segunda-feira, março 30, 2009

Mario Quintana tem mania de deixar tudo para depois. E diz que só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!


O Deixador


Eu tenho mania de deixar tudo para depois...
Depois a contagem das cartas a responder...
Depois a arrumação das coisas...
Depois, Adalgisa...Ah,
Me lembrar mais uma vez de romper definitivamente com Adalgisa!
Depois, tanta, tanta coisa...
Depois o testamento as últimas vontades a morte.
Só porque vai sempre deixando tudo para depois
É que Deus é eterno
E o mundo incompleto
Inquieto...
Só é verdadeiramente vida a que tem um inquieto depois!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Nos cafés, Sá-Carneiro espera a vida que nunca vai ter com ele. Passar tempo é o seu fito e pra ele não há melhor festa, nem mais nada acha bonito.


Cinco horas


Minha mesa no Café,
Quero-lhe tanto...A garrida
Toda de pedra brunida
Que linda e que fresca é!

Um sifão verde no meio
E, ao seu lado, a fosforeira
Diante ao meu copo cheio
Duma bebida ligeira.

(Eu bani sempre os licores
Que acho pouco ornamentais:
Os xaropes têm cores
Mais vivas e mais brutais).

Sobre ela posso escrever
Os meus versos prateados,
Com estranheza dos criados
Que me olham sem perceber...

Sobre ela descanso os braços
Numa atitude alheada,
Buscando pelo ar os traços
Da minha vida passada.

Ou acendendo cigarros,
- Pois há um ano que fumo -
Imaginário presumo
Os meus enredos bizarros.

(E se acaso em minha frente
Uma linda mulher brilha,
O fumo da cigarrilha
Vai beijá-la, claramente...).

Um novo freguês que entra
É novo actor no tablado,
Que o meu olhar fatigado
Nele outro mundo concentra.

E o carmim daquela boca
Que ao fundo descubro, triste,
Na minha idade persiste
E nunca mais se desloca.

Cinge tais dificuldades
A minha recordação,
E destes vislumbres são
As minhas maiores saudades...

(Que história d'Oiro tão bela
Na minha vida abortou:
Eu fui herói de novela
Que autor nenhum empregou...).

Nos Cafés espero a vida
Que nunca vem ter comigo:
- Não me faz nenhum castigo,
Que o tempo passa em corrida.

Passar tempo é o meu fito,
Ideal que só me resta:
Pra mim não há melhor festa,
Nem mais nada acho bonito.

- Cafés da minha preguiça,
Sois hoje - que galardão! -
Todo o meu campo de acção
E toda a minha cobiça.

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

No retrato de Carlos Pena, ela está debruçada na areia, diante do mar. E o sol desliza por seu corpo salgado, enxuto e belo, como se nuvem fosse.


Retrato na praia


Ei-la ao sol, como um claro desafio
ao tenuíssimo azul predominante.
Debruçada na areia e assim, diante
do mar, é um animal rude e bravio.

Bem perto, há um comentário sobre estio,
mormaço e sonolência. Lá, distante,
muito vagos indícios de um navio
que ela talvez contemple nesse instante.

Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza
por seu corpo salgado, enxuto e belo,
como se nuvem fosse, ou quase brisa.

E desce por seus braços, e rodeia
seu brevíssimo e branco tornozelo,
onde se aquece e cresce, e se incendeia.

Carlos Pena Filho
(1929-1960)

Mais sobre Carlos Pena Filho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho

domingo, março 29, 2009

Resultado do II Concurso Poemblog - Novos Poetas

Resultado do II Concurso Poemblog - Novos Poetas

1º Lugar: "Cavalgada", de Lenise Difforene Marques
2º Lugar: "Do escuro", de Neysi Oliveira
3º Lugar: "Poesia", de Cida Gaiofatto
4º Lugar: "As vésperas do póstumo", de Leandro Siriani
5º Lugar: "Terra sem ideal", de Rodrigo Araújo
6º Lugar: "Novas datas", de Felipe de Azevedo Coronel Barreto
7º Lugar: "Poetizar", de Alétis das Dores Santos e Silva
8º Lugar: "Pra que você?", de Raíssa Gomes Assenço
9º Lugar: "Vegetal de sangue", de Carlos de Thalisson Tenório Vasconcelos
10ºLugar: "Desaparecer do dia", de Jaak Bosmans

Todos os poemas inscritos, inclusive os premiados, estão publicados na comunidade do
Poemblog no Orkut:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=27783881

O Editor

Para Fernando Pessoa, grande é a poesia e o melhor do mundo são as crianças, flores, música, o luar, e o sol. O mais que isto é Jesus Cristo.


Liberdade


Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada.
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Depois que Deus o ajeitou a um dom, Manoel de Barros só não deseja cair em sensatez. Não quer a boa razão das coisas, quer o feitiço das palavras.


Deus disse


Deus disse: Vou ajeitar a você um dom:
Vou pertencer você para uma árvore.
E pertenceu-me.
Escuto o perfume dos rios.
Sei que a voz das águas tem sotaque azul.
Sei botar cílio nos silêncios.
Para encontrar o azul eu uso pássaros.
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Tu és o Louco da imortal loucura, o louco da loucura mais suprema. Tu és o Poeta, o grande Assinalado, nos versos inesquecíveis de Cruz e Sousa.


O Assinalado


Tu és o Louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre a tua negra algema,
prende-te nela extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura
mas essa mesma Desventura extrema
faz que tu' alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado,
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na Natureza prodigiosa e rica
toda a audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco!

Cruz e Sousa
(1861-1898)

Mais sobre Cruz e Sousa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa

sábado, março 28, 2009

Para a sua amada Carolina, Machado de Assis escreveu um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Seu último soneto, um comovente réquiem.


A Carolina


Querida! Ao pé do leito derradeiro,
em que descansas desta longa vida,
aqui venho e virei, pobre querida,
trazer-te o coração do companheiro.

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro
que, a despeito de toda a humana lida,
fez a nossa existênca apetecida
e num recanto pôs um mundo inteiro.

Trago-te flores, - restos arrancados
da terra que nos viu passar unidos
e ora mortos nos deixa e separados.

Que eu, se tenho nos olhos mal feridos
pensamentos de vida formulados,
são pensamentos idos e vividos.

Machado de Assis
(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

Quem foi que viu a minha dor chorando? Na pergunta de Augusto dos Anjos, todo o sofrimento do poeta que fugia do Prazer como de um Monstro.


Queixas noturnas


Quem foi que viu a minha Dor chorando?!
Saio. Minh'alma sai agoniada.
Andam monstros sombrios pela estrada
E pela estrada, entre estes monstros, ando!

Não trago sobre a túnica fingida
As insígnias medonhas do infeliz
Como os falsos mendigos de Paris
Na atra rua de Santa Margarida.

O quadro de aflições que me consomem
O próprio Pedro Américo não pinta...
Para pintá-lo, era preciso a tinta
Feita de todos os tormentos do homem!

Como um ladrão sentado numa ponte
Espera alguém, armado de arcabuz,
Na ânsia incoercível de roubar a luz,
Estou à espera que o Sol desponte!

Bati nas pedras dum tormento rude
E a minha mágoa de hoje é tão intensa
Que eu penso que a Alegria é uma doença
E a Tristeza é minha única saúde!

As minhas roupas, quero até rompê-las!
Quero, arrancado das prisões carnais,
Viver na luz dos astros imortais,
Abraçado com todas as estrelas!

A Noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante!

E eu luto contra a universal grandeza
Na mais terrível desesperação...
É a luta, é o prélio enorme, é a rebelião
Da criatura contra a natureza!

Para essas lutas uma vida é pouca
Inda mesmo que os músculos se esforcem;
Os pobres braços do mortal se torcem
E o sangue jorra, em coalhos, pela boca.

E muitas vezes a agonia é tanta
Que, rolando dos últimos degraus,
O Hércules treme e vai tombar no caos
De onde seu corpo nunca mais levanta!

É natural que esse Hércules se estorça,
E tombe para sempre nessas lutas,
Estrangulado pelas rodas brutas
Do mecanismo que tiver mais força.

Ah! Por todos os séculos vindouros
Há de travar-se essa batalha vã
Do dia de hoje contra o de amanhã,
Igual à luta dos cristãos e mouros!

Sobre histórias de amor o interrogar-me
É vão, é inútil, é improfícuo, em suma;
Não sou capaz de amar mulher alguma
Nem há mulher tavez capaz de amar-me.

O amor tem favos e tem caldos quentes
E ao mesmo tempo que faz bem, faz mal;
O coração do Poeta é um hospital
Onde morreram todos os doentes.

Hoje é amargo tudo quanto eu gosto:
A bênção matutina que recebo...
E é tudo: o pão que como, a água que bebo,
O velho tamarindo a que me encosto!

Vou enterrar agora a harpa boêmia
Na atra e assombrosa solidão feroz
Onde não cheguem o eco duma voz
E o grito desvairado da blasfêmia!

Que dentro de minh'alma americana
Não mais palpite o coração - esta arca
Este relógio trágico que marca
Todos os atos da tragédia humana! -

Seja esta minha queixa derradeira
Cantada sobre o túmulo de Orfeu;
Seja este, enfim, o último canto meu
Por esta grande noite brasileira!

Melancolia! Estende-me a tua asa!
És a árvore em que devo reclinar-me...
Se algum dia o Prazer vier procurar-me
Dize a este Monstro que eu fugi de casa!


Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Para Schmidt, sua despedida é um desespero que só alguns entenderão. Porque o amor foi a infância distante, a pátria perdida e a moça que não volta.


Despedida


Os que seguem os trens onde viajam moças muito doentes com os olhos chorando
Os que se lembram da terra perdida, acordados pelos apitos dos navios
Os que encontram a infância distante numa criança que brinca
Estes entenderão o desespero da minha despedida.
Porque este amor que vai viajar para a última estação da memória
Foi a infância distante, foi a pátria perdida, e a moça que não volta.


Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

quinta-feira, março 26, 2009

Não era inconfessável que eu fizesse versos, mas juntos nos libertávamos a cada novo poema. Nós dois despertamos o silêncio, diz João Cabral de Melo.


Homem falando no escuro


Dentro da noite ao meu lado
grandes comtemplações silenciosas;
dentro da noite, dentro do sonho
onde os espaços e o silêncio se confundem.

Um gesto corria do princípio
batendo asas que feriam de morte.
Eu me sentia simultaneamente adormecer
e despertar para as paisagens mais cotidianas.

Não era inconfessável que eu fizesse versos
mas juntos nos libertávamos a cada novo poema.
Apenas transcritos eles nunca foram meus,
e de ti nada restava para as cidades estrepitosas.

Só os sonhos nos ocupam esta noite,
nós dois juntos despertamos o silêncio.
Dizia-se que era preciso uma inundação,
mas nem mesmo assim uma estrela subiu.

João Cabral de Melo Neto
(1920-199)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Nada te perguntarei, apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes. E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada, promete Adalgisa Nery.


Repouso


Dá-me tua mão
E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas
Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,
Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.
Dá-me tua mão
E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,
Te darei por leito a terra amiga
E repousarei tua cabeça envelhecida
Na relva silenciosa dos campos.
Nada te perguntarei,
Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes
E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.


Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

Para José Paulo Paes, a poesia está morta. Mas jura que não foi ele, até que tentou fazer o melhor que podia para salvá-la.


Acima de qualquer suspeita


a poesia está morta
mas juro que não fui eu
eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la

imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres car
los drummond de andrade manuel bandeira murilo
mendes vladimir maiakóvski joão cabral de melo neto
paul éluard oswald de andrade guillaume apollinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar um certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquense

porém ribeirãozinho mudou de nome a estrada de ferro
araraquense foi extinta e josé paulo paes parece
munca ter existido

nem eu

José Paulo Paes
(1926-1998)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Paulo_Paes

quarta-feira, março 25, 2009

Na noite terrível, Álvaro de Campos relembra o que fez e o que podia ter feito na vida. E uma angústia espalha-se por ele todo como um frio do corpo.


Na noite terrível


Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado - esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passsados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.

Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido -
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso - e foi afinal o melhor de mim - é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse dito as frases que só agora, no meio-sono, elaboro -
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem 'sperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,
Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, com a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Depois da missa cantada e da comunhão, em perfeito estado de graça, o que Dona Santinha estava murmurando a um grupinho sobre o Padre João?


Instantâneo


No pátio da igreja de São Sebastião,
depois da missa cantada e da comunhão,
Dona Santinha, em perfeito estado de graça,
com o véu, o livro e o terço na mão,
murmurava a um grupinho que Padre João
estava na sacristia, se derretendo
para a filha mais nova do sacristão.

Mauro Mota
(1911-1984)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

A noite desce e Emílio Moura se sente só, só e desesperado. Diante dos horizontes que se fechavam, ele viu que só as estrelas é que o entenderiam.


Como a noite descesse...


Como a noite descesse e eu me sentisse só,
só e desesperado diante dos horizontes que se fechavam,
gritei alto, bem alto: ó doce e incorruptível Aurora!
e vi logo que só as estrelas é que me entenderiam.
Era preciso esperar que o próprio passado desaparecesse,
ou então voltar à infância.
Onde, entretanto, quem me dissesse
ao coração trêmulo:
- É por aqui!

Onde, entretanto, quem me disesse
ao espírito cego:
- Renasceste: liberta-te!

