segunda-feira, agosto 31, 2009

Na noite lisa, Cecília Meireles sabe que estão brotando as lágrimas de uma canção. Pelo que não se realiza...


Embalo


Adormeço em ti minha vida,
- flor de sombra e de solidão -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

No poema de Manuel Ribeiro, a pobre cortesã do vício aluga o corpo para sustentar. E quando julga a gente que ela está cantando, está mas é chorando.


A prostituta


Nesta viela, onde mal entra o ar,
viceja a pobre cortesã do vício
que, como outro qualquer que tem ofício,
aluga o corpo para o sustentar.

Seus beijos dá-os já sem sacrifício
a todo aquele que a quiser beijar.
E de tantos gemidos abafar
só no seu peito d'ais se encontra indício.

Toda a tristeza que há na vida - e é tanta!
sempre nessa alma um eco vai deixando
e para alívio dos seus males canta.

Mas julga a gente que ela está cantando,
ouvindo a voz gemer-lhe na garganta,
ela coitada, está mas é chorando.

Manuel Ribeiro
(? - 1878)

domingo, agosto 30, 2009

Álvaro de Campos não está pensando em nada. Para ele, pensar em nada é ter a alma própria e inteira, é viver intimamente o fluxo e o refluxo da vida.


Não estou pensando em nada


Não estou pensando em nada.
E essa coisa central, que é coisa nenhuma,
É-me agradável como o ar da noite,
Fresco em contraste com o verão quente do dia.

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...

Não estou pensando em nada, e que bom!

Pensar em nada
É ter a alma própria e inteira.
Pensar em nada
É viver intimamente
O fluxo e o refluxo da vida...
Não estou pensando em nada.
É como se me tivesse encostado mal.
Uma dor nas costas, ou num lado das costas,
Há um amargo de boca na minha alma:
É que, no fim de contas,
Não estou pensando em nada,
Mas realmente em nada,
Em nada...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Em versos, Álvares de Azevedo diz à sua amada que quer apertá-la a seu peito e beijá-la com ternura. E pede: dá-me essa folha cheirosa, a malva-maçã.


Malva-maçã


De teus seios tão mimosos
quem gozasse o talismã!
Quem ali deitasse a fronte
cheia de amoroso afã!
E quem nela respirasse
a tua malva-maçã!

Dá-me essa folha cheirosa
que treme no seio teu!
Dá-me a folha...hei de beijá-la
sedenta no lábio meu!
Não vês que o calor do seio
tua malva emurcheceu...

A pobrezinha em teu colo
tantos amores gozou,
viveu em tanto perfume
que de enlevos expirou!
Quem pudesse no teu seio
morrer como ela murchou!

Teu cabelo me inebria,
teu ardente olhar seduz;
a flor de teus olhos negros
de tua alma raia à luz,
e sinto nos lábios teus
fogo do céu que transluz!

O teu seio que estremece
enlanguesce-me de gozo.
Há um quê de tão suave
no colo voluptuoso,
que num trêmulo delíquio
faz-me sonhar venturoso!

Descansar nesses teus braços
fora angélica ventura:
fora morrer - nos teus lábios
aspirar tua alma pura!
Fora ser Deus dar-te um beijo
na divina formosura!

Mas o que eu peço, donzela,
meus amores, não é tanto!
Basta-me a flor do seio
para que eu viva no encanto,
e em noites enamaradas
eu verta amoroso pranto!

Ó virgem dos meus amores,
dá-me essa folha singela!
Quero sentir teu perfume
nos doces aromas dela...
E nessa malva-maçã
sonhar teu seio, donzela!

Uma folha assim perdida
de um seio virgem no afã
acorda ignotas doçuras
com divino talismã!
Dá-me do seio esta folha
- a tua malva maça!

Quero apertá-la a meu peito
e beijá-la com ternura...
Dormir com ela nos lábios
desse aroma na frescura...
Beijando-a sonhar contigo
e desmaiar de ventura!

A folha que tens no seio
de joelhos pedirei...
Se posso viver sem ela
não o creio!...Oh, eu não sei!...
Dá-m'a pelo amor de Deus,
que sem ela morrrerei.

Pelas estrelas da noite,
pelas brisas da manhã,
por teus amores mais puros,
pelo amor de tua irmã,
dá-me essa folha cheirosa
- a tua malva-maçã.

Álvares de Azevedo
(1831-1852)

Mais sobre Álvares de Azevedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo

sábado, agosto 29, 2009

Moça, conservaste o teu coração de pobre, os teus pés de pobre, tua boca que nem sempre teve pão ou delícia. Por isso te escolhi, diz Neruda com amor.


Vienes de la pobreza de las casas del Sur (Poema XXIX)


Vienes de la pobreza de las casas del Sur,
de las regiones duras con frio y terremoto
que cuando hasta sus dioses rodaron a la muerte
non dieron la lección de la vida en la greda.

Eres um caballito de greda negra, un beso
de barro oscuro, amor, amapola de greda,
paloma del crepúsculo que voló en los caminos,
alcancía com lágrimas de nuestra pobre infancia.

Muchacha, has conservado tu corazón de pobre,
tus piés de pobre acostumbrados a las piedras,
tu boca que no siempre tuvo pan o delicia.

Eres del pobre Sur, de onde viene mi alma:
en su cielo tu madre sigue lavando ropa
con mi madre. Por eso te escogi, compañera.

Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

A mulher de Curvo Semedo morreu. E em sua insensível sinceridade, ele diz que só uma vez o agradou, só uma vez lhe fez a vontade.


