terça-feira, outubro 07, 2008
É a morte que te chama, que se passa, poeta, adiaste o futuro? Assim, Gullar questiona a poesia que não luta mais pela esperança de uma vida melhor.
Omissão
Não é estranho
que um poeta político
dê as costas a tudo e se fixe
em três ou quatro frutas que apodrecem
num prato
em cima da geladeira
numa cozinha da Rua Duvivier?
E isso quando vinte famílias
são expulsas de casa na Tijuca,
os estaleiros entram em greve em Niterói
e no Atlântico Sul começa
a guerra das Malvinal.
Não é estranho?
por que então
mergulho nessa minicatástrofe
doméstica
de frutas que morrem
e que nem minhas parentas são?
por que
me abismo
no sinistro clarão dessas formas
outrora coloridas
e que nos abandonam agora inapelavelmente
deixando a nossa cidade
com suas praias e cinemas
deixando a casa
onde frequentemente toca o telefone?
para virar lama.
II
É compreensível que tua pele se ligue à pele dessas frutas que apodrecem
pois ali
há uma intensificação do espaço, das forças
que trabalham dentro da polpa
(enferrujando na casca
a cor
em nódoas negras)
e ligam
uma tarde a outra tarde e a outra ainda
onde
bananas apodreceram
subvertendo a ordem da história humana, tardes
de hoje e de ontem
que são outras cada uma em mim
e a mesma talvez
no processo noturno da morte nas frutas
e que te ligam a ti através das décadas
como um trem que rompe a noite
furiosamente dentro
e em parte alguma
- é compreensível
que dês as costas à guerra das Malvinas
à luta de classes
e te precipites nesse abismo
de mel
que o clarão do açúcar nos cega
e diverte ser espectador da morte, que é também a nossa,
e que nos atrai com sua boca de lama sua vagina
de nada
por onde escorregamos docemente no sono
e é bom morrer
no teatro
vendo morrer
pêras ardendo
na sua própria fúria
e urinando
e afundando em si mesmas
a converter-se em mijo, a pêra, a banana ou o que seja
e assistes
à hecatombe
no prato
sob uma nuvem de mosquitos
e nao ouves o clamor da vida
aqui fora
na rua na fábrica na favela do Borel
não ouves
o tiro que matou Palito
e não ouves, poeta,
o alarido da multidão que pede emprego
(são dois milhões sem trabalho
há meses
sem ter como dar de comer à família
e cuja história
é assunto arredio ao poema).
É a morte que te chama?
É tua própria história
reduzida ao inventário de escombros
no avesso do dia
e não mais a esperança
de uma vida melhor?
que se passa, poeta?
adiaste o futuro?
Ferreira Gullar
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2 comentários:
achei bom o poema, mas não gostei.
ps: tá muito parecido com poema em prosa.
Belo poema. Belíssimo. veio a calhar em tempos de crise.
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