Se eu estava só, só e desesperado,
por que gritar tão alto?
Por que não dizer baixinho, como quem reza:
- Ó doce e incorruptível Aurora...
se só as estrelas é que me entenderiam?

Emílio Moura
(1902-1971)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Guimar%C3%A3es_Moura

terça-feira, março 24, 2009

Sem qualquer esperança, Ferreira Gullar a espera. Na multidão que vai e vem, são milhões de habitantes, e ela é uma só.


Pela rua


Sem qualquer esperança
detenho-me diante de uma vitrina de bolsas
na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, domingo,
enquanto o crepúsculo se desata sobre o bairro.

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.

A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia,
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.

A noite se ergue comercial
nas constelações da Avenida.
Sem qualquer esperança
continuo
e meu coração vai repetindo teu nome
abafado pelos barulhos dos motores
solto ao fumo da gasolina queimada.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Sem paz, sem amor, sem teto, Rainer Maria Rilke caminha pela vida afora. Tudo aquilo em que o poeta põe afeto, fica mais rico e o devora.


Poeta


Já te despedes de mim, Hora.
Teu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

Mais sobre Rainer Maria Rilke em
http://en.wikipedia.org/wiki/Rainer_Maria_Rilke

Para Haroldo de Campos, não há um sentido único num poema. Ex/plicá-lo é um beco sem saída.


Ex/plicação


não há um
sentido único
num
poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco

(tente outra
vez)

sem saída

Haroldo de Campos
(1929-2003)

Mais sobre Haroldo de Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Haroldo_de_Campos

segunda-feira, março 23, 2009

Copacabana, a arena onde Vinicius de Moares encontrou enfim sua poesia. Para justificar uma existência que sem ela seria incompreensível.


Copacabana


Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

- Esta é a terra

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
- Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva - cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de um nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar...(Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,
Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Em momento de auto-retrato, Lya Luft diz que amar é lidar com os espinhos de quem ama por inteiro. Com força, não com fraqueza.


Auto-retrato


Alguém diz que sou bondosa:
está tão enganado que dá pena.
Alguém diz que sou severa,
e acho graça.
Não sou áspera nem amena:
estou na vida como o jardineiro
se entrega em cada rosa:
corte, sangue, dor e aroma,
para que a beleza fique na memória
quando a flor passa.

(Amar é lidar com os espinhos
de quem ama por inteiro:
com força, não com fraqueza.)

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

domingo, março 22, 2009

Orfeu rebelde, canto como sou. Canto, a ver se o meu canto compromete a eternidade do meu sofrimento, diz Miguel Torga em seu belo poema.


Orfeu rebelde


Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
a eternidade do meu sofrimento.

Outros felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.

Bicho instintivo que advinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga
(1907-1995)

Mais sobre Miguel Torga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

sábado, março 21, 2009

Em face dos últimos acontecimentos, Carlos Drummond de Andrade propõe que sejamos pornográficos. Docemente pornográficos.



Em face dos últimos acontecimentos


Oh! sejamos pornográficos
(docemente pornográficos)
Por que seremos mais castos
que o nosso avô português?

Oh! sejamos navegantes,
bandeirantes e guerreiros,
sejamos tudo que quiserem,
sobretudo pornográficos.

Teus amigos estão sorrindo
de tua última resolução.
Pensavam que o suicídio
fosse a última resolução.
Não compreendem, coitados,
que o melhor é ser pornográfico.

Propõe isso a teu vizinho,
ao condutor do teu bonde,
a todas as criaturas
que são inúteis e existem,
propõe ao homem de óculos
e à mulher de trouxa de roupa.
Dize a todos: Meus irmãos,
não quereis ser pornográficos?

Carlos Drummond de Andrade
(1902=1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

O que será que o Conde D'Eu disse para Dona Benvinda no baile da Corte e só Oswald de Andrade ficou sabendo?


Relicário


No baile da Corte
Foi o Conde D'eu quem disse
Pra Dona Benvinda
Que farinha de Suruí
Pinga de Parati
Fumo de Baependi
É comê bebê pitá e caí


Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

No beco escuro e noturno vem um gato rente ao muro. Para Dante Milano, os passos são de gatuno, os olhos são de assassino.


O beco


No beco escuro e noturno
Vem um gato rente ao muro.
Os passos são de gatuno.
Os olhos são de assassino.

Esgueirando-se, soturno,
Ele me fita no escuro.
Seus passos são de gatuno.
Seus olhos são de assassino.

Afasta-se, taciturno.
Espanta-o meu vulto obscuro.
Meus passos são de gatuno.
Meus olhos são de assassino.

Dante Milano
(1899-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

sexta-feira, março 20, 2009

Na noite, olhos fechados, tua voz dói-me no coração por tudo quanto chora. Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós, diz Fernando Pessoa em seu lamento.


A lembrada


A lembrada canção,
Amor, renova agora.
Na noite, olhos fechados, tua voz
Dói-me no coração
Por tudo quanto chora.
Cantas ao pé de mim, e eu estou a sós.

Não, a voz não é tua
Que se ergue e acorda em mim
Murmúrios de saudade e de inconstância,
O luar não vem da lua
Mas do meu ser afim
Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.

Não, não é teu o canto
Que como um astro ao fundo
Da noite imensa do meu coração
Chama em vão, chama tanto...

Quem sou, não sei...e o mundo?...
Renova, amor, a antiga e vã canção.

Cantas mais que por ti.
Tua voz é uma ponte
Por onde passa, inúmero, um segredo
Que nunca recebi -
Murmúrio do horizonte,
Água na noite, morte que vem cedo.

Assim, cantas sem que existas.
Ao fim do luar pressinto
Melhores sonhos que este da ilusão.

Fernando Pessoa
(188-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Mário de Andrade gosta de estar ao lado da amiga, sem brilho. Eles estão no interior de uma asa que fechou.


Poemas da amiga


VII

Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.
Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.
Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.

Estamos no interior duma asa
Que fechou.

Mário de Andrade
(1893-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

Nos versos de Jorge Luis Borges, foi o fidalgo um sonho de Cervantes. E Dom Quixote um sonho do fidalgo.


Sueña Alonso Quijano


El hombre se despierta de un incierto
Sueño de alfanjes y de campo llano
Y se toca la barba con la mano
Y se pregunta si está herido o muerto.
No le perseguirán los hechiceros
que han jurado su mal bajo la luna?
Nada. Apenas el frio. Apenas una
Dolencia de sua años postrimeros.
El hidalgo fue un sueño de Cervantes
Y Don Quijote un sueño del hidalgo.
El doble sueño los confunde y algo
está pasnado que pasó mucho antes.
Quijano duerme y sueña. Una batalla:
Los mares de Lepanto y la metralla.

Jorge Luis Borges
(1899-1986)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges

quinta-feira, março 19, 2009

Murilo Mendes quis acender o espírito da vida, refundir o próprio molde, conhecer a verdade. Foi rebelde contra tudo, mas não pode pedir perdão.