Só um agrado


- Minha mulher expirou!
E a doce tranquilidade
sobre a minha alma baixou!
- Pois não lhe tinha amizade?
- Só uma vez me agradou.
- Quando foi? - Quando passou
desta vida à esternidade.
- E por quê? - Porque foi só
no que me fez vontade.

Curvo Semedo
(1766-1838)

Mais sobre Curvo Semedo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Curvo_Semedo

sexta-feira, agosto 28, 2009

Ferreira Gullar sabe muito bem que a poesia não muda (logo) o mundo. Mas é por isso mesmo que se faz poesia, porque falta alegria.


Boato


Espalharam por aí qe o poema
é uma máquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.

Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão lavadas com suas folhas
e seus galhos
existindo?
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

quinta-feira, agosto 27, 2009

Para Manuel Bandeira, os camelôs ensinam nas ruas os mitos heróicos da meninice. E dão aos homens preocupados ou tristes uma lição de infância.


Camelôs


Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam boxe
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.

Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
- "O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar um
pedaço de banana para eu acender o charuto.
Naturalmente o menino pensará: Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos porém sabem mexer nos cordéis como o tino ingênuo de
demiurgos de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meninice...
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma lição de infância.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Quando à morte a luz me roube, ganhe um momento o que perderam anos. E saiba morrer o que viver não soube, diz um bem-comportado Bocage .


Saiba morrer o que viver não soube


Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando à morte a luz me roube
ganhe um momento o que perderam anos
saiba morrer o que viver não soube.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barosa du Bocage em
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quarta-feira, agosto 26, 2009

Para Mario Quintana, enquanto o poema não termina a rima é como uma esperança. E a canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.


Aula inaugural


É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na guerra do Paraguai...
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança, como Davi diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas...
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.

(Sabem todas as almas perdidas...)
O solene canto é um archote nas trevas.
(sabem todas as almas perdidas...)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa ruir o Caos atônito...

Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Gostar de ti é um poema que não escrevo. Há um rio sem leito, e eu sem coração, diz Manuel Alegre em seu belo poema de amor.


Uma flor de verde pinho


Eu podia chamar-te pátria minha
dar-te o mais lindo nome português
podia dar-te um nome de rainha
que este amor é de Pedro por Inês.

Mas não há forma não há verso não há leito
para este fogo amor para este rio.
Como dizer um coração fora do peito?
Meu amor transbordou. E eu sem navio.

Gostar de ti é um poema que não digo
que não há taça amor para este vinho
não há guitarra nem cantar de amigo
não há flor não há flor de verde pinho.

Não há barco nem trigo não há trevo
não há palavras para dizer este canção.
Gostar de ti é um poema que não escrevo.
Que há um rio sem leito. E eu sem coração.

Manuel Alegre

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Alegre

terça-feira, agosto 25, 2009

Como era bom alisar seu traseiro marmóreo, diz Carlos Drummond. Lembrando daqueles momentos em que só a bunda existia, o resto era miragem.


Era bom alisar seu traseiro marmóreo


Era bom alisar seu traseiro marmóreo
e nele soletrar meu destino completo:
paixão, volúpia, dor, vida e morte beijando-se
em alvos esponsais numa curva infinita.

Era amargo sentir em seu frio traseiro
a cor de outro final, a esférica renúncia
a toda aspiração de amá-la de outra forma.
Só a bunda existia, o resto era miragem.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Se a Laura dos seus loucos desvarios fosse menos soberba e fria, Cesário Verde diz que nunca mais se sentaria à mesa do Martinho. O amor em 1874...


Arrojos


Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignones" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os céus abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde
(1855-1886)

Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

segunda-feira, agosto 24, 2009

Cecília Meireles deixou passar a ronda lenta de muitas luas, mas a sua tristeza não diminuiu. E o seu Eleito não a vê, não a ouve, não a quer.


Novo poema da tristeza


Deixei passar a ronda lenta
De muitas luas,
Mas a minha tristeza não diminuiu...
Longe, longe,
O céu agora é deserto,
Como se houvesse morrido,
Como se houvesse acabado...
Sozinha, no meu luto,
Ergo as mãos,
Cheias de lágrimas,
Em oferenda...
Eleito, ó Eleito
Não me vês,
Não me ouves,
Não me queres!...
E vais deixar-me ficar assim
Toda a vida...
Oh! tem pena, ao menos,
Das aves,
Que podem vir beber
Nas minhas mãos,
E endoidecer depois,
Pelos ares,
Da tristeza que me endoidece...
Eleito, ó Eleito,
Deixei passar a ronda lenta
De muitas luas,
E a minha tristeza não diminuiu!...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Em sua antiga luta, Mayakovsky arrasa com a crítica que não compreende as massas. E exige que se eleve a cultura dos camponeses e operários.



Incompreensíveis para as massas


Entre escritor
e leitor
posta-se o intermediário
e o gosto
do intermediário
é bastante intermédio.
Medíocre
mesnada
de medianeiros médios
pulula
na crítica
e nos hebdomadários.
Aonde
galopando
chega teu pensamento
um deles
considera tudo
sonolento:
- Sou homem
de outra têmpera! Perdão,
lembra-me agora
um verso
de Nadson...
O operário
não tolera
linhas breves.
E com tal
mediador
ainda se entende Assiéiev.
Sinais de pontuação?
São marcas de nascença!
O senhor
corta os versos
toma muitas licenças
Továrich Maiacóvski,
por que não escreve iambos?
Vinte copeques
por linha
eu lhe garanto, a mais.
E narra
não sei quantas
lendas medievais,
e fala quatro horas
longas como anos.
O mestre lamentável
repete
um só refrão:
- Camponês
e operário
não vos compreenderão.
O peso da consciência
pulveriza
o autor.
Mas voltemos agora
ao conspícuo censor:
Camponês só viu
há tempo
antes da guerra,
na datcha,
ao comprar
mocotós de vitela.
Operários?
Viu menos.
Deu com dois
uma vez
por ocasião da cheia,
dois pontos
numa ponte
contemplando o terreno,
vendo a água subir
e a fusão das geleiras.
Em muitos milhões
para servir de lastro
colheu dois exemplares
o nosso criticastro.
Isto não lhe faz mossa -
é tudo a mesma massa...
Gente - de carne e osso!!
E à hora do chá
expende
sua sentença:
- A classe
operária?
Conheço-a como a palma!
Por trás
do seu
silêncio,
posso ler-lhe na alma -
Nem dor
nem decadência.
Que autores
então
há de ler essa classe?
Só Gogol,
só os clássicos.
Camponeses?
Também.
O quadro não se altera.
Lembra-me e agora -
a datcha, a primavera...
Este palrar
de literatos
muitas vezes passa
entre nós
por convívio com a massa.
E impinge
modelos
pré-revolucionários
da arte do pincel,
do cinzel,
do vocábulo.
E para a massa
flutuam
dádivas de letrados -
lírios,
delírios,
trinos dulcificados.
Aos pávidos
poetas
aqui vai meu aparte:
Chega de chuchotar
versos para os pobres.
A classe condutora,
também ela pode
compreender a arte.
Logo:
que se eleve
a cultura do povo!
Uma só,
para
todos.
O livro bom
é claro
e necessário
a vós,
a mim,
ao camponês,
e ao operário.

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski

domingo, agosto 23, 2009

Fernando Pessoa & Francis Hime, por Marilia Pera, em "O menino da sua mãe".


Link para download do poema em mp3 do canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/8253221-462


O menino da sua mãe

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado
- Duas, de lado a lado -,
Jaz morto, e arrefece

Raia-lhe a farda o sangue
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos

Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".

Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há a prece:
"Que volte cedo, e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto, e apodrece,
O menino da sua mãe.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Amor volat, nos versos de Pedro Kilkerry.


Amor volat


Não, não é comigo que ele nasceu... A sua asa
Só a um tempo ruflou desse modo, tamanho!
Bateu-me o coração... E outro não sei que, estranho,
Rudamente o rasgou como o seu bico em brasa...

Entrou-mo todo, enfim, como quem entra em casa
E em meu sangue, a cantar, fez de um boêmio no banho!
Oh! que pássaro mau! E eu nunca mais o apanho!
Vês: estou velho já. Treme-me o passo, e atrasa...

Olha-me bem, no peito, o rubro ninho aberto!
Hoje, fúnebre, a piar, uma estrige ao telhado
E o meu seio vazio! e o meu leito deserto!

E vivo só por ver, como curvo aqui fico,
Esse pássaro voar, largamente, um bocado
De músculos pingando a levar-me no bico!

Pedro Kilkerry
(1885-1917)

Mais sobre Pedro Kilkerry em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Kilkerry

sábado, agosto 22, 2009

Florbela Espanca vai pela estrada, sozinha. Não a acompanha ninguém, só a tristeza.


Triste passeio


Vou pela estrada, sozinha.
Não me acompanha ninguém.
Num atalho, em voz mansinha:
"Como está ele? Está bem?"

É a toutinegra curiosa:
Há em mim um doce enleio...
Nisto pergunta uma rosa:
"Então ele? Inda não veio?"

Sinto-me triste, doente...
E nem me deixam esquecê-lo!...
Nisto o sol impertinente:
"Sou um fio do seu cabelo..."

Ainda bem. É noitinha.
Enfim já posso pensar!
Ai, já me deixem sozinha!
De repente, oiço o luar:

"Que imensa mágoa me invade,
Que dor o meu peito sente!
Tenho uma enorme saudade
De ver o teu doce ausente!"

Volto a casa. Que tristeza!
Inda é maior minha dor...
Vem depressa. A natureza
Só fala de ti, amor!

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Vem amado meu, por que tardas tanto? Desce a tua boca sobre a minha boca para a tua alma levar a minha alma, implora Adalgisa Nery em seus versos.


A espera


Amado... Por que tardas tanto?
As primeiras sombras se avizinham
E as estrelas iniciam a noite.
Vem...
Pois a esperança que se acolheu em meu coração
Vai deixá-lo como um ninho abandonado nos penhascos.
Vem...Amado..
Desce a tua boca sobre a minha boca.
Para a tua alma levar a minha alma
Pesada de sofrimento!
Vem...
Para que, beijando a minha boca
Eu receba a sensação de uma janela aberta.
Amado meu...
Por que tardas tanto?
Vem...
E serás como um ramo de rosas brancas
Pousando no túmulo da minha vida...
Vem amado meu...
Por que tardas tanto?

Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

sexta-feira, agosto 21, 2009

Como um perdido de dor, Augusto dos Anjos vai todo dia pedir a sua bem-amada a esmola dum carinho. E a sua vida está unicamente nessa esmola.


A esmola de Dulce


E todo o dia eu vou como um perdido
De dor, por entre a dolorosa estrada,
Pedir a Dulce, a minha bem-amada,
A esmola dum carinho apetecido.

E ela fita-me, o olhar enlanguescido,
E eu balbucio trêmula balada:
- Senhora, dai-me u'a esmola - e estortorada
A minha voz soluça num gemido.

Morre-me a voz, e eu gemo o último harpejo,
Estendo à Dulce a mão, a fé perdida,
E dos lábios de Dulce cai um beijo.

Depois, como este beijo me consola!
Bendita seja a Dulce! A minha vida
Estava unicamente nessa esmola.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Em versos desencontrados, António Botto diz que em nada ou ninguém ele deveria acreditar. Nem no amor, nem na vida.


Versos desencontrados


Em nada ou em ninguém
Eu deveria acreditar!
Nem no amor, nem na vida. - As ilusões,
Mesmo até quando vêm disfarçadas
E já conhecem o cliente, hesitam,
E chegam a partir envergonhadas...
As ilusões -
Também têm os seus mais preferidos;
E àqueles que ficaram na ruína
Do pensamento, e são, por graça de conquista
Os pálidos mortais desiludidos,
A esses já não correm muito afoitas
Na mentira das grandes fantasias!
- É por isso que eu hoje ainda vivo
À margem das ridículas tragédias
Que lemos nos jornais toodos os dias.

Atulham-se os presídios; no degredo,
Atados à saudade, vão ficando,
- Como lesmas ao luar, esses que matam,
E pelo amor tombaram na desgraça:
- Um sonho, um beijo, uma mulher que passa!
Só a guitarra os lembra ao triste fado
Nos ecos diluídos e chorosos
E fundos do lusíada, coitado!
Eu olho para tudo que enxameia
Nesta viela escura da existência
Como quem se debruça num abismo
E fica revolvendo a consciência
Na tristeza infinita de um olhar!...
- A humanidade é vil e o seu egoísmo
Tem base na vileza de vexar.

Sim,
Por qualquer coisa os homens tudo vendem:
Palavra, dignidade, a própria vida,
Só porque desconhecem a doutrina
Bendita de Jesus; - esse tesoiro,
Essa fonte de luz onde aprendi
A ser leal e amigo e a respeitar
Aquela que nos risos do meu lar
Desembaraça os fios de uma queixa
No mistério que cinge o verbo amar.

Mas quando um ano acaba e outro vem,
Embora a minha fronte e os meus cabelos
Envelheçam na marcha para o fim
E um sabor de renúncia e de cansaço
Vibre, cantando, aqui, dentro de mim,
Rebenta-me no peito uma esperança
Tão lúcida, tão viva, e tão ungida
Na fé que ponho erguendo a minha prece -
Que peço a Deus do fundo da minha alma
Que a todos os que sofrem neste mundo
Dê o conforto de uma vida calma.

António Botto
(1897-1958)

Mais sobre António Botto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Botto

quinta-feira, agosto 20, 2009

Os sapos avisam que a lua surgiu. No alto da noite as estrelinhas piscam, puxando fios,e dançam nos fios cachos de poetas, no canto de Guimarães Rosa.


Luar


De brejo em brejo,
os sapos avisam:
- A lua surgiu...

No altar da noite as estrelinhas piscam,
puxando fios,
e dançam nos fios
cachos de poetas.

A lua madura
rola, desprendida,
por entre os musgos
das nuvens brancas...
Quem a colheu,
quem a arrancou
de caule longo
da Via Láctea?...

Desliza solta...

Se lhe estenderes
tuas mãos brancas,
ela cairá...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

Vem, doce morte, quando queiras. Tenho o corpo tão leve que a teu primeiro sopro cederei distraída, diz em versos Henriqueta Lisboa.


Vem, doce morte


Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.

Henriqueta Lisboa
(1901-1985)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Henriqueta_Lisboa

quarta-feira, agosto 19, 2009

Fernando Pessoa não sabe ser triste a valer, nem ser alegre deveras. Acreditem, ele não sabe ser.


Não sei ser


Não sei ser triste a valer
Nem ser alegre deveras.
Acreditem: não sei ser.
Serão as almas sinceras
Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma
E a mentira da emoção,
Com que prazer me dá calma
Ver uma flor sem razão
Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença.
Se a flor flore sem querer,
Sem querer a gente pensa.
O que nela é florescer
Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela,
Quando o Fado a faz passar,
Surgem as patas dos deuses
E a ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm
Vamos florir ou pensar.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

No canção de amor de Sylvia Plath, a jovem louca cerra os olhos e cai morto o mundo inteiro. Ela ergue as pálpebras e tudo volta a renascer.


Canção de amor da jovem louca

Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
(Acho que te criei no interior da minha mente)

Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
Entra a galope a arbitrária escuridão:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

Imaginei que voltarias como prometeste
Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
(Acho que te criei no interior de minha mente)

Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
(Acho que te criei no interior de minha mente.)

Sylvia Plath
(1932-1963)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Sylvia_Plath

terça-feira, agosto 18, 2009

Dormirei para avistar-te, para escutar-te, sobre saudades. Enquanto a manhã não chega, enquanto não sonho o dia, diz Cecília em seus versos de amor.


Dormirei para avistar-te


Dormirei para avistar-te
correndo a vida de pedra
como a água que vem da mata
clara e certa.

Dormirei para escutar-te
cantar sobre a noite negra
tua voz iluminada,
áureo cometa.

Dormirei sobre saudades
vendo ser lágrima e estrela
o que não tem mais resposta,
vida ou terra.

Domirei sobre estes sonhos,
enquanto a manhã não chega.
Enquanto não sonho o dia:
noite secreta.


Cecília Meireles
(1901-1964)

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No belo poema de Dante Milano, a tristeza cai da ponte como a poesia cai do céu. E o homem está embaixo, aparando as migalhas do infinito.


A ponte


O desenho da ponte é justo e firme, calmo e exato.
Nada poderá perturbar as suas linhas definitivas.
A sua arquitetura equilibra-se no ar
Como um navio na água, uma nuvem no espaço.
Embaixo da ponte há ondas e sombras.
Os mendigos dormem enrodilhados nos cantos.
Não têm forma humana. São sacos no chão.
Por momentos parece ouvir-se o choro de uma criança.
A água embaixo é suja,
O óleo coagula, em nódoas luminosas, reflexos lacrimejantes.
Um vulto debruçado sobre as águas
Contempla o mundo náufrago.
A tristeza cai da ponte
Como a poesia cai do céu.
O homem está embaixo aparando as migalhas do infinito.

A ponte é sombria como as prisões.
Os que andam sobre a ponte
Sentem os pés puxados para o abismo.
Ali tudo é iminente e irreparável,
Dali se vê a ameaça que paira.
A ponte é um navio ancorado.
Ali repousam os fatigados,
Ouvindo o som das águas, a queixa infindável,
Infindável, infindável...
Um apito dá gritos
A princípio crescendo em uivos, depois mantendo bem alto o apelo desesperado.
Passam navios. Tiros. Trovões.
Quando virá o fim do mundo ?
Por cima da ponte se cruzam
Reflexos de fogo, relâmpagos súbitos, misteriosos sinais.
Que combinam entre si os astros, inimigos da Terra ?
Quando virá o fim dos homens ?
A ponte pensa...

Dante Milano
(1899-1991)

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segunda-feira, agosto 17, 2009

No beijo de um minuto, quantos segundos de espanto. No poema de Vinicius de Moraes, esse beijo cria a eternidade e a vida, de tanta morte.


Um beijo


Um minuto o nosso beijo
Um só minuto, no entanto
Neste minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantos milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros
Tornados o último adeus
Quantas tíbias, quantos fêmures
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
Com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo a extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quantas mortes sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, a punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de nascituros
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta nos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortos de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto luto!...
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida, de tanta morte.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Quero dizer-te uma coisa simples: a tua ausência dói-me. É quando a tua voz me chama de dentro de mim, diz Nuno Júdice à mulher amada.


Ausência


Quero dizer-te uma coisa simples: a tua
Ausência dói-me. Refiro-me a essa dor que não
Magoa, que se limita à alma, mas que não deixa,
Por isso, de deixar alguns sinais - um peso
Nos olhos, no lugar da tua imagem, e
Um vazio nas mãos, como se tuas mãos lhes
Tivessem roubado o tacto. São estas as formas
Do amor, podia dizer-te; e acrescentar que
As coisas simples também podem ser complicadas,
Quando nos damos conta da diferença entre o sonho e a realidade.
Porém, é o sonho que me traz à tua memória; e a
Realidade aproxima-te de ti, agora que
Os dias que correm mais depressa, e as palavras
Ficam presas numa refracção de instantes,
Quando a tua voz me chama de dentro de
Mim - e me faz responder-te uma coisa simples,
Como dizer que a tua ausência me dói.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

domingo, agosto 16, 2009

Se recordo quem fui, outrem me vejo. E sinto que quem sou e quem fui são sonhos diferentes, diz Ricardo Reis em sua ode.


Se recordo


Se recordo quem fui, outrem me vejo,
E o passado é o presente na lembrança.
Quem fui é alguém que amo
Porém somente em sonho.
E a saudade que me aflige a mente
Não é de mim nem do passado visto,
Senão de quem habito
Por trás dos olhos cegos.
Nada, senão o instante, me conhece,
Minha mesma lembrança é nada, e sinto
Que quem sou e quem fui
São sonhos diferentes.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Nos olhos meigos e no andar tão brando de Maria, Machado de Assis descobre um não sei quê suave. Que lembra um grande pássaro marchando.


Maria


Maria, há no seu gesto airoso e nobre,
Nos olhos meigos e no andar tão brando,
Um não sei quê suave que descobre,
Que lembra um grande pássaro marchando.

Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre
As asas, mas não peço, reparando
Que, desdobradas, podem ir voando
Levá-la ao teto azul que a terra cobre.

E penso então, e digo então comigo:
"Ao céu que vê passar todas as gentes
Bastem outros primores de valia.

Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,
O nobre gesto e as graças excelentes
Da nossa cara e lépida Maria".

Machado de Assis
(1839-1908)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

sábado, agosto 15, 2009

Neruda diz que ama todas as coisas e que só o amor não gasta. Por isso, vai de vida em vida, de guitarra em guitarra, sem medo da luz nem da sombra.


Aqui vivimos


Yo soy de los que viven
a medio mar y cerca del crepúsculo,
más allá de esas piedras.

Cuando yo vine
y vi lo que pasaba
me decidi de pronto.

El día ya se había repartido,
ya era todo de luz
y el mar peleaba
como um león de sal,
com muchas manos.

La soledad abierta allí cantaba,
y yo, perdido y puro,
mirando hacia el silencio
abrí la boca, dije:
"Oh madre de la espuma,
soledad espaciosa,
fundaré aquí mi proprio regocijo,
mi singular lamento".

Desde entonces jamás
me defraudó una ola,
siempre encontré sabor central de cielo
en el agua, en la tierra,
y la leña y el mar ardieron juntos
durante los solitarios inviernos.

Gracias doy a la tierra
por haberme
esperado
a la hora en que el cielo y el océano
se unen como dos labios,
porque no es poco, no es asi? haber vivido
en una soledad y haber llegado a otra,
sentirse multitud y revivirse solo.

Amo todas las cosas,
y entre todos los fuegos
sólo el amor no gasta,
por eso voy de vida en vida,
de guitarra en guitarra,
y no le tengo miedo
a la luz ni a la sombra,
y porque casi soy de tierra pura
tengo cucharas para el infinito.

Así, pues, nadie puede equivocarse
no hallar mi casa sin puertas ni número,
allí entre las piedras oscuras
frente al destello
de la sal violenta,
allí vivimos my mujer y yo,
allí nos quedaremos.
Auxilio, auxilio! Ayuden!
Ayúdennos a ser más tierra cada día!
Ayúdennos a ser
más espuma sagrada, más aire de la ola!

Pablo Neruda
(1904-1973)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Falar da paixão mais do que o sangue, mais do que o fogo trazido ao coração, mais do que a rosa acesa só por dentro. De amor, por Maria Teresa Horta.


De amor


Falar da paixão
mais do que o sangue

Mais do que o fogo
trazido ao coração

Mais do que a rosa acesa
só por dentro
revolvendo no peito
a ponta de um arpão

Falar de febre sem fé
do animal feroz

Dos líquens abertos
e dos lírios

Falar desassosego sem razão
uma raiva que silva
no delírio

quanto dói a dor
no peito
Quanto é contraditória
esta prisão
que me faz ficar livre no que sinto
e logo envenenada à tua mão

Maria Teresa Horta

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

sexta-feira, agosto 14, 2009

Ferreira Gullar confessa ser um bicho urbano. Se disser que prefere morar em Piracemas ou em qualquer pequena cidade do país, estará mentindo.


Bicho urbano


Se disser que prefiro morar em Pirapemas
ou em outra qualquer pequena cidade
do país
estou mentindo
ainda que lá se possa de manhã
lavar o rosto no orvalho
e o pão preserve aquele branco
sabor de alvorada

Não não quero viver em Pirapemas.
Já me perdi
Como tantos outros brasileiros
me perdi, necessito
deste rebuliço de gente pelas ruas
e meu coração queima gasolina (da
comum)
como qualquer outro motor urbano

A natureza me assusta.
Com seus matos sombrios suas águas
suas aves que são como aparições
me assusta quase tanto quanto
este abismo
de gases e de estrelas
aberto sob minha cabeça.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Há muito que são velhas, vestidas de preto até a alma. Nos versos de Eugénio de Andrade, a língua delas é pedra também.


Mulheres de preto


Há muito que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quinta-feira, agosto 13, 2009

Fernando Pessoa & Antonio Carlos Jobim, em "Autopsicografia". Que tal a parceria?


Link para fazer o download do poema em mp3 do canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/8174266-b48


Autopsicografia


O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Em seu elogio ao aprendizado, Bertolt Brecht diz para aqueles cuja hora chegou: Aprenda o mais simples! Nunca é tarde demais!


Elogio do aprendizado


Aprenda o mais simples! Para aqueles
Cuja hora chegou
Nunca é tarde demais!
Aprenda o ABC; não basta, mas
Aprenda! Não desanime!
Comece! É preciso saber tudo!
Você tem que assumir o comando!

Aprenda, homem no asilo!
Aprensa, homem na prisão!
Aprenda, mulher na cozinha!
Aprenda, ancião!
Você tem que assumir o comando!
Frequente a escola, você que não tem casa!
Adquira conhecimento, você que sente frio!
Você que tem fome, agarre o livro: é uma arma.
Você tem que assumir o comando.

Não se envergonhe de perguntar, camarada!
Não se deixe convencer
Veja com seus olhos!
O que não sabe por conta própria
Não sabe.
Verifique a conta
É você que vai pagar.
Ponha o dedo sobre cada item
Pergunte: o que é isso?
Você tem que assumir o comando.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

quarta-feira, agosto 12, 2009

O rapaz diz que ainda não se acostumou com Antonia, com o seu corpo, com a sua cara. Assim são os namorados neste belo poema de Manuel Bandeira.


Namorados

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
- Antonia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.

A moça olhou de lado e esperou:

- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?

A moça se lembrava:
- A gente fica olhando...

A meninice brincou de novo nos olhos dela.

O rapaz prosseguiu com muita doçura:

- Antonia, você parece uma lagarta listada.

A moça arregalou os olhos, fez exclamações.

O rapaz concluiu:

- Antonia, você é engraçada! Você parece louca.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Toda a tristeza de Guilherme de Almeida balança e dança na noite. E no papel em que escreve, em vez do seu amor, ficam apenas uns versos sem nervos.


Big city blues


Noite. Tédio. Vitrola.
Do disco negro uma espiral se desenrola
e estica-se no céu. E nessa corda tesa
toda a minha tristeza
balança
e dança...
E, nem sei bem por que,
eu começo a escrever para você:

- "Como eu penso em você nessa noite de insônia!
"Lá em baixo, alva de lua, a cidade ressona:
"a cidade que foi minha cidade...
"Foi. Não é mais. Agora é uma pobre saudade,
"uma saudade longa de mim mesmo,
"de você, de nós dois, de tudo o que vivemos
"por essas ruas tristes, paralelas,
"que não se encontram mais...(Não serão elas
"como nós dois, agora?...).
"Como eu me lembro, amor! Desde aquela hora
"em que os seus olhos pálidos roçaram
"pelos meus; e os meus olhos se fecharam
"um pouco, como para
"reter aquela mocidade clara
"que passava por eles, como passa,
"cheia de graça,
"a mocidade ao longo de uma vida..."

Mas minha mão parou. Da pena adormecida
ficaram, no papel inerte em que eu escrevo,
em vez do meu amor, estes versos sem nervos...
Meus "diabinhos azuis",
meus pobres big city blues...

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

terça-feira, agosto 11, 2009

Barzinho perdido na noite fria, caninha pura, da mais pura água. E Mario Quintana diz ao poeta irmão que a poesia pura não existe não.


Canção de bar


Barzinho perdido
Na noite fria,
Estrela e guia
Na escuridão.
Que bem se fica!
Que bem! que bem!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha mão...
E Rosa, a da vida...
E Verlaine que está
Coberto de limo.
E Rimbaud a seu lado,
O pobre menino...
E o Pedro Cachaça
Com quem me assustavam
(o tempo que faz!)
O Pedro tão nobre
Na sua desgraça...
E Villon sem um cobre
Que não pode entrar.
E o Anto que viaja
Pelo alto mar...
Se o Anto morrer,
Senhor Capitão,
Se o Anto morrer,
Não no deite ao mar!
E aqui tão bom...
E aqui tão bom!
Tal como dentro
De uma apertada
Quentinha concha...
E Rosa, a da vida,
Sentada ao balcão.
Barzinho perdido
Na noite fria,
Estrela e guia
Na turbação.
E caninha pura,
Da mais pura água,
Que poesia pura,
Ai seu poeta irmão,
A poesia pura
Não existe não!

Mario Quintana
(1906-1984)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Ana Cristina Cesar tarde aprendeu que bom mesmo é dar a alma como lavada. Para ela, não há razão para conservar um fiapo de noite velha.


O homem público nº 1


Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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segunda-feira, agosto 10, 2009

Para marcar a publicação do poema de número 2000 no blog, nada melhor do que o apelo de Carlos Drummond de Andrade em favor da paz. A paz da paz.


Apelo a meus dessemelhantes em favor da paz


Ah, não me tragam originais
para ler, para corrigir, para louvar
sobretudo, para louvar.
Não sou leitor do mundo nem espelho
de figuras que amam refletir-se
no outro à falta de retrato interior.
Sou o velho Cansado
que adora o seu cansaço e não o quer
submisso ao vão comércio da palavra.
Poupem-me, por favor ou por desprezo,
se não querem poupar-me por amor.
Não leio mais, não posso, que este tempo
a mim distribuído
cai do ramo e azuleja o chão varrido,
chão tão limpo de ambição
que minha só leitura é ler o chão.
Nem sequer li os textos das pirâmides
os textos dos sarcófagos,
estou atrasadíssimo nos gregos,
não conheço os Anais de Assurbanipal,
como é que vou -
mancebos,
senhoritas
- chegar à poesia de vanguarda
e às glórias de 2.000, que telefonam?
Passam gênios talvez entre as acácias,
sinto estátuas futuras se moldando
sem precisar de mim
que quando jovem (fui-o a.C., believe or not)
nunca pulei muro de jardim
para exigir do morador tranquilo
a canonização do meu estilo.
Sirvam-se de exonerar este macróbio
do penoso exercício literário.
Não exijam prefácios e posfácios
ao ancião que mais fala quando cala.
Brotos de coxa flava e verso manco,
poetas de barba-colar e velutínea
calça puída, verde: tá!
Outoniços, crepusculinos, matronas, contumazes:
tá!
O senhor saíu. Hora que volta? Nunca.
Nunca de corvo, nunca de São-Nunca.
Saiu pra não voltar.
Tudo esqueceu: responder
cartas; sorrir
cumplicimente; agradecer
dedicatórias; retribuir
boas-festas; ir ao coquetel e à noite
de autógrafos-com-pastorinhas.
Ficou assim: o cacto de Manuel
é uma suavidade perto dele.
Respeitem a fera. Triste, sem presas, é fera.
Na jaula do mundo passeia a pata aplastante.
cuidado com ela!
Vocês, garotos de colégio, não perguntem ao poeta
quando nasceu.
Ele não nasceu.
Não vai nascer mais.
Desistiu de nascer quando viu que o esperavam gsrotos de colégio de lápis em punho
com professores na retaguarda comandando: Cacem o urso-polar,
tragam-no vivo para fazer uma conferência.
Repórteres de vespertinos, não tentem entrevistá-lo.
Não lhe, não me peçam opinião
que é impublicável qualquer que seja o fato do dia
e contraditória e louca antes de formulada.
Fotógrafos: não adianta
pedir pose junto ao oratório de Cocais
nem folheando o álbum de Portinari
nem tomando banho de chuveiro.
Sou contra Niepce, Daguerre, contra principalmente minha imagem.
Não quero oferecer minha cara como verônica nas revistas.
Quero a paz das estepes
a paz dos descampados
a paz do Pico de Itabira quando havia Pico de Itabira
a paz de cima da Agulhas Negras
a paz de muito abaixo da mina mais funda e esboroada de Morro Velho
a paz
da
paz.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Sombra Boa não tinha e-mail, mas escreveu um bilhete para Maria e mandou Ramela entregar. E Manoel de Barros contou em versos como o amor se fez.


Sonata ao luar


Sombra Boa não tinha e-mail.
Escreveu um bilhete:
Maria me espera debaixo do ingazeiro
quando a lua tiver arta.
Amarrou o bilhete no pescoço do cachorro
e atiçou:
Vai Ramela, passa!
Ramela alcançou a cozinha num átimo.
Maria leu e sorriu.
Quando a lua ficou arta Maria estava.
E o amor se fez
Sob um luar sem defeito de abril.

Manoel de Barros

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domingo, agosto 09, 2009

Fernando Pessoa sonha, não sabe quem é naquele momento, dorme sentindo-se. Sua alma não tem alma, ele não tem ser nem lei, é coração de ninguém.


Sonho

Sonho. Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.

Se existo é um erro eu o saber. Se acordo
Parece que erro. Sinto que não sei.
Nada quero nem tenho nem recordo.
Não tenho ser nem lei.

Lapso da consciência entre ilusões,
Fantasmas me limitam e me contêm.
Dorme insciente de alheios corações,
Coração de ninguém.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Abro os olhos, não vi nada; fecho os olhos, já vi tudo. O meu mundo é muito grande e tudo que penso acontece, diz Adalgisa Nery em seu poema natural.


Poema natural


Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar.
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

sábado, agosto 08, 2009

Lembrem de mim, pede Paulo Leminski. Por tudo como ele era, entre a pressa e a preguiça.


Lembrem de mim

lembrem de mim
como de um
que ouvia a chuva
como quem assiste missa
como quem hesita, mestiça,
entre a pressa e a preguiça

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Teu corpo seja brasa. E o meu a casa que se consome no fogo, diz Alice Ruiz em seus versos de muito amor e paixão.


Teu corpo seja brasa


teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo

um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo

Alice Ruiz

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz

quinta-feira, agosto 06, 2009

Para Ricardo Reis, acima da verdade estão os deuses, que são tão reais como reais as flores. E no seu calmo Olimpo são outra Natureza.


Acima da Verdade

Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.
Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,
Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Oswald de Andrade aprendeu o que é a poesia com seu filho de dez anos. E você?


3 de Maio

Aprendi com meu filho de dez anos
Que a poesia é a descoberta
Das coisas que eu nunca vi.

Oswald de Andrade
(1890-1954)

Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade

quarta-feira, agosto 05, 2009

Florbela Espanca também viu as suas ilusões levar em urnas de oiro. No mar da Vida, assim... uma por uma...


As minhas ilusões

Hora sagrada dum entardecer
De Outono, à beira mar, cor de safira,
Soa no ar uma invisível lira...
O sol é um doente a enlanguescer...
A vaga estende os braços a suster,
Numa dor de revolta cheia de ira,
A doirada cabeça que delira
Num último suspiro, a estremecer!
O sol morreu... e veste luto o mar...
E eu vejo a urna de oiro, a balouçar,
À flor das ondas, num lençol de espuma.
As minhas ilusões, doce tesoiro,
Também as vi levar em urnas de oiro,
No mar da Vida, assim... uma por uma...


Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

A primeira vez que Affonso Romano entendeu do mundo alguma coisa foi quando na infância cortou o rabo de uma lagartixa. E ele continuou se mexendo.


A primeira vez que entendi

A primeira vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na infância
cortei o rabo de uma lagartixa
e ele continuou se mexendo.

De lá pra cá
fui percebendo que as coisas permanecem
vivas e tortas
que o amor não acaba assim
que é difícil extirpar o mal pela raiz.

A segunda vez que entendi do mundo
alguma coisa
foi quando na adolescência me arrancaram
do lado esquerdo três certezas
e eu tive que seguir em frente.

De lá pra cá
aprendi a achar no escuro o rumo
e sou capaz de decifrar mensagens
seja nas nuvens
ou no grafite de qualquer muro.

Affonso Romano de Sant'Anna

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna

terça-feira, agosto 04, 2009

Em que espelho ficou perdida a minha face? No questionamento de Cecília Meireles, a triste sensação que a muitos perturba diariamente.


Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mão sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Soprava o mar. E Carlos Nejar mudou, mudou de não mudar.


Se perguntas

I

Se perguntas onde fui,
devo dizer: o mar.
Estive sempre ali,
mesmo estando a mudar.

Foi ali que escrevi
tua pele, teu suor.
Ao tempo, seus faróis.
Não mudei de mudar.

II

O que mudou em mim,
senão andar mudando
sem nunca mais mudar?

Quem mudará em mim,
se não sei mudar?

III

Ou me mudei. Sou outro.
Outra ventura, outra
virtude, cadência,
remota criatura.

Então que se apresente.
Seja tenaz, plausível
esse rosto invisível
e áspero.

Mudei. Soprava o mar.
Mudei de não mudar.

Carlos Nejar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

segunda-feira, agosto 03, 2009

Para Alberto Caeiro, a criança que pensa e acredita nas fadas age como um deus doente, mas como um deus. Sabe que existir existe e não se explica.


A criança

A criança que pensa em fadas e acredita nas fadas
Age como um deus doente, mas como um deus.
Porque embora afirme que existe o que não existe
Sabe como é que as cousas existem, que é existindo,
Sabe que existir existe e não se explica,
Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,
Sabe que ser é estar em um ponto
Só não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Para Helena Kolody, sonhar é ter um grande ideal.Tão grande que não cabe inteiro nesta vida e tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Sonhar


Sonhar é transportar-se em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter um grande ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Helena Kolody
(1912-2004)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody