo em que viveu, mas que não via.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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sexta-feira, março 09, 2012

Nos versos de Carlos Pena Filho, depois de fazer-se cinza, Carolina, a cansada, se lembrou de ser esquife. Abandonou seu corpo incendiado e adormeceu nas brumas do Recife.


Soneto das metamorfoses

Carolina, a cansada, fez-se espera.
Não por temor ao mar, mas ao perigo
de com ela incendiar-se a primavera.

Carolina, a cansada, que então era,
despiu, humildemente, as vestes pretas,
e incendiou navios e corvetas
já cansada, por fim, de tanta espera.

E cinza fez-se. E teve o corpo implume
escandalosamente penetrado
de imprevistos azuis e claro lume.

Foi quando se lembrou de ser esquife:
abandonou seu corpo incendiado
e adormeceu nas brumas do Recife.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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terça-feira, março 08, 2011

Carlos Pena vive o regresso de quem, estando no mundo, volta ao sertão. Onde os avelozes são verdes intervalos mostrando a qualquer passante que o nada também tem dono.



O regresso de quem, estando no mundo, volta ao sertão

Eis-me agora, rio acima,
construindo o entardecer.

Desta planície azulverde,
cidade de rio e mar,
irei até onde a terra
deixou terras por achar,

nas claras ruínas do sol,
de chão cego aos vegetais
e que de amor tem apenas
as patas dos animais.

Entre canas, pelo rio
claríssimo, aí começo,
sob o sol duro do estio,
meu luminoso regresso.

Árvores gordas se espalham
nesta flora feminina;
chão de açúcar, terra doce
que se arredonda em colinas.

Outrora, aqui, os engenhos
recortavam a campina.
Veio o tempo e os engoliu
e ao tempo engoliu a usina.

Um ou outro ainda há que diga
que o tempo vence no fim:
um dia ele engole a usina
como engole a ti e a mim,

pois foi essa mesma fera
que engole moça e criança,
que fez o barão, gerente,
e a baronesa, lembrança.

E mais fará, noite adentro
na sombra onde a morte aguarda
e põe nos corpos dos homens
doença, faca, espingarda.

Mas, como tudo no mundo
com o tempo a gente se esquece
do tempo e nem vê que é nele
que a gente acorda e adormece...

Daqui eu já vejo o vale
do Capibaribe lento
e, enquanto vejo, descubro
que o verde, ao longe, é cinzento.

Pois, como tudo o que nasce,
a cor também se elabora,
como o minuto que se une
ao outro e organiza a hora,

como esta vasta planície
que foi semeada agora,
a chuva mistura a terra
e explode o verde da flora.

Depois as plantas expulsam
o excesso de cor violenta
e o céu recolhe do espaço
o azul de que se alimenta.

Este céu que cobre o mundo
de arruados sem mistério;
cada qual igreja e sino,
cadeia, alvo cemitério.

Do alto de um morro qualquer,
ou da Serra dos Cavalos,
vejo as cercas de avelozes
que são verdes intervalos

dividindo terras secas
onde só cresce o abandono,
mostrando a qualquer passante
que o nada também tem dono.

O agreste é, às vezes, surpresa:
num pé de serra qualquer,
enxada, casa, fumaça,
menina, homem, mulher.

Um boi que procura a sombra,
água limpa na levada,
menino alegre por ter
sua dor organizada.

E em volta, nas terras secas,
onde só cresce o abandono,
os avelozes indicam
que o nada tem dono.

Bem depois desse lugar
por Arcoverde chamado,
caminho no duro chão
do sertão desidratado.

É fama quando havia
solidãonestas paragens,
um mascote interrompia
aqui, as suas viagens.

Seu cavalo adormecia
sem ter sombra de ramagem
e o mascote, quando a noite
descoloria a paisagem,

ia a uma venda que havia
neste ponto de passagem.
- Minha comadre Maria
dê-me aguardente e coragem

que o tempo é ave bravia
nesta campina selvagem
e o mal, cadela vadia,
passeia solto, na aragem.

Minha comadre Maria,
dê-me agurdente e coragem,
para esperar pelo dia
nesta campina selvagem.

Mas, quem regressa, bem sabe
que o demônio aqui não mora,
que ele não tem pés de cabra
e nunca viu uma espora.

Dele é apenas este sol
que brilha e tudo devora
ou a alma de algum passante
que chegou, vindo de fora.

Como eu, que vivi tão longe,
sempre o renegado, embora,
mas que dormi alta noite
e não vi nascer a aurora.

Que passei anos a fio
sem ver bois, sem ver cavalos,
sem ver nem mesmo avelozes,
esses verdes intervalos

que lá no agreste dividem
a terra despedaçada
mas que um dia hão de crescer
enchendo de verde o nada.

Eis-me agora, sem um rio,
neste duro entardecer.
Nesta planície amarela,

terra sem rio nem mar,
de onde saí mas deixei
e, por isso vim buscar

as claras ruínas do sol
onde não me hei de perder,
embora não tenha um rio
neste duro entardecer.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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sexta-feira, setembro 18, 2009

No poema de Carlos Pena, o adolescente olhou para trás e sentiu que perdera-se todo o afeto. Olhou para a frente e viu o nada por objeto.


Retrato breve do adolescente


Aos dez anos, tinha apenas
um catecismo discreto
e os olhos presos nas alvas
e nudas formas do teto.
Às vezes, em dias claros,
em tardes de sol concreto
retirava os olhos mudos
das alvas formas do teto,
sonhara tempos e navios,
mas seu sonho predileto
estava nos negros olhos
que habitavam seu afeto
e que ele há tanto buscava
longe das formas do teto.

Um dia, a chuva imprevista
que às vezes sai do verão
dormiu sobre o seu telhado
mostrou-lhe a imaginação,
tempo em que foi visitado
seu humilde coração
por Isa, Rosa e uma vaga
Maria da Conceição
e aquele mais do que nunca
herói do sonhar em vão
foi dormir com todas elas
nas curvas da própria mão.

Num dia de aniversário
usou (a primeira vez)
solenes calças compridas,
gravata alegre. Era o mês
em que nos campos mais frios
e em outros campos, talvez,
inauguravam-se as rosas
imitando a quem as fez
e aquele mais do que nunca,
latino por sua tez,
apascentou em silêncio
as coisas que nunca fez.

Depois, a moça morena
que em sua rua morava,
embora sendo tão pouco
para quem tanto aguardava,
mostrou-lhe: o esperar é vão.

E veio o beijo roubado
na penumbra do portão.
Enfim, na noite mais forte
que houvera em todo o verão
ambos foram dormir juntos
aquém das curvas da mão.

Aos dezoito olhou pra trás:
perdera-se todo o afeto.
Olhou para a frente e viu
o nada por objeto.
Olhou pra cima e sorriu
das alvas formas do teto.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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domingo, julho 19, 2009

Carlos Pena vê o Nordeste dos homens que trabalham. No mar e nos rios, na bagaceira dos engenhos, no cais do Apolo, nos trapiches de Maceió.


No Nordeste


Um Nordeste
onde nunca deixa de haver
uma mancha dágua:
um avanço de mar, um rio, um riacho,
o esverdeado de uma lagoa.
Onde a água faz da terra mole o que quer:
inventa ilhas, desmancha istmos e cabos.
altera a seu gosto a geografia convencional
dos compêndios.
Um Nordeste da terra.
Das árvores lambuzadas de resinas.
Das águas.
Do corpo molhado dos homens que trabalham
dentro do mar e dos rios,
na bagaceira dos engenhos,
no cais do Apolo,
nos trapiches de Maceió.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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segunda-feira, março 30, 2009

No retrato de Carlos Pena, ela está debruçada na areia, diante do mar. E o sol desliza por seu corpo salgado, enxuto e belo, como se nuvem fosse.


Retrato na praia


Ei-la ao sol, como um claro desafio
ao tenuíssimo azul predominante.
Debruçada na areia e assim, diante
do mar, é um animal rude e bravio.

Bem perto, há um comentário sobre estio,
mormaço e sonolência. Lá, distante,
muito vagos indícios de um navio
que ela talvez contemple nesse instante.

Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza
por seu corpo salgado, enxuto e belo,
como se nuvem fosse, ou quase brisa.

E desce por seus braços, e rodeia
seu brevíssimo e branco tornozelo,
onde se aquece e cresce, e se incendeia.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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sexta-feira, fevereiro 27, 2009

Senhora de muito espanto e alguns farrapos de sono. Um dia perdi teu corpo nas cores do mapa-múndi, lamenta Carlos Pena Filho em seus versos de amor.


Poema


Senhora de muito espanto,
vestindo coisas longínquas
e alguns farrapos de sono,

eu vim para te dizer
que inutilmente contemplo
na planície de teus olhos
o incêndio do meu orgulho.

Senhora de muito espanto,
sentada além do crepúsculo
e perfeitamente alheia
a realejos e manhãs.

Eu vim para te mostrar
que se inaugurou um abismo
vertical e indefinido
que vai do meu lábio arguto
ao chumbo do teu vestido.

Senhora de muito espanto
e alguns farrapos de sono,
onde o céu é coisa gasta
que ao meu gesto se confunde.

Um dia perdi teu corpo
nas cores do mapa-múndi.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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sábado, fevereiro 07, 2009

Quem já ouviu a canção, raramente sabe de quem são esses lindos versos. Mas quem conhece a obra do poeta Carlos Pena não fica nem um pouco surpreso.


A mesma rosa amarela


Você tem quase tudo dela,
o mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela,
só não tem o meu amor.

Mas nestes dias de carnaval
para mim, você vai ser ela.
O mesmo perfume, a mesma cor,
a mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será
quando chegar a lembrança dela
e de você apenas restar
a mesma rosa amarela,
a mesma rosa amarela.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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quinta-feira, janeiro 08, 2009

Carlos Pena diz que não falará de coisas, mas de inventos e buscas no esquisito. E que chegará à cor do grito, a música das cores e do vento.


Soneto das definições


Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.

Mutiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.

Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos mais raros.

Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.


Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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domingo, novembro 09, 2008

Metade roubada ao mar, metade à imaginação, pois é dos sonhos dos homens que uma cidade se inventa. Recife, nos versos imortais de Carlos Pena

Guia Prático da Cidade do Recife

No ponto onde o mar se extingue
E as areias se levantam
Cavaram seus alicerces
Na surda sombra da terra
E levantaram seus muros.
Depois armaram seus flancos:
Trinta bandeiras azuis
Plantadas no litoral.
Hoje, serena, flutua,
Metade roubada ao mar,
Metade à imaginação,
Pois é do sonho dos homens
Que uma cidade se inventa.

Carlos Pena Filho

(1929-1960)

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terça-feira, outubro 28, 2008

No além de tuas pernas, onde Deus repousou a sua face, desvendo a rosa que és. A mística e sombria, a noturna e serena rosa fria, diz Carlos Pena.


A rosa, no íntimo

Entro em teu breve sono, onde os minutos
são três pássaros líquidos e enormes,
e descubro os gelados aquedutos
guardiães do silêncio, enquanto dormes.

Pouso a cabeça nos teus lábios sujos
de mundo e tempo, e vejo que possuis
em teus seios, dois bêbedos marujos
desesperados, sós, raros, azuis.

Enfim, além (no além de tuas pernas
onde Deus repousou a sua face,
cansado de inventar coisas eternas)

desvendo, ao desespero de quem passe,
a rosa que és, a mística e sombria
a noturna e serena rosa fria.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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terça-feira, outubro 07, 2008

A solidão povoada de instrumentos era uma carga enorme e sem sentido. Um silêncio magoado e impermeável, no sentimento de Carlos Pena Filho.


A solidão e o seu desgaste


Freqüentador da solidão, às vezes
Jogava ao ar um desespero ou outro,
Mas guardava os menores objetos
Onde a vida morava e o amor nascia.

Era uma carga enorme e sem sentido,
Um silêncio magoado e impermeável...
A solidão povoada de instrumentos,
Roubando espaço à andeja liberdade.

Mas, hoje, é outro que nem lembra aquele
Passeia pelos campos e os despreza
E porque sabe com certeza clara,

O princípio e o fim da coisa amada,
Guarda pouco da vida e o que retém
É só pelo impossível de eximir-se.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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quarta-feira, setembro 03, 2008

Em sua busca de amor, os versos de Carlos Pena: avançada no tempo, te esqueceste, como esqueço o caminho onde não vou e a face que na rua não passou.


Soneto da busca


Eu quase te busquei entre os bambus
para o encontro campestre de janeiro
porém, arisca que és, logo supus
que há muito já compunhas fevereiro.

Dispersei-me na curva como a luz
do sol que agora estanca-se no outeiro
e assim também, meu sonho se reduz
de encontro ao obstáculo primeiro.

Avançada no tempo, te perdeste
sobre o verde capim, atrás do arbusto
que nasceu para esconder de mim teu busto.

Avançada no tempo, te esqueceste
como esqueço o caminho onde não vou
e a face que na rua não passou.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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quarta-feira, agosto 06, 2008

Carlos Pena Filho sempre será lembrado pela sua poesia nada superficial e esguia, como no soneto que dedicou à Madame. Afinal, eternos eles não eram.


Soneto superficial e esguio como Madame

Madame, em vosso claro olhar, e leve,
navegam coloridas geografias,
azul de litoral, paredes frias,
vontade de fazer o que não deve

ser feito, por ser coisa de outras dias
vivida num instante muito breve,
quando extraímos sal, areia e neve
de vossas mãos, singularmente esguias.

Que eternos somos, dúvida não tenho,
nem posso abandonar minha planície
sem saber se em vós há o que em vós venho

buscar. E embora em nós tudo nos chame,
jamais navegarei a superfície
de vosso claro e leve olhar, Madame.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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quinta-feira, abril 10, 2008

Havia na planície um passarinho, um pé de milho, uma mulher sentada e um homem deitado no caminho. Sobre eles, Carlos Pena pinta um retrato campestre.


Retrato campestre


Havia na planície um passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.
E era só. Nenhum deles tinha nada
com o homem deitado no caminho.

O vento veio e pôs em desalinho
a cabeleira da mulher sentada
e despertou o homem lá na estrada
e fez canto nascer no passarinho.

O homem levantou-se e veio, olhando
a cabeleira da mulher voando
na calma da planície desolada.

Mas logo regressou ao seu caminho
deixando atrás um quieto passarinho,
um pé de milho e uma mulher sentada.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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terça-feira, março 18, 2008

Quanto mais dádivas sua amada recebia, ainda mais exigia. Então, Carlos Pena deu-lhe o frio esquecimento e mais não podia dar.


As dádivas do amante


Deu-lhe a mais limpa manhã
Que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
E mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
Deu-lhe o verde da ramagem,
Deu-lhe o sol do meio dia
E uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
E a que ainda estava por vir,
Deu-lhe a bruma dissipada
Que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
Em que uma rosa floriu
Nascida do próprio vento;
Ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
E um amanhecer violento
Que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
E mais não podia dar.

Carlos Pena Filho

(1929-1960)

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terça-feira, fevereiro 19, 2008

Quem te ouvir não entenderá essas cantigas que trouxeste do fundo do mar morto. Mas teu segredo é meu, diz Carlos Pena em seus lindos versos de amor.


Marinha


Tu nasceste no mundo do sargaço
da gestação de búzios, nas areias.
Correm águas do mar em tuas veias,
dormem peixes de prata em teu regaço.

Descobri tua origem, teu espaço,
pelas canções marinhas que semeias.
Por isso as tuas mãos são tão alheias,
Por isso teu olhar é triste e baço.

Mas teu segredo é meu, ó, não me digas
onde é tua pousada, onde é teu porto,
e onde moram sereias tão amigas.

Quem te ouvir, ficará sem teu conforto
pois não entenderá essas cantigas
que trouxeste do fundo do mar morto.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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segunda-feira, agosto 13, 2007

Para fazer um soneto, diz Carlos Pena, tome um pouco de azul, se a tarde é clara.E espere um instante que Deus prepara e lhe oferta a palavra inicial.


Para fazer um Soneto

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere um instante ocasional
neste curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial

Ai, adote uma atitude avara
se você preferir a cor local
não use mais que o sol da sua cara
e um pedaço de fundo de quintal

Se não procure o cinza e esta vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse
antes, deixe levá-lo a correnteza

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza
ponha tudo de lado e então comece.

Carlos Pena Filho

(1929-1960)

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terça-feira, julho 10, 2007

Como todo homem sensato, Carlos Pena deixou um testamento. E pediu ao seu amor: aceita o que te deixo, o quase nada destas palavras que te digo aqui.


Testamento do homem sensato

Quando eu morrer, não faças disparates
nem fiques a pensar: “Ele era assim...”
Mas senta-te num banco de jardim,
calmamente comendo chocolates.

Aceita o que te deixo, o quase nada
destas palavras que te digo aqui:
Foi mais que longa a vida que eu vivi,
para ser em lembranças prolongada.

Porém, se um dia, só, na tarde em queda,
surgir uma lembrança desgarrada,
ave que nasce e em vôo se arremeda,

deixa-a pousar em teu silêncio, leve
como se apenas fosse imaginada,
como uma luz, mais que distante, breve.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

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