Novíssimo Prometeu


Eu quis acender o espírito da vida,
Quis refundir meu próprio molde,
Quis conhecer a verdade dos seres, dos elementos;
Me rebelei contra Deus,
Contra o papa, os banqueiros, a escola antiga,
Contra minha família, contra meu amor,
Depois contra o trabalho,
Depois contra a preguiça,
Depois contra mim mesmo,
Contra minhas três dimensões:

Então o ditador do mundo
Mandou me prender no Pão de Açúcar:
Vêm esquadrilhas de aviões
Bicar o meu pobre fígado.
Vomito bílis em quantidade,
Contemplo lá embaixo as filhas do mar
Vestidas de maiô, cantando sambas,
Vejo madrugadas e tardes nascerem
- Pureza e simplicidade da vida! -
Mas não posso pedir perdão.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

O que fica nas palavras daquilo que se viveu? Para Nuno Júdice, um pó de sílabas, o ritmo pobre da gramática, rimas sem nexo...


Amor


Um poema, dizes, em que
o amor se exprima, tudo
resumindo em palavras.

Mas o que fica
nas palavras
daquilo que se viveu?

Um pó de sílabas,
o ritmo pobre da
gramática, rimas sem nexo...

Nuno Júdice

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

Alphonsus Guimaraens Filho diz que não há poema isento, há é o poema. Há é o poema e o homem, fundidos.


O poeta e o poema


Nenhum poema se faz de matéria abstrata.
É a carne, e seus suplícios,
ternuras,
alegrias,
é a carne, é o que ilumina a carne, a essência,
o luminoso e o opaco do poema.

Nenhum poema. Nenhum pode nascer do inexistente.
A vida é mais real do que a realidade.
E em seus contrastes e sequelas, funda
um reino onde pervagam
não a agonia de um, não o alvoroço
de outro,
mas o assombro de todos num caminho
estranho
como infinito corredor que ecoa
passos idos (de agora,
e de ontem e de sempre),
passos,
risos e choros - num reino
que nada tem de utópico, antes
mais duro do que rocha,
mais duro do que rocha da esperança
(do desespero?),
mais duro do que a nossa frágil carne,
nossa atônita alma
- duros pesar de seu destino, duros
pesar de serem só a hora do sonho,
do sofrimento,
de indizível espanto,
e por fim um silêncio que arrepia
a epiderme do acaso:

E por fim um silêncio...Nenhum poema
se tece de irreais tormentos. Sempre
o que o verso contém é um fluir de sangue
no coração da vida,
no pobre coração da vida, aqui
paralisado, além
nascente no seu ímpeto de febre,
no coração da vida,
no coração da vida,
(da morte?)
e um frio antigo, e as bocas
cerradas, olhos cegos,
canto urdido de cantos sufocados,
e uma avenida longa, longa, longa,
e a noite,
e a noite,
e, talvez, um sublime amanhecer.

(...)

Não há poema isento.
Há é o homem.
Há é o homem e o poema.
Fundidos.

Alphonsus Guimaraens Filho
(1918-2008)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alphonsus_Guimaraens_Filho

quarta-feira, março 18, 2009

Vamos viver de brisa, Anarina. No Nordeste faz calor também, mas lá tem brisa, convida Manuel Bandeira com amor.


Brisa


Vamos viver no Nordeste, Anarina.
Deixarei aqui meus amigos, meus livros, minhas riquezas, minha vergonha.
Deixarás aqui tua filha, tua avó, teu marido, teu amante.
Aqui faz muito calor.
No Nordeste faz calor também.
Mas lá tem brisa:
Vamos viver de brisa, Anarina.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Ana Cristina César pergunta se é louca, se é sã e, ainda mais, se é ela. E se a loura donzela é um fenômeno mor ou é um lapso sutil?


Soneto


Pergunto aqui se sou louca
Quem quer saberá dizer
Pergunto mais, se sou sã
E ainda mais, se sou eu

Que uso o viés pra amar
E finjo fingir que finjo
Adorar o fingimento
Fingindo que sou fingida

Pergunto aqui meus senhores
quem é a loura donzela
que se chama Ana Cristina

E que se diz ser alguém
É um fenômeno mor
Ou é um lapso sutil?

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

Moacyr Félix vê luzes que desenharam o mundo em que vivemos. Impassível como un tronco de árvore, onde os homens gravam a canivete o que calaram.


Poema quase explicação


Luzes cortaram mais uma vez a noite básica
e desenharam o mundo em que vivemos.

E as estrelas derramaram pedra e cal
e construiram em cada olhar muralhas
onde fonte magra pinga sol e lua
- e o relógio é um deus cantando as horas
horas de pedra e cal, prontas para o nada.

Simplificado como uma lágrima
cruzaste a tua ponte de meninos mortos:
não mais o refletido caminhar
de teus passos na noite iluminada,
mas o descer com os olhos a ladeira
e deixá-los no cárcere sem portas
onde os ratos e os anjos se devoram.

Impassível como um tronco de árvore, onde
os homens gravam a canivete o que calaram.

Moacyr Félix
(1926-2005)

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http://en.wikipedia.org/wiki/Moacyr_F%C3%A9lix

terça-feira, março 17, 2009

Mario Quintana sente que escreveu um poema horrível. É claro que ele queria dizer alguma coisa, mas o quê?


O pobre poema


Eu escrevi um poema horrível!
É claro que ele queria dizer alguma coisa...
Mas o quê?
Estaria engasgado?
Nas suas meias palavras havia no entatnto uma ternura
mansa como a que se vê nos olhos de uma criança
doente, uma precoce, incompreensível gravidade
de quem, sem ler os jornais,
soubesse dos sequestros
dos que morrem sem culpa
dos que se desviam porque todos os caminos estão
tomados...
Poema, menininho condenado,
bem se via que ele não era deste mundo
nem para este mundo...
Tomado, então, de um ódio insensato,
esse ódio que enlouquece os homens ante a insuportável
verdade, dilacerei-o em mil pedaços.
E respirei...
Também quem mandou nascer no mundo errado...

Mario Quintana
(1906-1994)

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Tudo vem me lembrar que tu fugiste. Tudo que me rodeia de ti fala, diz Castro Alves em sua hora da saudade.


Hora da saudade


Tudo vem me lembrar que tu fugiste,
Tudo que me rodeia de ti fala.
Inda a almofada, em que pousaste a fronte
O teu perfume predileto exala

No piano saudoso, à tua espera,
Dormem sono de morte as harmonias.
E a valsa entreaberta mostra a frase
A doce frase qu'inda há pouco lias.

As horas passam longas, sonolentas...
Desce a tarde no carro vaporoso...
D'Ave Maria o sino , que soluça,
É por ti que soluça mais queixoso.

E não vens te sentar perto, bem perto
Nem derramas ao vento da tardinha,
A caçoula de notas rutilantes
Que tua alma entornava sobre a minha.

E, quando uma tristeza irresistível
Mais fundo cava-me um abismo n'alma,
Como a harpa de Davi teu riso santo
Meu acerbo sofrer já não acalma.

É que tudo me lembra que fugiste.
Tudo que me rodeia de ti fala...
Como o cristal da essência do oriente
Mesmo vazio a sândalo trescala.

No ramo curto o ninho abandonado
Relembra o pipilar do passarinho.
Foi-se a festa de amores e de afagos...
Eras - ave do céu...minh'alma - o ninho!

Por onde trilhas - um perfume expande-se
Há ritmo e cadência no teu passo!
És como a estrela, que transpondo as sombras,
Deixa um rastro de luz no azul do espaço...

E teu rastro de amor guarda minh'alma,
Estrela que fugiste aos meus anelos!
Que levaste-me a vida entrelaçada
Na sombra sideral de teus cabelos!...

Castro Alves
(1847-1871)

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José Marti não cultivava cardo nem ortiga. O grande poeta e mártir da independência cubana cultivava uma rosa branca.


Cultivo una rosa blanca


Cultivo una rosa blanca,
en julio como en enero,
para el amigo sincero,
que me da su mano franca.

Y para el cruel que me arranca
el corazón con que vivo,
cardo ni ortiga cultivo:
cultivo una rosa blanca.

José Marti
(1853-1895)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Mart%C3%AD

segunda-feira, março 16, 2009

Cecília Meireles diz que desenrolou de dentro do tempo a sua canção. E que não tem inveja às cigarras, ela também vai morrer de cantar.


Aceitação


É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas, nem as formas do mar,
nem tu.

Densenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.

Cecília Meireles
(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Comigo me desavim, não posso viver comigo nem posso fugir de mim. Com esta temática, Sá de Miranda criou uma grande polêmica em pleno Século XIV.


Comigo me desavim

Comigo me desavim,
Sou posto em todo perigo,
Não posso viver comigo,
Não posso fugir de mim.

Com dor, de gente fugia,
Antes que esta assim crescesse:
Agora já fugiria
De mim, se de mim pudesse.

Que meio espero ou que fim
Do vão trabalho que sigo,
Pois que trago a mim comigo,
Tamanho imigo de mim?

Francisco Sá de Miranda
(1481-1556)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%A1_de_Miranda

Nos versos de Sylvia Plath, seu espelho não tem preconceitos. Tudo o que vê engole no mesmo momento, do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.


Espelho

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível.

Sylvia Plath
(1932-1963)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Sylvia_Plath

domingo, março 15, 2009

Os sentidos de Alberto Caeiro aprenderam sozinhos que as cousas não têm significação, têm existência. E que as cousas são o único sentido das cousas.


O mistério


O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,
Rio como um regato que soa fresco numa pedra.

Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.

Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido das cousas.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Diante do avanço das máquinas, o poeta se pergunta, por que? Até fazer um poema, quer saber Cassiano Ricardo, por que?


Ladainha

Por que o raciocínio,
os músculos, os ossos?
A automação, ócio dourado.
O cérebro eletrônico, o músculo
mecânico
mais fáceis que um sorriso.

Por que o coração?
O de metal não tornará o homem
mais cordial,
dando-lhe um ritmo extra-
corporal?

Por que levantar o braço
para colher o fruto?
A máquina o fará por nós.
Por que labutar no campo, na cidade?
A máquina o fará por nós.
Por que pensar, imaginar?
A máquina o fará por nós.
Por que fazer um poema?
A máquina o fará por nós.
Por que subir a escada de Jacó?
A máquina o fará por nós.

Ó máquina, orai por nós.

Cassiano Ricardo

(1895-1974)

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Para Joaquim Cardozo, não importa como se chama a pequena chuva inconstante e breve. Ele quer muito bem à doce chuva, quer se chame Tereza ou Maria.



Chuva de caju


Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve?
Tereza? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos.
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
E em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada a tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Tereza ou Maria.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

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sábado, março 14, 2009

Lamento de Neruda para sua amada: só posso te amar com beijos e papoulas, com grinaldas molhadas de chuvas, olhando cinzentos cavalos e cães amarelos.


Ode com um lamento


Oh niña, entre las rosas, oh presión de palomas,
oh presidio de peces y rosales,
tu alma es una botella llena de sal sedienta
y una campana llena de uvas es tu piel.

Por desgracia no tengo para darte sino uñas
o pestañas, o pianos derretidos,
o sueños que salen de mi corazón a borbotones,
polvorientos sueños que corren como jinetes negros,
sueños llenos de velocidades y desgracias.

Sólo puedo quererte com besos y amapolas,
con guirnaldas mojadas por la lluvia,
mirando cenicientos caballos y perros amarillos.

Sólo puedo quererte con olas a la espalda,
entre vagos golpes de azufre y aguas ensimismadas,
nadando en contra de los cementerios que corren en ciertos rios
con pasto mojado creciendo sobre las tristes tumbas de yeso,
nadando a través de corazones sumergidos
y pálidas planillas de niños insepultos.

Hay mucha muerte, muchos acontecimentos funerarios
en mis desamparadas pasiones y desolados besos,
hay el agua que cae en mi cabeza,
mientras cresce mi pelo,
un agua como el tiempo, un agua negra desencadenada,
con una voz nocturna, con un grito
de pájaro en la lluvia, con una interminable
sombra de ala mojada que protege mis huesos:
mientras me visto, mientras
interminablemente me miro en los espejos y en los vidrios,
oigo que alguien me sigue llamándome a sollozos
con una triste voz podrida por el tiempo.

Tú estás de pie sobre la tierra, llena
de dientes e relámpagos.
Tú propagas los besos y matas las hormigas.
Tu lloras de salud, de cebolla, de abeja,
de abecedario ardiendo.
Tú eres como una espada azul y verde
y ondulas al tocarte, como un río.
Ven a mi alma vestida de blanco, con um ramo
de ensangrentadas rosas y copas de cenizas,
ven con una manzana y un caballo,
porque alli hay una sala oscura y un candelabro roto,
unas sillas torcidas que esperan el invierno,
y una paloma muerta, con un número.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Monica Salmaso, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção IX".


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http://www.divshare.com/download/5366527-778

Canção IX

Tenho meditado e sofrido
Irmanada com esse corpo
E seu aquático jazigo
Pensando
Que se a mim não deram
Esplêndida beleza
Deram-me a garganta
Esplandecida: a palavra de ouro
A canção imantada
O sumarento gozo de cantar
Iluminada, ungida
E te assustas do meu canto.
Tendo-me a mim
Preexistida e exata
Apenas tu, Dionísio, é que recusas
Ariana suspensa nas tuas águas.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

O que está morto está morto, está morto. Mas todas as minhas raízes estão contigo, diz Carlos Nejar à sua amada.


Todas as minhas raízes


Todas as minhas raízes
estão contigo.

Que a fome, a sede
se renovem.
E sejamos tão antigos
no amor e novos
junto aos meses.
Sim, o pátio dos meses.

O ar já não pousa
sobre as coisas humanas.
O fusível do ar.

O que está morto
está morto
está morto.
Mas todas as minhas raízes
estão contigo.

As flores que nunca morrem,
são essas que em ti se movem.

Todas as minhas raízes,
as minhas raízes.
Até as mais aéreas.

Carlos Nejar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

sexta-feira, março 13, 2009

Em momento de aguda depressão, Augusto dos Anjos diz que se chama Aberração. E que sua alma é um misto de anomalias lúgubres.


Aberração


Na velhice automática e na infância,
(Hoje, ontem, amanhã e em qualquer era)
Minha hibridez é a súmula sincera
Das defectividades da Substância.

Criando na alma a estesia abstrusa da ânsia,
Como Belerofonte com a Quimera
Mato o ideal; cresto o sonho; achato a esfera
E acho odor de cadáver na fragrância!

Chamo-me Aberração. Minha alma é um misto
De anomalias lúgubres. Existo
Como o cancro, a exigir que os sãos enfermem...

Teço a infâmia: urdo o crime; engendro o lodo
E nas mudanças do Universo todo
Deixo inscrita a memória do meu gérmen!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

De que servem a bondade, a liberdade e a razão? Para tantas questões, Bertolt Brecht tem a resposta correta para os bons, os livres e os razoáveis.


De que serve a bondade


I

De que serve a bondade
Se os bons são imediatamente liquidados, ou são liquidados
Aqueles para os quais eles são bons?

De que serve a liberdade
Se os livres têm que viver entre os não-livres?

De que serve a razão
Se somente a desrazão consegue o alimento de que todos necesitam?

2

Em vez de serem apenas bons, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne possível a bondade
ou melhor: que a torne supérflua!

Em vez de serem apenas livres, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que liberte a todos
E também o amor à liberdade
Torne supérfluo!

Em vez de serem apenas razoáveis, esforcem-se
Para criar um estado de coisas que torne a desrazão de um indivíduo
Um mau negócio!

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Casimiro de Abreu a as saudades da aurora da sua vida, da sua infância querida que os anos não trazem mais. Ah! que saudade da minha infância...


Meus oito anos


Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!

Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!

Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!

Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
- Pés descalços, braços nus -
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!

Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
- Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu
(1839-1860)

Mais sobre Casimiro de Abreu em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Casimiro_de_Abreu

quinta-feira, março 12, 2009

Em sua antiode à tristeza, Vinicius de Moraes deixou como legado um de seus mais belos poemas. Inexplicavelmente, pouco conhecido.


Antiode à tristeza


Ó enfermeira sem som do olhar sem cor
Que refletida ao último infinito
Pela lúcida insânia dos espelhos
Passeias pelo imenso corredor
Dessa antiga Irmandade! Ó sonolenta
Irmã-sem-Caridade, que vagueias
Com tuas leves sandálias de silêncio
Cuidando com desvelo da saudade
E dos males de amor de cada enfermo!
Ó guardiã do ermo, provedora
De langor, que pelo imenso corredor
Deste hospital sem termo, te comprazes
Em deitar éter sobre o sofrimento
Dos que querem viver, e dar morfina
Aos que morrem de amor! Ó freira louca
Irmã-sem-Fé, a desfiar, ausente
Teu rosário sem fim de contas ocas!
Ó trânsfuga da vida, esmaecida
Monja: o que queres mais de mim?
Já não te dei meus dias, minhas noites
E até minhas auroras, não te dei?
Já te mandei embora? Não fui sempre
Teu melhor paciente, e o mais antigo?
Não fui amigo teu, mesmo doente
De ti, não fui, Madre desoladora?
Pois agora te digo: vai-te embora!
Afasta-te de mim! não mais te quero
Irmã-sem-Esperança, confessora
Sem perdão, de quem mais nada espero
Senão vazio e angústia. Irmã-sem-Dor
Com teu rosário e teu burel de cinzas
A empoeirar de tédio as minhas horas.
Vai predicar além, predicadora
Da voz ausente, vai! que se me voltas
Eu grito nomes feios, eu te espanco
Ou te enforco em teu terço de mil voltas
Ou caio na risada, ou te exorcizo
Com um gigantesco crucifixo branco
Onde, transverberando luz do flanco
Resplende o corpo nu da minha amada.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Nos versos de Manoel de Barros, aquele caranguejo era muito se achante. Se achava idôneo para flor, ia como se fosse tomar posse de deputado.


Se achante


Era um caranguejo muito se achante.
Ele se achava idôneo para flor.
Passava por nossa casa
Sem nem olhar de lado.
Parece que estava montado num coche
de princesa.
Ia bem devagar
Conforme o protocolo
A fim de receber aplausos.
Muito achante demais.
Nem parou para comer goiaba.
(Acho que quem anda de coche não come
goiaba.)
Ia como se fosse tomar posse de deputado.
Mas o coche quebrou
E o caranguejo voltou a ser idôneo para
mangue.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Pouco a pouco vou repelindo a noite e tu, dentro de mim, vais descobrindo vales. Nos versos de Maria Teresa Horta, as lembranças de nossas madrugadas.


As nossas madrugadas


Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

pois suspeitas

que com ele me visto e me
defendo

É raiva
então ciúme
a tua boca

é dor e não
queixume
a tua espada

é rede a tua língua
em sua teia

é vício as palavras
com que falas

E tomas-me de força
não o sendo

e deixo que o meu ventre
se trespasse

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
e o disfarce

E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes
na pressa de teres o que só sentes
e possuíres de mim o que não sabes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

e eu pouco a pouco
vou repelindo a noite

e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

terça-feira, março 10, 2009

Quer pouco, terás tudo. Quer nada, serás livre. De Ricardo Reis para todos nós.


Quer pouco


Quer pouco, terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Sou: estou e canto. Assim é o poeta Thiago de Mello, humanamente em paz com ele mesmo.


Água de remanso


Cismo o sereno silêncio:
sou: estou humanamente
em paz comigo: ternura.

Paz que dói, de tanta.
Mas orvalho. Em seu bojo
estou e vou, como sou.

Ternura: maneira funda,
cristalina do meu ser.
Água de remanso, mansa
brisa, luz de amanhecer.

Nunca é a mágoa mordendo.
Jamais a turva esquivança,
o apego ao cinzento, ao úmido,
a concha que aquece na alma
uma brasa de malogro.

É ter o gosto da vida,
amar o festivo, o claro,
é achar doçura nos lances
mais triviais de cada dia.

Pode também ser tristeza:
tranquilo na solidão macia.
Apaziguado comigo,
meu ser me sabe: e me finca
no fulcro vivo da vida.

Sou: estou e canto

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

As minhas ilusões, diz Florbela Espanca, também as vi levar em urna d'oiro. No Mar da Vida, assim, uma por uma.


As minhas ilusões


Hora sagrada dum entardecer
D'Outono, à beira-mar, cor de safira.
Soa no ar uma invisível lira...
O sol é um doente a enlanguescer...

A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!

O sol morreu...e veste luto o mar...
E eu vejo a urna d'oiro, a baloiçar,
À flor das ondas, num lençol d'espuma!

As minhas Ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urna d'oiro,
No Mar da Vida, assim...uma por uma...

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Para João Cabral de Melo, o poema final ninguém escreverá de um mundo particular de doze horas. Em vez de juízo final, a ele preocupa o sonho final.


O fim do mundo


No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.

Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.

O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim me preocupa
o sonho final.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Guimarães Rosa queria dormir longamente para esperar o divino momento em que ela há de ser sua. E voar assim até o momento de todos os momentos.


Impaciência


(duas variações sobre o mesmo tema)

I

Eu queria dormir
longamente...
(um sono só...)
Para esperar assim
o divino momento que eu pressinto,
em que hás de ser minha...

Mas...
e se essa hora
não devesse chegar nunca?...
Se o tempo,
como as outras cousas todas,
te separa de mim?!...

Então...
ah! então eu gostaria
que o meu sono,
friíssimo e sem sonhos
(um sono só...)
não tivesse mais fim...

II

Se eu pudesse correr pelo tempo afora,
vertiginosamente,
futuro adiante,
saltando tantas horas tediosas,
vazias de ti,
e voar assim até o momento de todos os momentos,
em que hás de ser minha!...

Mas...
e se esse minuto faltar
nas areias de todas as ampulhetas?...
E se tudo fosse inútil:
a máquina de Wells,
as botas de sete léguas do Gigante?!...

Então...
ah!, então eu gostaria
de desviver para trás, dia por dia,
para parar só naquele instante,
e nele ficar, eternamente, prisioneiro...
(Tu sabes, aquele instante em que sorrias
e me fizeste chorar...)

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Guimar%C3%A3es_Rosa

Ariano Suassuna enfrentará o Sol divino, o Olhar sagrado em que a Pantera arde.E saberá porque a teia do Destino não houve quem cortasse ou desatasse.


A morte - o Sol do Terrível


Mas eu enfrentarei o Sol divino,
o Olhar sagrado em que a Pantera arde.
Saberei porque a teia do Destino
não houve quem cortasse ou desatasse.

Não serei orgulhoso nem covarde,
que o sangue se rebela ao toque e ao Sino.
Verei feita em topázio a luz da Tarde,
pedra do Sono e cetro do Assassino.

Ela virá, Mulher, afiando as asas,
com os dentes de cristal, feitos de brasas,
e há de sagrar-me a vista o Gavião.

Mas sei, também, que só assim verei
a coroa da Chame e Deus, meu Rei,
assentado em seu trono do Sertão.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

segunda-feira, março 09, 2009

Carlos Drummond de Andrade admite que seu verso lhe agrada sempre. Mas se o verso não deu certo, foi o ouvido do outro que entortou.


Explicação


Meu verso é minha consolação.
Meu verso é minha cachaça. Todo mundo tem sua cachaça.
Para beber, copo de cristal, canequinha de folha-de-flandres,
folha de taioba, pouco importa: tudo serve.

Para louvar a Deus como para aliviar o peito,
queixar o desprezo da morena, cantar minha vida e trabalhos
é que faço meu verso. E meu verso me agrada.

Meu verso me agrada sempre...
Ele às vezes tem o ar sem-vergonha de quem vai dar uma cambalhota,
mas não é para o público, é para mim mesmo essa cambalhota.
Eu bem me entendo.
Não sou alegre. Sou até muito triste.
A culpa é da sombra das bananeiras de meu país, esta sombra mole, preguiçosa.

Há dias em que ando na rua de olhos baixos
para que ninguém desconfie, ninguém perceba
que passei a noite inteira chorando.
Estou no cinema vendo fita de Hoot Gibson,
de repente ouço a voz de uma viola...
saio desanimado.
Ah, ser filho de fazendeiro!
À beira do São Francisco, do Paraíba ou de qualquer córrego vagabundo,
é sempre a mesma sen-si-bi-li-da-de.
E a gente viajando na pátria sente saudades da pátria.
Aquela casa de nove andares comerciais
é muito interessante.
A casa colonial da fazenda também era...
No elevador penso na roça,
na roça penso no elevador.

Quem me fez assim foi minha gente e minha terra
e eu gosto bem de ter nascido com essa tara.
Para mim, de todas as burrices a maior é suspirar pela Europa.
A Europa é uma cidade muito velha onde só fazem caso de dinheiro
e tem umas atrizes de pernas adjetivas que passam a perna na gente.
O francês, o italiano, o judeu falam uma língua de farrapos.
Aqui ao menos a gente sabe que tudo é uma canalha só,
lê o seu jornal, mete a língua no governo,
queixa-se da vida (a vida está tão cara)
e no fim dá certo.

Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.
Eu não disse ao senhor que não sou senão poeta.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Andrade de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Para Jorge de Lima, ter Arte é ter Paixão e não há Paixão sem Verso. Porque o verso é a Arte do Verbo.


Paixão e arte


Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem Verso...
O verso é a Arte do Verbo - o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso;
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
dum amor inocente (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.

Jorge de Lima
(1893-1953)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

domingo, março 08, 2009

Álvaro de Campos sente a dor que desde ontem a cidade mudou. Tem uma cruz na porta da tabacaria.


Cruz na porta


Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem- 'star que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.

Quem era? Ora, era quem eu via?
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.

Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou.
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.

Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.

Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria:
Desde ontem a cidade mudou.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Adélia Prado tem um consolo na vida. Descobriu que Deus é mais belo que ela e não é jovem.


Parâmetro


Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isso, sim, é consolo.

Adélia Prado

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Mário Faustino sugere que lamentemos os que estão em melhor situação que a nossa. Afinal, os ricos têm mordomos e não têm amigos.


A água-furtada


Vamos, lamentemos os que estão em melhor
situação que a nossa.
Vamos meu amigo, e lembra-te:
os ricos têm mordomos e não têm amigos.
E nós temos amigos e não temos mordomos.
Vamos, lamentemos os casados e os solteiros.

A aurora entra com pés pequenos
Pavlova dourada.
E estou perto do meu desejo.
E a vida não tem nada de melhor.
Que esta hora de claro frescor,
a hora de acordar juntos.

Mário Faustino
(1930-1962)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Faustino

sexta-feira, março 06, 2009

Para Ferreira Gullar, só cabe no poema o homem sem estômago, a mulher de nuvens e a fruta sem preço. O poema, senhores, não fede nem cheira.


Não há vagas


O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Paulo Leminski sabe que não tem quem segure essa secura, essa falta de sentimento que vem de dentro. Para ele, sentir é muito lento.


Parada cardíaca

Esta minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure
vem de dentro

Vem da zona escura
donde vem o que sinto
sinto muito
sentir é muito lento

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

E que é amar, que resta depois de tantos ais, a saudade? Para Menotti del Picchia, um punhado de pétalas na estrada, um perfume nos dedos e nada mais.


Desilusão


E que é amar? A estranha dor
de estilhaçar a alma em carinho...
É colher ao acaso alguma flor
para despetalá-la no caminho.

E que resta depois de tantos ais?

A saudade? Talvez...Ó alma enganada,
de ti e da flor não resta quase nada:
um punhado de pétalas na estrada,
um perfume nos dedos... - Nada mais.

Menotti del Picchia
(1892-1988)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

quinta-feira, março 05, 2009

Maria Teresa Horta sofre entre a tristeza e a saudade. Tudo pela solidão dos dias sem ternura.


Solidão


Entre a tristeza
e a saudade

um vago pátio interior
onde flutua

mansamente nos olhos
e ao fluir dos lábios

a solidão dos dias
sem ternura.

Maria Teresa Horta

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

Em momento de dúvida, Guilherme de Almeida confessa que não sabe. Não sabe, mas é ele.


Participação


Não sei, mas sou eu.

Quem acende as conchas,
quem nega a folhagem,
quem escuta a poeira,
quem reolve os mastros,
quem consulta os cactos,
quem queima os relógios,
quem dobra os luares
- não sei, mas sou eu.

Guilherme de Almeida
(1860-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quarta-feira, março 04, 2009

Na imaginação de Manuel Bandeira, o diálogo entre Irene e São Pedro. Lá, Irene não precisa pedir licença para entrar.


Irene n0 céu


Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
- Entra Irene. Você não precisa pedir licença.


Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Em seu ofício, Paulo Mendes Campos cedo aprendeu que um poema não tem porto. Sabedorias de um poeta no bar.


Poeta no bar


Que fazer de um instrumento,
Violoncelo, fonte, flauta,
A buscar um sofrimento
Que se encontra além da pauta?
Quando perdemos a voz,
Fala de nós e por nós
O personagem sem medo
Cujas palavras de olvido
Compõem o outro sentido
Do segredo de um degredo.

Tudo que rói e escalavra,
Dente de marfim do mar,
Faca do vento a passar,
Lembra a busca da palavra.
Só conhecer a ciência,
Malarmaica paciência,
Capaz de achar a vogal
Que surde empós das toantes,
Escadindas consoantes
De uma pausa musical
Estas horas perdoadas,
Perdidas de quem nos ama,
São aflições combinadas
Às pantomimas do drama.
Um filamento de riso
Liga o inferno ao paraíso.
Se a noite esconde as estrelas,
Pode um palhaço brilhante
Dar um salto tão distante
Que seja digno de vê-las.

Este arlequim de pintura
Vai surgir aqui, apenas
Compare a sua figura
A minhas roupas terrenas.
Vão surgir do saltimbanco
Perfil, fonte, face e flanco.
Vou sofrer por artifício
O silêncio desta mesa
Que me exila na clareza
De meu puro sacrifício.

Recife em mar de presságio,
Um poema não tem porto
Vaga que devolve o morto
Às areias do naufrágio.


Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

Duzentos anos atrás, era assim que Manuel Maria du Bocage sentia o amar dentro do peito. E depois da meia-noite, o maior gosto que há no mundo.


Amar dentro do peito


Amar dentro do peito uma donzela;
Jurar-lhe pelos céus a fé mais pura;
Falar-lhe, conseguindo alta ventura,
Depois da meia-noite na janela:

Fazê-la vir abaixo, e com cautela
Sentir abrir a porta, que murmura;
Entrar pé ante pé, e com ternura
Apertá-la nos braços casta e bela:

Beijar-lhe os vergonhosos, lindos olhos,
E a boca, com prazer o mais jucundo,
Apalpar-lhe de leve os dois pimpolhos:

Vê-la rendida enfim a Amor fecundo;
Ditoso levantar-lhe os brancos folhos;
É este o maior gosto que há no mundo.


Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage

terça-feira, março 03, 2009

No retrato que me faço, às vezes me pinto nuvem, às vezes me pinto árvore. Restará um desenho de criança, corrigido por um louco, diz Mario Quintana.


O Auto-Retrato


No retrato que me faço
- traço a traço -
às vezes me pinto nuvem,
às vezes me pinto árvore...

às vezes me pinto coisas
de que nem há mais lembrança...
ou coisas que não existem
mas que um dia existirão...

e, desta lida, em que busco
- pouco a pouco -
minha eterna semelhança,

no final, que restará?
Um desenho de criança...
Terminado por um louco!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre a vida e a obra de Mario Quintana:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mário_Quintana

Manoel de Barros se descobriu dois seres. O primeiro é fruto do amor de João e Alice, o segundo é letral.


Os dois


Eu sou dois seres.
O primeiro é fruto do amor de João e Alice.
O segundo é letral:
É fruto de uma natureza que pensa por imagens.
Como diria Paul Valery,
O primeiro está aqui de unha, roupa, chapéu
e vaidades.
O segundo está aqui em letras, sílabas, vaidades
frases.
E aceitamos que você empregue o seu amor em nós.

Manoel de Barros

Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Voa coração, ou então arde. Em tom de desafio, os versos de Eugénio de Andrade para um epitafio.


Epitáfio


Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

segunda-feira, março 02, 2009

Em seu improviso, Cecília Meireles sente que sobrevive sem o coração no peito. E pergunta: onde estás, Amor-Perfeito?


Improviso do Amor-Perfeito


Naquela nuvem, naquela,
mando-te o meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
E onde estás, Amor-Perfeito?

Imensos jardins da insônia,
de um olhar de despedida,
deram flor por toda a vida.

Ai de mim, que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito?

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Nos versos de Mário de Sá-Carneiro, toda a angústia existencial do poeta. E muito de sua vida.


Eu não sou eu nem sou o outro


Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar de ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro

Na modinha de Mário de Andrade, eram quatro rapazes dentro duma casa vazia. Se uma saia entrasse naquela casa...


Moda dos quatro rapazes


Nós somos quatro rapazes
Dentro duma casa vazia.

Nós somos quatro amigos íntimos
Dentro duma casa vazia.

Nós somos ver quatro irmãos
Morando numa casa vazia.

Meu Deus! si uma saia entrasse
A casa toda se encheria!

Mas era uma vez quatro amigos íntimos...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade