sexta-feira, novembro 29, 2013

Os índios procuraram e não encontraram, os revolucionários do meu tempo também. Como Sophia de Mello Breyner, também pergunto: será ainda possível?


O país sem mal

Um etnólogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de longa busca
Una tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e carpinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal -
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado

Sophia de Mello Breyner
(1919=2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

terça-feira, novembro 26, 2013

Todos a buscam, mas só alguns a acham, diz Ferreira Gullar em seus versos. Porque a Vida bate.


A vida bate 


Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Ferreira Gullar
(1930)
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

domingo, novembro 24, 2013

Luís Vaz de Camões discorda de quem diz que amor é falso ou enganoso. Para ele, amor é brando, doce e piedoso.


Quem diz que Amor é falso ou enganoso 

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, 
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, 
Sem falta lhe terá bem merecido 
Que lhe seja cruel ou rigoroso. 

Amor é brando, é doce, e é piedoso. 
Quem o contrário diz não seja crido; 
Seja por cego e apaixonado tido, 
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem; 
Em mim mostrando todo o seu rigor, 
Ao mundo quis mostrar quanto podia. 

Mas todas suas iras são de Amor; 
Todos os seus males são um bem, 
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

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quinta-feira, novembro 21, 2013

Rola mundo, rola mundo. Drummond já viu muitas coisas em sua vida e chegou à conclusão que é melhor deixar o mundo existir!


Rola mundo

Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi: já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

segunda-feira, novembro 18, 2013

Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo, suplicava ela num frenesi. E Olavo Bilac, ainda que pedindo perdão aos moralistas, docemente obedecia...


Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!
Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.
Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.
No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci....

Olavo Bilac
(1865-1918)

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domingo, novembro 17, 2013

Para Manuel Bandeira, a alma é que estraga o amor. Se queres sentir a felicidade de amar, esquece-a e deixa teu corpo entender-se com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus, ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sábado, novembro 16, 2013

A família do burrinho, segundo Oswald de Andrade.


A família do burrinho 

- Vamos Joseph fugir
- Para onde Maria ir
Joseph (jocoso) – shall go to Jundi-aí ai!
- Depressa! Sela o Mangarito
Vamos com o vento Sul
Onde serei cesariada?
- Não presepe
- Tenho medo da vaca
- Não chores darling (terno) Sweepstake de Deus!
Maria – Caí na ilegalidade
Porque modéstia à parte
Trago uma trindade no ventre
Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione 
Algumas palavras de inglês conhecendo
A família sagrada partiu
Sem saudades levar
Para as bandas do mar
Vermelho
Na poeira da madrugada
Cruzou um olival
O escaravelho
- Quantas dracmas serão precisas?
Exclamou o castiço esposo
Para esta viagem em torno da lei do mundo
Estamos no século III ou IV da fundação
De Roma
E só tenho “argent de poche”
- Não vá faltar Joseph
- Na verdade Deus ajuda…
(os ricos)
- Sonhei que os serafins
Estão bordando uma estrela surda
Para Herodes não ver
Quero reis magos
Trenzinho e monjolo
E o retrato de Shirley Temple
Porque o menino vem
Este mundo salvar
O vento distribuía algodão pelos açudes
Joseph espancou o burrinho
E riu
- Belo mundo ele vem salvar!
(Já havia naquele tempo
Pouco leite para os bebês)
- Se faltar numerário
Eu carrego na centena do Mangarito
E dou um viva ao faraó Hitler…
(Antes que ele faça comigo
O Progrom que fez com Moisés)
- Oportunista! gritou uma nuvem
Joseph fingiu que não ouvia
- A vida é um buraco
Enquanto não vier Maria
A socialização
Dos meios de produção
- Besta! gritou um anjo
São José seguiu pensando
Que os anjos geralmente são reacionários

Oswald de Andrade
(1890-1954)

quarta-feira, novembro 13, 2013

Tão verdadeiro, tão atual em todos os tempos. Talvez por isso Hilda Hilst tenha sido levada à insanidade.


Poemas aos Homens do nosso tempo

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

***********
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.

Hilda Hist
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

segunda-feira, novembro 11, 2013

Ódio por ele? Não, se o amei tanto, ódio seria em mim saudade infinda, mágoa de o ter perdido, amor ainda, diz Florbela Espanca com muito amor ainda.


Ódio?

Ódio por Ele? Não ... Se o amei tanto,
Se tanto bem Ihe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto,

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!

Nunca mais o amar já é bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não... não vale a pena ...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

domingo, novembro 10, 2013

O poeta vai ao jóquei. E o que lhe agrada é ter, a seu lado, a que nos loucos páreos do amor o faz vencido e vencedor.


O poeta vai ao jóquei

O que me agrada, o que pleiteio,
não é das duplas o rateio,
nem placês nem pules miríficas,
mas tão-somente, nas magníficas
tardes de ouro outonal da Gávea,
ter a meu lado, calma e suave, a
que nos loucos páreos do amor
me faz vencido e vencedor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quinta-feira, novembro 07, 2013

Um moço que sofria de paixão por causa duma índia que não queria ceder para ele, se levantou e desapareceu na água do rio. Para Mário de Andrade, neste rio tem uma iara...



Poema

Neste rio tem uma iara....
De primeiro o velho que tinha visto a iara
Contava que ela era feiosa, muito!
Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
Felizmente velho já morreu faz tempo.
Duma feita, madrugada de neblina
Um moço que sofria de paixão
Por causa duma índia que não queria ceder pra ele,
Se levantou e desapareceu na água do rio.
Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
Cabelos de limo verde do rio...
Ontem o piá brincabrincando
Subiu na igara do pai abicada no porto,
Botou a mãozinha na água funda.

E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.

Neste rio tem uma iara...

Mário de Andrade
(1893-1945)

domingo, novembro 03, 2013

Você não está mais na idade de sofrer por essas coisas, disseram a Drummond. Inconformado, ele escreveu um poema, um poema sobre essas coisas.


Link para fazer o download do poema m mp3 no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/3038736-26d

Essas coisas

"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas".

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram lá de fora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade sofrer
é por que estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1988)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade



sexta-feira, novembro 01, 2013

João Cabral de Melo Neto diz que as amadas rebentam nas fontes do poema. Mas uma delas não sabe onde o encontrar.


As amadas

As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.

Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto