quinta-feira, dezembro 31, 2009

Vai, ano velho, vai de vez, leva tudo. Vem Ano Novo, vem veloz, agora é recomeçar, a utopia é urgente, na esperança de Affonso Romano de Sant' Anna.


Vai, ano velho


Vai, ano velho, vai de vez,
vai com tuas dívidas
e dúvidas, vai, dobra a ex-
quina da sorte, e no trinta e um,
à meia-noite, esgota o copo
e a culpa do que nem me lembro
e me cravou entre janeiro e dezembro.

Vai, leva tudo: destroços,
ossos, fotos de presidentes,
beijos de atrizes, enchentes,
secas, suspiros, jornais.
Vade retrum, pra trás,
leva pra escuridão
quem me assaltou o carro,
a casa e o coração.
Não quero te ver mais,
só daqui a anos, nos anais,
nas fotos do nunca-mais.

Vem, Ano Novo, vem veloz,
vem em quadrigas, aladas, antigas
ou jatos de luz moderna, vem,
paira, desce, habita em nós,
vem com cavalhadas, folias, reisados,
fitas multicores, rebecas,
vem com uva e mel e desperta
em nossso corpo a alegria,
escancara a alma, a poesia,
e, por um instante, estanca
o verso real, perverso,
e sacia em nós a fome
- de utopia.

Vem na areia da ampulheta com a
semente que contivesse outra se-
mente que contivesse ou-
tra semente ou pérola
na casca da ostra
como se
se
outra se-
mente pudesse
nascer do corpo e mente
ou do umbigo da gente como o ovo
o Sol a gema do Ano Novo que rompesse
a placenta da noite em viva flor luminescente.

Adeus, tristeza: a vida
é uma caixa chinesa
de onde brota a manhã.
Agora
é recomeçar.
A utopia é urgente.
Entre flores de urânio
é permitido sonhar.

Affonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

terça-feira, dezembro 29, 2009

Poema de Ano-Novo, por Carlos Drummond de Andrade.


A passagem do ano


O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olhar e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras expreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasta renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Poema de Ano-Novo, por Vinicius de Moraes.


Poema de Ano-Novo


É preciso que nos encontremos diante do amor como as árvores fêmeas
cuja raiz é a mesma e se perde na terra profana
É preciso...a tristeza está no fundo de todos os sentimentos
como a lágrima no fundo de todos os olhos
Sejamos graves e prodigiosos, ó minha amada, e sejamos também irmãos e amigos.

É preciso que levemos diante de nós o retrato das nossas almas
como se fôssemos a um tempo a Verônica e o Crucificado
Eu sou o eterno homem e hoje que a dor fecunda o tempo
eu sinto mais que nunca a vontade de fechar os braços sobre a minha miséria.
Fiquemos como duas crianças pensativas sentadas numa escada
- todos serão os peregrinos e apenas nós os contemplados.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

quinta-feira, dezembro 24, 2009

Onde e como pouco importa, mas Carlos Drummond de Andrade viu nascer um deus. O mais simples, o mais pobre.


Vi nascer um Deus


Em novembro chegaram os signos.
O céu nebuloso não filtrava
estrelas anunciantes
nem os bronzes de São José junto ao Palácio Tiradentes
tangiam a Boa-Nova.
Eram outros os signos
e vinham na voz de iaras-propaganda
páginas inteiras de refrigerador e carro nacional
mas vinham.
O governo destinou só 210 mil dólares
à importação de artigos natalinos
avelãs figos castanhas ameixas amêndoas
sóis luas outonos cristalizados
orvalho de uísque em ramo de pinheiro
champagne extra-sec pour les connaisseurs
mas vinham
a fome sambava entre caçarolas diversas
e o amor dormia na entressafra
mas vinham
e petroleiros jatos caminhões nas BR televisores transistores corretores
descobriram subitamente
Jesus.

(Quem adquire a big cesta de natal Tremendous
no ato de pagamento da primeira prestação
recebe prêmio garantido
e concorre
na última quarta-feira de cada mês
- números correspondentes aos da Loteria Federal -
a visões como um apartamento
um jipe
uma lambreta
um lunik
um anjo eletrônico
e mais:
ajuda quinhentos velhinhos
a provar alegria
pois a Obra de Senectude Evangélica
tem comissão em cada cesta vendida).

...na manjedoura?
no presépio?
no chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou Francesco Giorgio?
na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?
na big cesta de natal?

...repousa o Infante esperado.
As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso motor, uma confidência e um sino.

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.
Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.

Ministros deputados presidentes de sindicatos
prosternam-se, estabelecendo os primeiros contatos.

Preside (mal), as assembléias de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

de sua pobritude. E tenta renascer a cada hora
em que se distrai nossa política, assim como uma flora

sem jardineiro apendoa, e sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos
da outra face do amor, a face dos extremos.

Inventou-se menino para ser ao menos contemplado,
senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

e de criança temos pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem numa cantiga sem rumo, não na prece

com pandeiros alegres tocando
com chapéus de palhinha amarela
companheiros alegres cantando.

Ó lapinha,
menino de barro,
deus de brinquedo,
areia branca de córrego,
musgo de penhasco,
Belém de papel,
primeira utopia,
primeira abordagem
de território místico,
primeiro tremor.
Vi nascer um deus.
Onde, pouco importa.
Como, pouco importa.
Vi nascer um Deus
em plena calçada
entre camelôs;
na vitrine da boutique
sorria ou chorava,
não sei bem ao certo;
a luz da boate
mal lhe debuxava
o mínimo perfil.
Vi nascer um deus
entre embaixadores
entre publicanos
entre verdureiros
entre mensalistas,
no Maracanã ou Para-lá-do-mapa,
quando os gatos rondam
a espinha da noite
os mendigos espreitam
os inferninhos
e no museu acordam as telas
informais
e o homem esquece
metade da ciência atômica:
vi nascer um deus.
O mais pobre,
o mais simples.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Nos versos de António Gedeão, hoje é dia de ser bom, é dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade e Glória a Deus nas Alturas.


Dia de Natal


Hoje é dia de ser bom. 

É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, 

de falar e de ouvir com mavioso tom, 

de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças. 



É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, 

de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, 

de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, 

de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria. 



Comove tanta fraternidade universal. 

É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, 

como se de anjos fosse, 

numa toada doce, 

de violas e banjos, 

entoa gravemente um hino ao Criador. 

E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor 
anuncia o melhor dos detergentes. 



De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético. 

(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu? 

Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.) 

Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. 

Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante. 

Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas 

e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.

Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, 

com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, 

cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, 

as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica. 



Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito, 

ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. 

É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito, 

como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores. 

A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. 

Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. 

E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento 

e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar. 



Mas a maior felicidade é a da gente pequena. 

Naquela véspera santa 

a sua comoção é tanta, tanta, tanta, 

que nem dorme serena. 



Cada menino 

abre um olhinho 

na noite incerta 

para ver se a aurora 

já está desperta. 

De manhãzinha 

salta da cama, 

corre à cozinha 

mesmo em pijama. 



Ah!!!!!!!!!! 



Na branda macieza 

da matutina luz 

aguarda-o a surpresa 

do Menino Jesus. 



Jesus, 

doce Jesus, 

o mesmo que nasceu na manjedoura, 

veio pôr no sapatinho 

do Pedrinho 

uma metralhadora. 



Que alegria 

reinou naquela casa em todo o santo dia! 

O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas, 

fuzilava tudo com devastadoras rajadas 

e obrigava as criadas 

a caírem no chão como se fossem mortas: 

tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá. 



Já está! 

E fazia-as erguer para de novo matá-las. 

E até mesmo a mamã e o sisudo papá 

fingiam 

que caíam 

crivados de balas. 



Dia de Confraternização Universal, 

dia de Amor, de Paz, de Felicidade, 

de Sonhos e Venturas. 

É dia de Natal. 

Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. 

Glória a Deus nas Alturas.

António Gedeão
(1906-1997)

Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho

terça-feira, dezembro 22, 2009

Leminski foi muito mais do que um grande poeta. Foi também um grande ser humano.


Lápide 1

(epitáfio para o corpo)

Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais osbre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Longe da pátria, Casimiro de Abreu pede a Deus que se tem que morrer que não seja já. Ele quer ouvir na laranjeira, à tarde, cantar o sabiá.


Canção do exílio


Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro
Respirando este ar;
Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo
Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas
Do que a pátria não tem;
E este mundo não vale um só dos beijos
Tão doces duma mãe!

Dá-me os sítios gentis onde eu brincava
Lá na quadra infantil;
Dá que eu veja uma vez o céu da pátria,
O céu do meu Brasil!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos
Meu Deus! não seja já!
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Quero ver esse céu da minha terra
Tão lindo e tão azul!
E a nuvem cor-de-rosa que passava
Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros,
As folhas por dossel;
E ver se apanho a borboleta branca,
Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho
Das tardes ao cair,
E sozinho cismando no crepúsculo
Os sonhos do porvir!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
A voz do sabiá!

Quero morrer cercado dos perfumes
Dum clima tropical,
E sentir, expirando, as harmonias
Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,
Banhada do luar,
E eu contente dormirei tranqüilo
À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas
Porque cedo morri,
E eu sonho no sepulcro os meus amores
Na terra onde nasci!

Se eu tenho de morrer na flor dos anos,
Meu Deus! não seja já;
Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,
Cantar o sabiá!

Casimiro de Abreu

(1839-1860)

Mais sobre Casimiro de Abreu em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Casimiro_de_Abreu


segunda-feira, dezembro 21, 2009

O prisioneiro da cela X3, no quartel da Polícia do Exército, da Vila Militar, no Rio de Janeiro, em 2/1/69, tinha pouco a declarar.


O prisioneiro


Ouço as árvores
lá fora
sob as nuvens

Ouço vozes
risos
uma porta que bate

É de tarde
(com seus claros barulhos)
como há vinte anos em São Luís
como há vinte dias em Ipanema
Como amanhã
um homem livre em sua casa.


Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Mauro Mota passeia pelas assombrações do Recife velho. Onde as cadeiras balançam sem gente, sozinhas, e lobisomens pegam mulheres na Volta ao Mundo.


Assombrações do Recife velho


Cadeiras balançam
sem gente, sozinhas.

Fantasias, rumores
na cama, estilhaços.

Apagam-se os lampiões
de bicos de gás
e as lamparinas
de azeite no quarto.

As rezas das tias,
velas no oratório.
A noite comprida
não acaba mais.

Cavalos, boleeiros,
de fraque e cartola
nas ruas vazias.

A moça encantada
no Encanta-Moça.

O Sobrado-Grande
com assombração.

A ronda do Diabo
na Cruz do Patrão
com fogo nos chifres,
correndo no istmo
de Olinda ao Recife.

Canoas sem remo
no Capibaribe.

Uivos dos cachorros
no fundo dos sítios
e dos lobisomens
pegando as mulheres
na Volta ao Mundo.

Mauro Mota
(1911-1984)

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domingo, dezembro 20, 2009

Fernando Pessoa sabe que um dia virá o dia em que já não dirá mais nada. Para ele, quem nada foi nem é não dirá nada.


Quando era jovem


Quando era jovem, eu a mim dizia:
Como passam os dias, dia a dia,
E nada conseguido ou intentado!
Mais velho, digo, com igual enfado:
Como, dia após dia, os dias vão,
Sem nada feito e nada na intenção!
Assim, naturalmente, envelhecido,
Direi, e com igual voz e sentido:
Um dia virá o dia em que já não
Direi mais nada.
Quem nada foi nem é não dirá nada.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, dezembro 19, 2009

Tanto Camões de seu estado se acha incerto que em vivo ardor está tremendo de frio. E se alguém lhe pergunta porque assim anda, só ele sabe o por quê.


Tanto de meu estado me acho incerto


Tanto de meu estado me acho incerto
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, justamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.


Luís Vaz de Camões
(1520-1584)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es








sexta-feira, dezembro 18, 2009

Na estrada, nuns quinhentos metros, estão quinhentos mortos com os olhos abertos. Nem tiveram tempo para fechar os olhos, chora António Gedeão.


Poema da morte na estrada


Na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
estão quinhentos mortos com os olhos abertos.

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.

António Gedeão
(1906-1997)

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Gonçalves Dias ama aqueles olhos tão negros, tão belos, tão puros. Olhos que falam de amores com tanta poesia, com tanta paixão.


Seus olhos


Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, de vivo luzir,
estrelas incertas, que as águas dormentes do mar vão ferir;

seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, têm meiga expressão,
mais doce que a brisa, - mais doce que a frauta quebrando a soidão.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, de vivo luzir,
são meigos infantes, gentis, engraçados brincando a sorrir.

São meigos infantes, brincando, saltando em jogo infantil,
inquietos, travessos; - causando tormento,
com beijos nos pagam a dor de um momento, com modo gentil.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, assim é que são;
às vezes luzindo, serenos, tranquilos, às vezes vulcão!

Ás vezes, oh! sim, derramam tão fraco, tão frouxo brilhar,
que a mim me parece que o ar lhes falece,
e os olhos tão meigos, que o pranto umedece, me fazem chorar.

Assim lindo infante, que dorme tranquilo, desperta a chorar;
e mudo e sisudo, cismando mil coisas, não pensa - a pensar.

Nas almas tão puras da virgem, do infante, às vezes do céu
cai doce harmonia duma harpa celeste,
um vago desejo; e a mente se veste de pranto co'um véu.

Que sejam saudades, que sejam desejos da pátria melhor;
eu amo seus olhos que choram sem causa um pranto sem dor.

Eu amo seus olhos tão negros, tão puros, de vivo fulgor;
seus olhos que exprimem tão doce harmonia,
que falam de amores com tanta poesia, com tanto pudor.

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros, assim é que são;
eu amo esses olhos que falam de amores com tanta paixão.

Gonçalves Dias
(1823-1864)

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quarta-feira, dezembro 16, 2009

Ouve como o silêncio se fez de repente para o nosso amor. Crê apenas no amor e deixa as palavras à poesia, diz Vinicius de Moraes à mulher amada.


Duas canções de silêncio


Ouve como o silêncio
Se fez de repente
Para o nosso amor

Horizontalmente...

Crê apenas no amor
E em mais nada
Cala; escuta o silêncio
Que nos fala
Mais intimamente; ouve
Sossegada
O amor que despetala
O silêncio...

Deixa as palavras à poesia...

Vinicus de Moraes
(1913-1980)

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Os olhos de António Botto que por alguém deram lágrimas sem fim, já não choram por ninguém. Agora, diz ele, basta que eu chore por mim


Meus olhos que por alguém


Meus olhos que por alguém
deram lágrimas sem fim
já não choram por ninguém
- basta que chorem por mim.
Arrependidos e olhando
a vida como ela é,
meus olhos vão conquistando
mais fadiga e menos fé.
Sempre cheios de amargura!
Mas se as coisas são assim,
chorar alguém - que loucura!
- Basta que eu chore por mim.

António Botto
(1897-1959)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Botto

terça-feira, dezembro 15, 2009

Depois de uma infância tão viva de descobrimentos, aos dez anos Manuel Bandeira veio para o Rio. Estava maduro para o sofrimento e para a poesia!


Infância


Corrida de ciclistas.
Só me recordo de um bambual debruçado no rio.
Três anos?
Foi em Petrópolis.
Procuro mais longe em minhas reminiscências.
Quem me dera me lembrar da teta negra de minh'ama-de-leite...
...meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo.

Ainda em Petrópolis...um pátio de hotel...brinquedos pelo chão...

Depois a casa de São Paulo.

Miguel Guimarães, alegre, míope e mefistofélico,
Tirando reloginhos de plaquê da concha de minha orelha.
O urubu pousado no muro do quintal.
Fabrico uma trombeta de papel.
Comando...
O urubu obedece.
Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia.

Depois... a praia de Santos...
Corridas em círculos riscados na areia...
Outra vez Miguel Guimarães, juiz de chegada, com os seus presentinhos.
A ratazana enorme apanhada na ratoeira.
Outro bambual...
O que inspirou a meu irmão o seu único poema:

Eu ia por um caminho,
Encontrei um maracatu.
O qual vinha direitinho
Pelas flechas de um bambu.

As marés de equinócio.
O jardim submerso...
Meu tio Cláudio erguendo do chão uma ponta de mastro destroçado.

Poesia dos naufrágios!

Depois Petrópolis novamente.
Eu, junto do tanque, de linha amarrada no incisivo de leite, sem coragem de puxar.

Véspera de Natal...Os chinelinhos atrás da porta...
E a manhã seguinte, na cama, deslumbrado com os brinquedos trazidos pela fada.

E a chácara da Gávea?
E a casa da Rua Don'Ana?

Boy, o primeiro cachorro.
Não haveria outro nome depois
(Em casa até as cadelas se chamavam Boy).

Medo de gatunos...
Para mim eram homens com cara de pau.

A volta a Pernambuco!
Descoberta dos casarões de telha-vã.
Meu avô materno - um santo...
Minha avó batalhadora.

A casa da Rua da União.
O pátio - núcleo de poesia.
O banheiro - núcleo de poesia.
O cambrone - núcleo de poesia (le fraicheur des latrines!)
A alcova de música - núcleo de mistério.
Tapetinhos de peles de animais.
Ninguém mais ia lá... Silêncio...Obscuridade...
O piano de armário, teclas amarelecidas, cordas desafinadas.

Descoberta de rua!
Os vendedores a domicílio.
Ai mundo dos papagaios de papel, dos piões, da amarelinha!
Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou,
imperiosa e ofegante, para um desvão da casa de Dona Aninha Viegas,
levantou a sainha e disse mete.

Depois meu avô...Descoberta da morte!

Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais.
Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Os amigos morriam, partiam, quebravam o rosto contra o tempo. E Sophia de Mello Breyner odiou o que era fácil, procurou-se na luz, no mar, no vento.


Biografia


Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento.

Sophia de Melo Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Melo Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

segunda-feira, dezembro 14, 2009

Por muito tempo Drummond achou que ausência era falta. E lastimava, ignorante, a falta.


Ausência


Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, esta ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.


Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Eugénio de Andrade crê que foi o sorriso, o sorriso foi quem abriu a porta. E depois, o desejo de correr, navegar, morrer naquele sorriso.


O sorriso


Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

domingo, dezembro 13, 2009

Álvaro de Campos sente-se só. Só como ninguém ainda esteve.


Não sei


Não sei. Falta-me um sentido, um tacto
Para a vida, para o amor, para a glória...
Para que serve qualquer história,
Ou qualquer fato?

Estou só, só como ninguém ainda esteve,
Oco dentro de mim, sem depois nem antes,
Parece que passam sem ver-me os instantes,
Mas passam sem que o seu passo seja leve.

Começo a ler, mas cansa-me o que inda não li.
Quero pensar, mas dói-me o que irei concluir.
O sonho pesa-me antes de o ter. Sentir
É tudo uma coisa como qualquer coisa que já vi.

Não ser nada, ser uma figura de romance,
Sem vida, sem morte material, uma idéia,
Qualquer coisa que nada tornasse útil ou feia,
Uma sombra num chão irreal, um sonho num transe.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, dezembro 12, 2009

Enche minha loucura de palavras ou deixa-me viver na minha calma e para sempre escura noite d'alma. Garcia Lorca pede a seu amor que lhe escreva.


El poeta pide a su amor que le escriba


Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita
y pienso, con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.

El aire es inmortal. La piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.

Pero yo te sufrí. Rasgué mis venas,
tigre y paloma, sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena pues de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena
noche del alma para siempre oscura.

Federico Garcia Lorca

(1898-1936)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Federico_Garc%C3%ADa_Lorca

quarta-feira, dezembro 09, 2009

Ama-me doida, estonteadoramente, ó meu amor! O coração da gente é tão pequeno... e a vida água a fugir, diz em versos apaixonados Florbela Espanca.


Mocidade


A mocidade esplêndida, vibrante,
Ardente, extraordinária, audaciosa,
Que vê num cardo a folha duma rosa,
Na gota de água o brilho dum diamante;

Essa que fez de mim o Judeu Errante
Do espírito, a torrente caudalosa,
Dos vendavais irmã tempestuosa,
- Trago-a em mim vermelha, triunfante!

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir!

Ama-me doida, estonteadoramente,
Ó meu amor! que o coração da gente
É tão pequeno... e a vida, água a fugir...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Guilherme de Almeida quis o desejo nu que corta o branco inútil do irreconhecível. E a sombra não disse o gosto longínquo dos copos emborcados.


Vontade


Eu quis o desejo nu que corta
o branco inútil do irreconhecível.
E as areias deram lírios
e a cinza distanciou
os dedos estendidos para a forma
para os planos e para as raízes;
e a sombra não disse
o gosto longínquo dos copos emborcados.

Guilherme de Almeida
(1890-1969

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

terça-feira, dezembro 08, 2009

Murilo Mendes confessa que veio ao mundo para conhecer Deus, seu criador, pouco a pouco. Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.


Vocação do poeta


Não nasci no começo deste século:
Nasci no plano do eterno,
Nasci de mil vidas superpostas,
Nasci de mil ternuras desdobradas.
Vim para conhecer o mal e o bem
E para separar o mal do bem.
Vim para amar e ser desamado.
Vim para ignorar os grandes e consolar os pequenos.
Não vim para construir minha própria riqueza
Nem para destruir a riqueza dos outros.
Vim para reprimir o choro formidável
Que as gerações anteriores me transmitiram.
Vim para experimentar dúvidas e contradições.

Vim para sofrer as influências do tempo
E para afirmar o princípio eterno de onde vim.
Vim para distribuir inspiração às musas.
Vim para anunciar que a voz dos homens
Abafará a voz da sirene e da máquina,
E que a palavra essencial de Jesus Cristo
Dominará as palavras do patrão e do operário.
Vim para conhecer Deus meu criador, pouco a pouco,
Pois se O visse de repente, sem preparo, morreria.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Com tema de Virgílio, o Latino, e Lino Pedra-Azul, o Sertanejo, Ariano Suassuna escreveu um belo poema. Daqueles que não se pode esquecer.


Lápide-Final "A descoberta"


Com temas de Virgilio, o Latino, e Lino Pedra-Azul,o Sertanejo
Quando eu morrer, não soltem meu Cavalo
nas pedras do meu Pasto-incendiado:
fustiguem-lhe seu Dorso alanceado,
com a Espora de ouro, até matá-lo.
Um dos meus Filhos deve cavalgá-lo
numa Sela de couro esverdeado,
que arraste, pelo Chão pedregoso e pardo,
chapas de Cobre, sinos e Badalos.
Assim, com o raio e o Cobre- percutido,
tropel de Cascos, sangue do Castanho,
talvez se finja o Som de ouro- fundido,
que, em vão- Sangue insensato e vagabundo-
tentei forjar, no meu Cantar- estranho,
à tez da minha Fera e ao Sol do Mundo.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

segunda-feira, dezembro 07, 2009

Paris da minha ternura, silêncio dos meus enganos. Paris, quisera dormir contigo, ser todo a tua mulher, declara Mário de Sá-Caneiro todo o seu amor.


Abrigo


Paris da minha ternura
Onde estava a minha Obra -
Minha Lua e minha Cobra,
Timbre de minha aventura.

Ó meu Paris, meu menino,
Meu inefável brinquedo...
- Paris do lindo segredo
Ausente no meu destino.

Regaço de namorada,
Meu enleio apetecido -
Meu vizinho d'Oiro bebido
Por taça logo quebrada...

Minha febre e minha calma -
Ponte sobre o meu revés:
Consolo da viuvez
Sempre noiva da minh'a Alma...

Ó fita benta de cor,
Compressa das minhas feridas...
- Ó minhas unhas polidas,
- Meu cristal de toucador...

Meu eterno dia de anos,
Minha festa de veludo...
Paris: derradeiro escudo,
Silêncio dos meus enganos.

Milagroso carroussel
Em feira de fantasia -
Meu órgão de Barbaria,
Meu teatro de papel...

Minha cidade-figura,
Minha cidade com rosto...
Ai, meu acerado gosto,
Minha fruta mal madura...

Mancenilha e bem-me-quer,
Paris - meu lobo e amigo...
- Quisera dormir contigo,
Ser todo a tua mulher!...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Queime tudo o que puder, aconselha Ledo Ivo ao poeta. Não confie a ninguém o seu segredo, a verdade não pode ser dita.


A queimada


Queime tudo o que puder:
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arterioesclerose
os recortes antogos e as fotografias amareladas.

Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.
Seja como os lobos: more num covil
e só mostre à canalha das ruas
os seus dentes afiados.

Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.
Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.

Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.

Ledo Ivo

Mais sobre Ledo Ivo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo

domingo, dezembro 06, 2009

Na ode de Ricardo Reis, cada um cumpre o destino que lhe cumpre e deseja o destino que deseja. Nem cumpre o que deseja, nem deseja o que cumpre.


Cada um


Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja:
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, dezembro 05, 2009

No hino de Manuel Alegre, é possível viver de outro modo, é possível o amor e o pão. É possível viver sem fingir que se vive, viver de pé e ser livre.


Letra para um hino


É possível falar sem um nó na garganta
é possível amar sem que venham proibir
é possível correr sem que seja fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
é possível viver sem que seja de rastos.
Os teus olhos nasceram para olhar os astros
se te apetece dizer não grita comigo: não.

É possível viver de outro modo. É
possível transformares em arma a tua mão.
É possível o amor. É possível o pão.
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem.
É possível viver sem fingir que se vive.
É possível ser homem.
É possível ser livre livre livre.

Manuel Alegre

Mais sobre Manuel Alegre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Alegre

sexta-feira, dezembro 04, 2009

Se o povo alemão tivesse ouvido Brecht, não teria havido o horror do nazismo. Mas os seus versos estão vivos, os ovos das serpentes continuam por aí.


Cartilha de guerra alemã


O pintor fala da grande época por vir

As florestas ainda crescem.
Os campos ainda produzem.
As cidades ainda existem.
Os homens ainda respiram.

Quando o pintor fala sobre a paz através dos alto-falantes

Os trabalhadores de construção olham para
As auto-estradas e vêem
Cimento espesso, próprio
Para tanques pesados.

O pintor fala de paz.
Aprumando as costas doloridas
As mãos grossas em tubos de canhões
Os fundidores o escutam.

Os pilotos dos bombardeiros
Desaceleram os motores e ouvem
O pintor falar de paz.

Os madeireiros param no silêncio dos bosques
Os camponeses deixam de lado o arado e colocam a mão atrás do ouvido
As mulheres que levam a comida para o campo se detêm:
No terreno revolvido há um carro com amplificador. De lá se ouve
O pintor pedir paz.

Os de cima dizem: guerra e paz

São de substância diferente
Mas a sua guerra e a sua paz
São como tempestade e vento.

A guerra nasce da sua paz
Como a criança da mãe
Ela tem
Os mesmo traços terríveis.

A sua guerra mata
O que a sua paz
Deixou de resto.

No muro estava escrito com giz:

Eles querem a guerra.
Quem escreveu
Já caiu.

Os de cima

Juntaram-se em uma reunião.
Homem da rua
Deixa de esperança.

Os governos
Assinam pactos de não-agressão.
Homem da rua
Assina teu testamento.

Quando os de cima falam de paz

A gente pequena
Sabe que haverá guerra.

Quando os de cima amaldiçoam a guerra
As ordens de alistamento já estão preenchidas.

A guerra que virá

Não é a primeira. Antes dela
Houve outras guerras.
Quando a última terminou
Havia vencedores e vencidos.
Entre os vencidos o povo miúdo
Sofria fome. Entre os vencedores
Sofria fome o povo miúdo.

Os de cima dizem que no exército

Reina fraternidade.
A verdade disso se percebe
Na cozinha.
Nos corações deve haver
O mesmo ânimo.
Mas nos pratos
Há dois tipos de comida.

No momento de marchar, muitos não sabem

Que seu inimigo marcha à sua frente.
A voz que comanda
É a voz de seu inimigo.
Aquele que fala do inimigo
É ele mesmo o inimigo.

General, teu tanque é um carro poderoso

Ele derruba uma floresta e esmaga cem homens.
Mas tem um defeito:
Precisa de um motorista.

General, teu bombardeio é poderoso.
Ele voe mais veloz que um vendaval e carrega mais carga que um elefante.
Mas tem um defeito:
Precisa de um engenheiro.

General, o homem é muito útil.
Ele pode voar e pode matar.
Mas tem um defeito:
Pode pensar.

Quando a guerra começar

Seus irmão se transformarão talvez
De modo que seus rostos não serão reconhecíveis.
Mas vocês devem permanecer os mesmos.

Eles irão à guerra, mas
Não como a uma matança, e sim
Como a um trabalho sério. Tudo
Terão esquecido. Mas vocês
Nada deverão ter esquecido.

Vocês receberão aguardente na garganta
Como todos os outros.
Mas deverão permanecer sóbrios.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Apaixonado pela deliciosa inglesa, João de Deus tem no coração um santuário de oiro. Um altar de adoração ao cabelo loiro da amada.


Cabelo loiro


Tenho no coração
um santuário de oiro,
altar de adoração
a um cabelo loiro.

Loiro ou castanho, aquele
que em tempo me prendeu.
E de quem era ele?
Bem sabes que era teu.

E vê-lo hoje ainda
mais belo...que surpresa!
Deliciosa inglesa!
Que cada vez mais linda!

João de Deus
(1830-11896)

Mais sobre João de Deus em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_de_Deus_de_Nogueira_Ramos

quinta-feira, dezembro 03, 2009

Em tempo de guerra, João Cabral de Melo sente que a poesia circula livremente entre os bloqueios. E que os grandes poemas são compostos em Morse.


Guerra


A poesia circula livremente entre os bloqueios.
Os grandes poemas são compostos em Morse.
Sobre o espaço e o tempo abolidos
generais sonham planos definitivos
entretanto forças formas brancas
pousaram nos alto-falantes das trincheiras.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

O amigo de Raimundo Correia quer fazer uns versos, mas falta-lhe sempre a veia. Leva a mão à cabeça enfim, e em vez de idéia tira de lá...um piolho.


Idéia entomológica


O Hudson quer fazer uns versos: toma a pena,
coça a basta melena,
luta! mas não transpõe do prosaísmo o escolho:
falta-lhe sempre a veia!
Leva a mão à cabeça enfim... e em vez de idéia
tira de lá...um piolho!

Raimundo Correia
(1859-1911)

Mais sobre Raimundo Correia em

quarta-feira, dezembro 02, 2009

Na soltura sem fim do Chapadão do Urucuia, os cascos pesados vão martelando o chão. É gado bravo, gado magro, que vem do sertão de Guimarães Rosa.


Boiada


- "Eh boi!...Eh boi!...
É gado magro,
é gado bravo,
que vem do sertão.
E os cascos pesados,
atropelados,
vão martelando o chão
na soltura sem fim do Chapadão do Urucuia...

- "Boiada boa!..."
Ancas cavadas,
costelas à mostra,
chifres pontudos de curraleiros,
tinir de argolas de bois carreiros,
sol de fornalha...poeira vermelha...
Úberes murchos,
corcovas rombas,
berros, mugidos,
bafagem suada,
sangue de ferroadas,
muita bicheira...
- "Que sol!...Que poeira!...
E a manada corre,
cangotes baixos,
focinhos em baba,
sacolejando ossos e couros,
num tropel de tropão...
- "Boiada boa!..."

- "Galopa, Joaquim,
que o gado estoura
por esse Goiás afora!...
Enterra a espora!..."
- "Que sol!...Que poeira!..."
Barbelas moles,
lombos selados,
cachaços brutos,
- "Eh caracu mocho, como berra feio!..."
- "Eh boi!...Eh boi!..."

Golpes de raspa,
refugos tontos, cornadas doídas,
gado selvagem, gado sem ferro...
- "Olha a vaca malhada
investindo os outros!...
Ferra a vaca, Raimundo!..."
- "Que terra brava!..."
- "Que sol!...Que poeira..."

Cacundas ondulantes,
desabaladas,
como as águas de um rio...
- "Eh boi!...Eh boi!...
Novilhos rajados,
garrotes mateiros,
zebus enormes,
vacas turinas,
cheiro de curral...
- "Corre, Zé Grande, cercar o boi preto
que esparramou!..."
- "Olha o bicho atacando!...
Olha o bicho crescendo na vara!...
Firma na vara, mulato bom!..."
- "Põe pra lá, marrueiro!..."
- "Verga e não quebra,
que é de pau-d'arco da beira d'água,
Seu Coronel!..."
- "Boiada boa!..."
O gado agora rola cansado,
e a trovoada trota
do fundo do chão...

- Ó João Nanico, por que canta assim?...
Tem aumentado seu gado miúdo?..."
- "Gabarro e peste mataram tudo..."
- "Está pensando será na crioula?..."
- "Fugiu, que tempo, foi pra Bahia,
por esse mundão de Deus..."
- "Morreu no eito, já faz um ano,
picado de urutu..."

- "Então, João Nanico,
por que canta assim?!..."
- "Ai, Patrão, que a vida é uma boiada,
e a gente canta pra ir tocando os bois..."
- "Ó João Nanico, mineiro velho,
quer vir comigo pra Paracatu?!..."
- "O gado é bravo?... A pinga é boa?!...
Ai, Patrãozinho, vamos embora,
vamos embora pro Paracatu!..."

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Em versos, pergunta Fagundes Varela, qual a mais firme das armas? Para o poeta, a mais tremenda das armas, pior que a durindana, é a língua humana.


Armas


- Qual a mais forte das armas,
a mais firme, a mais certeira?
A lança, a espada, a clavina,
ou a funda aventureira?
A pistola? O bacamarte?
A espingarda, ou a flecha?
O canhão que em praça forte
faz em dez minutos brecha?
- Qual a mais firme das armas? -
O terçado, a fisga, o chuço,
o dardo, a maça, o virote?
A faca, o florete, o laço,
o punhal, ou o chifarote?
A mais tremnda das armas,
pior que a durindana,
atendei, meus bons amigos:
se apelida: - a língua humana.

Fagundes Varela
(1841-1875)

Mais sobre Fagundes Varela em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fagundes_Varela

terça-feira, dezembro 01, 2009

Uma pequena tragédia brasileira, por Mário Quintana.


Pequena tragédia brasileira


A Bem-Amada queria devorar o coração do Poeta.
- Não, - disse ele - só terás um pedacinho.
Porque noventa por cento pertence aos Editores.

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Nuno Júdice procura um adjetivo para cobrir o corpo de sua amada. Para que apenas lhe cubra o adjetivo que a veste, nua, nos braços que a procuram.


Mulher nua


Procuro um adjectivo para cobrir
o teu corpo, belo como o lençol da madrugada,
e lento como o teu abrir de pálpebras
no instante de acordar. Vou buscá-lo
a um armário de sinónimos, por entre
as palavras redondas do amor. Toco
os teus lábios com as suas sílabas,
sentindo a branca humidade da noite
no leve murmúrio em que pousam
os meus olhos. E vou descobrindo a luz
das palavras que tiro de cima de ti, para
que apenas te cubra o adjectivo
que te veste, nua, nos braços
que te procuram.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice