terça-feira, dezembro 31, 2013

Para ganhar um ano novo que mereça este nome, Drummond diz que você tem de fazê-lo novo. Porque é dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.


Receita de Ano Novo 

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

segunda-feira, dezembro 30, 2013

Da mais alta janela da sua casa, Alberto Caeiro diz adeus aos seus versos que partem para a Humanidade. Ele não está alegre nem triste, esse é o destino dos versos.


Da mais alta janela


Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.

Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água não era ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, dezembro 29, 2013

Não bebo álcool, não tomo ópio, nem éter, sou o embriagado de ti e por ti. E mil dedos apontam Murilo Mendes na rua, o homem fanático por uma mulher.


Poema do fanático

Não bebo álcool, não tomo ópio nem éter,
Sou o embriagado de ti e por ti.
Mil dedos me apontam na rua:
Eis o homem que é fanático por uma mulher.

Tua ternura e tua crueldade são iguais diante de mim
Porque eu amo tudo o que vem de ti.
Amo-te na tua miséria e na tua glória
E te amaria mais ainda se sofresses muito mais.

Caíste em fogo na minha vida de rebelado.
Sou insensível ao tempo - porque tu existes.
Eu sou fanático da tua pessoa,
Da tua graça, do teu espírito, do aparelhamento da tua vida.
Eu quisera formar uma unidade contigo
E me extinguir violentamente contigo na febre da minha, da tua, da nossa poesia.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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quinta-feira, dezembro 26, 2013

Em um dos seus mais lindos poemas, Drummond diz tudo sobre o amor perdido. Porque as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão.


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http://www.youtube.com/watch?v=g7LKLdra9rw&app=desktop

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http://www.divshare.com/download/24241941-256

Memória

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade eme
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

terça-feira, dezembro 24, 2013

Poema de Natal, de Vinícius de Moraes, por ele mesmo. Para lembrar e ser lembrados.


Link para download deste vídeo do Youtube:
http://youtu.be/ppNV6DzS1PE

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em

domingo, dezembro 22, 2013

Um dia, Manuel Bandeira pensou um poema para Maísa, a da televisão, a que canta. A outra Maísa ele não conhecia não, mas mandou um beijo para ela.


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http://www.divshare.com/download/24327135-29a

Maísa

Um dia pensei um poema para Maísa
Maísa não é isso
Maísa não é aquilo
Como é então que Maísa me comove me sacode me buleversa me hipnotiza?

Muito simplesmente
Maísa não é isso mas Maísa tem aquilo
Maísa não é aquilo mas Maísa tem isto
Os olhos de Maísa são dois não sei quê dois não sei como diga dois Oceanos Não-Pacíficos

A boca de Maísa é isso e aquilo
Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?
Os olhos e a boca de Maísa se entendem os olhos dizem uma coisa e a boca de Maísa se condói se contrai se contorce como a ostra viva em que pingou uma gota de limão
A boca de Maísa escanteia e os olhos de Maísa ficam sérios meu Deus como os olhos de Maísa podem ser sérios e como a boca de Maísa pode ser amarga!
Boca da noite (mas de repente alvorece num sorriso infantil inefável)

Cacei imagens delirantes
Maísa podia não gostar
Cassei o poema.

Maísa reapareceu depois de longa ausência
Maísa emagreceu
Está melhor assim?

Nem melhor nem pior
Maísa não é um corpo
Maísa são dois olhos e uma boca

Essa é a Maísa da televisão
A Maísa que canta
A outra não conheço não
Não conheço de todo
Mas mando um beijo para ela

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

quarta-feira, dezembro 18, 2013

Se a Laura dos seus loucos desvarios fosse menos soberba e fria, Cesário Verde diz que nunca mais se sentaria à mesa do Martinho. O amor em 1874...


Arrojos

Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.

Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos "mignones" e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.

Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.

Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.

Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os céus abalaria.

Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.

Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.

E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.

Cesário Verde
(1855-1886)

Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

terça-feira, dezembro 17, 2013

Manuel Bandeira quer o moreno de Estela, a brancura de Elisa, a saliva de Bela, as sardas de Adalgisa. Ele quer tanta coisa e não tem nada que quer.


Belo Belo

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moren0 de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, dezembro 15, 2013

Alberto Caeiro & Tom Jobim, em "O Tejo não é o rio de minha aldeia", canta Tom Jobim.


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http://www.divshare.com/download/7486597-7b8

O Tejo 


O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.

O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.

O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior que o rio da minha aldeia.

Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.

O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
e mais sobre Antonio Carlos Jobim em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Carlos_Jobim

quinta-feira, dezembro 12, 2013

Na paixão declarada pela musa dos olhos verdes, um Machado de Assis que quase todo mundo desconhece. O poeta.



Musa dos olhos verdes

Musa dos olhos verdes, musa alada,
Ó divina esperança,
Consolo do ancião no extremo alento,
E sonho da criança;

Tu que junto do berço o infante cinges
C'os fúlgidos cabelos;
Tu que transformas em dourados sonhos
Sombrios pesadelos;

Tu que fazes pulsar o seio às virgens;
Tu que às mães carinhosas
Enches o brando, tépido regaço
Com delicadas rosas;
Casta filha do céu, virgem formosa

Do eterno devaneio,
Sê minha amante,
os beijos meus recebe,
Acolhe-me em teu seio!

Já cansada de encher lânguidas flores
Com as lágrimas frias,
A noite vê surgir do oriente a aurora
Dourando as serranias.

Asas batendo à luz que as trevas rompe,
Piam noturnas aves,
E a floresta interrompe alegremente
Os seus silêncios graves.

Dentro de mim, a noite escura e fria
Melancólica chora;
Rompe estas sombras que o meu ser povoam;
Musa, sê tu a aurora!
 
Machado de Assis
(1839-1908)
 
Mais sobre Machado de Assis em

terça-feira, dezembro 10, 2013

A Hilda Hilst, o desejo não faz medo. Assim como lhe veio, também não a avassala.



Do desejo


I

Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado,
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.

II

Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara.
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grande espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.

III

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada a tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

IV

Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Inpudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

V

Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

domingo, dezembro 08, 2013

Hoje, Álvaro de Campos quer preparar-se para pensar amanhã no dia seguinte. Porque depois de amanhã ele será finalmente o que hoje não pode nunca ser.


Adiamento

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não…
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico…
Esta espécie de alma…
Só depois de amanhã…
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte…
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos…
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã…
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã…
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância…
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital…
Mas por um edital de amanhã…
Hoje quero dormir, redigirei amanhã…
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo…
Antes, não…
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã…
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã…
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
http://en.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quinta-feira, dezembro 05, 2013

Ao seu amor, Paulo Mendes Campos diz que três coisas não consegue entender. O tempo, a morte, teu olhar.



Três coisas

Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido

Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar

O tempo levanta o muro.

A morte será o escuro?

Em teu olhar me procuro.


 
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

domingo, dezembro 01, 2013

Para Guimarães Rosa, há uma hora certa, no meio da noite, em que todas as águas dormem. Só a água dos olhos nunca têm sono.



Todas as águas dormem
 
Há uma hora certa,
no meio de noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas de folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...

Mas nem todos dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa

sexta-feira, novembro 29, 2013

Os índios procuraram e não encontraram, os revolucionários do meu tempo também. Como Sophia de Mello Breyner, também pergunto: será ainda possível?


O país sem mal

Um etnólogo diz ter encontrado
Entre selvas e rios depois de longa busca
Una tribo de índios errantes
Exaustos exauridos semimortos
Pois tinham partido desde há longos anos
Percorrendo florestas desertos e carpinas
Subindo e descendo montanhas e colinas
Atravessando rios
Em busca do país sem mal -
Como os revolucionários do meu tempo
Nada tinham encontrado

Sophia de Mello Breyner
(1919=2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner

terça-feira, novembro 26, 2013

Todos a buscam, mas só alguns a acham, diz Ferreira Gullar em seus versos. Porque a Vida bate.


A vida bate 


Não se trata do poema e sim do homem
e sua vida
- a mentida, a ferida, a consentida
vida já ganha e já perdida e ganha
outra vez.
Não se trata do poema e sim da fome
de vida,
o sôfrego pulsar entre constelações
e embrulhos, entre engulhos.
Alguns viajam, vão
a Nova York, a Santiago
do Chile. Outros ficam
mesmo na Rua da Alfândega, detrás
de balcões e de guichês.
Todos te buscam, facho
de vida, escuro e claro,
que é mais que a água na grama
que o banho no mar, que o beijo
na boca, mais
que a paixão na cama.
Todos te buscam e só alguns te acham. Alguns
te acham e te perdem.
Outros te acham e não te reconhecem
e há os que se perdem por te achar,
ó desatino
ó verdade, ó fome
de vida!
O amor é difícil
mas pode luzir em qualquer ponto da cidade.
E estamos na cidade
sob as nuvens e entre as águas azuis.
A cidade. Vista do alto
ela é fabril e imaginária, se entrega inteira
como se estivesse pronta.
Vista do alto,
com seus bairros e ruas e avenidas, a cidade
é o refúgio do homem, pertence a todos e a ninguém.
Mas vista
de perto,
revela o seu túrbido presente, sua
carnadura de pânico: as
pessoas que vão e vêm
que entram e saem, que passam
sem rir, sem falar, entre apitos e gases. Ah, o escuro
sangue urbano
movido a juros.
São pessoas que passam sem falar
e estão cheias de vozes
e ruínas . És Antônio?
És Francisco? És Mariana?
Onde escondeste o verde
clarão dos dias? Onde
escondeste a vida
que em teu olhar se apaga mal se acende?
E passamos
carregados de flores sufocadas.
Mas, dentro, no coração,
eu sei,
a vida bate. Subterraneamente,
a vida bate.
Em Caracas, no Harlem, em Nova Delhi,
sob as penas da lei,
em teu pulso,
a vida bate.
E é essa clandestina esperança
misturada ao sal do mar
que me sustenta
esta tarde
debruçado à janela de meu quarto em Ipanema
na América Latina.

Ferreira Gullar
(1930)
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

domingo, novembro 24, 2013

Luís Vaz de Camões discorda de quem diz que amor é falso ou enganoso. Para ele, amor é brando, doce e piedoso.


Quem diz que Amor é falso ou enganoso 

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, 
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, 
Sem falta lhe terá bem merecido 
Que lhe seja cruel ou rigoroso. 

Amor é brando, é doce, e é piedoso. 
Quem o contrário diz não seja crido; 
Seja por cego e apaixonado tido, 
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem; 
Em mim mostrando todo o seu rigor, 
Ao mundo quis mostrar quanto podia. 

Mas todas suas iras são de Amor; 
Todos os seus males são um bem, 
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

Mais sobre Luís Vaz de Camões em

quinta-feira, novembro 21, 2013

Rola mundo, rola mundo. Drummond já viu muitas coisas em sua vida e chegou à conclusão que é melhor deixar o mundo existir!


Rola mundo

Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
Pávido escutava,
não compreendia.
Talvez avisassem:
mocidade é morta.
Mas a chuva, mas o choro,
mas a cascata caindo,
tudo me atormentava
sob a escureza do dia,
e vendo,
eu pobre de mim não via.

Vi moças dançando
num baile de ar.
Vi os corpos brandos
tornarem-se violentos
e o vento os tangia.
Eu corria ao vento,
era só umidade,
era só passagem
e gosto de sal.
A brisa na boca
me entristecia
como poucos idílios
jamais o lograram;
e passando,
por dentro me desfazia.

Vi o sapo saltando
uma altura de morro;
consigo levava
o que mais me valia.
Era algo hediondo
e meigo: veludo,
na mole algidez
parecia roubar
para devolver-me
já tarde e corrupta,
de tão babujada,
uma velha medalha
em que dorme teu eco.

Vi outros enigmas
à feição de flores
abertas no vácuo.
Vi saias errantes
demandando corpos
que em gás se perdiam,
e assim desprovidas
mais esvoaçavam,
tornando-se roxo,
azul de longa espera,
negro de mar negro.
Ainda se dispersam.
Em calma, longo tempo,
nenhum tempo, não me lembra.

Vi o coração de moça
esquecido numa jaula.
Excremento de leão,
apenas. E o circo distante.
Vi os tempos defendidos.
Eram de ontem e de sempre,
e em cada país havia
um muro de pedra e espanto,
e nesse muro pousada
uma pomba cega.

Como pois interpretar
o que os heróis não contam?
Como vencer o oceano
se é livre a navegação
mas proibido fazer barcos?
Fazer muros, fazer versos,
cunhar moedas de chuva,
inspecionar os faróis
para evitar que se acendam,
e devolver os cadáveres
ao mar, se acaso protestam,
eu vi: já não quero ver.

E vi minha vida toda
contrair-se num inseto.
Seu complicado instrumento
de vôo e de hibernação,
sua cólera zumbidora,
seu frágil bater de élitros,
seu brilho de pôr de tarde
e suas imundas patas...
Joguei tudo no bueiro.
Fragmentos de borracha
e
cheiro de rolha queimada:
eis quanto me liga ao mundo.
Outras riquezas ocultas,
adeus, se despedaçaram.

Depois de tantas visões
já não vale concluir
se o melhor é deitar fora
a um tempo os olhos e os óculos.
E se a vontade de ver
também cabe ser extinta,
se as visões, interceptadas,
e tudo mais abolido.
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

segunda-feira, novembro 18, 2013

Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo, suplicava ela num frenesi. E Olavo Bilac, ainda que pedindo perdão aos moralistas, docemente obedecia...


Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!
Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.
Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.
No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci....

Olavo Bilac
(1865-1918)

Mais sobre Olavo Bilac em

domingo, novembro 17, 2013

Para Manuel Bandeira, a alma é que estraga o amor. Se queres sentir a felicidade de amar, esquece-a e deixa teu corpo entender-se com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não.


Arte de amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus, ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.

Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

sábado, novembro 16, 2013

A família do burrinho, segundo Oswald de Andrade.


A família do burrinho 

- Vamos Joseph fugir
- Para onde Maria ir
Joseph (jocoso) – shall go to Jundi-aí ai!
- Depressa! Sela o Mangarito
Vamos com o vento Sul
Onde serei cesariada?
- Não presepe
- Tenho medo da vaca
- Não chores darling (terno) Sweepstake de Deus!
Maria – Caí na ilegalidade
Porque modéstia à parte
Trago uma trindade no ventre
Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione 
Algumas palavras de inglês conhecendo
A família sagrada partiu
Sem saudades levar
Para as bandas do mar
Vermelho
Na poeira da madrugada
Cruzou um olival
O escaravelho
- Quantas dracmas serão precisas?
Exclamou o castiço esposo
Para esta viagem em torno da lei do mundo
Estamos no século III ou IV da fundação
De Roma
E só tenho “argent de poche”
- Não vá faltar Joseph
- Na verdade Deus ajuda…
(os ricos)
- Sonhei que os serafins
Estão bordando uma estrela surda
Para Herodes não ver
Quero reis magos
Trenzinho e monjolo
E o retrato de Shirley Temple
Porque o menino vem
Este mundo salvar
O vento distribuía algodão pelos açudes
Joseph espancou o burrinho
E riu
- Belo mundo ele vem salvar!
(Já havia naquele tempo
Pouco leite para os bebês)
- Se faltar numerário
Eu carrego na centena do Mangarito
E dou um viva ao faraó Hitler…
(Antes que ele faça comigo
O Progrom que fez com Moisés)
- Oportunista! gritou uma nuvem
Joseph fingiu que não ouvia
- A vida é um buraco
Enquanto não vier Maria
A socialização
Dos meios de produção
- Besta! gritou um anjo
São José seguiu pensando
Que os anjos geralmente são reacionários

Oswald de Andrade
(1890-1954)

quarta-feira, novembro 13, 2013

Tão verdadeiro, tão atual em todos os tempos. Talvez por isso Hilda Hilst tenha sido levada à insanidade.


Poemas aos Homens do nosso tempo

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.

***********
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu

Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.

Hilda Hist
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

segunda-feira, novembro 11, 2013

Ódio por ele? Não, se o amei tanto, ódio seria em mim saudade infinda, mágoa de o ter perdido, amor ainda, diz Florbela Espanca com muito amor ainda.


Ódio?

Ódio por Ele? Não ... Se o amei tanto,
Se tanto bem Ihe quis no meu passado,
Se o encontrei depois de o ter sonhado,
Se à vida assim roubei todo o encanto,

Que importa se mentiu? E se hoje o pranto
Turva o meu triste olhar, marmorizado,
Olhar de monja, trágico, gelado
Com um soturno e enorme Campo Santo!

Nunca mais o amar já é bastante!
Quero senti-lo doutra, bem distante,
Como se fora meu, calma e serena!
Ódio seria em mim saudade infinda,
Mágoa de o ter perdido, amor ainda!
Ódio por Ele? Não... não vale a pena ...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

domingo, novembro 10, 2013

O poeta vai ao jóquei. E o que lhe agrada é ter, a seu lado, a que nos loucos páreos do amor o faz vencido e vencedor.


O poeta vai ao jóquei

O que me agrada, o que pleiteio,
não é das duplas o rateio,
nem placês nem pules miríficas,
mas tão-somente, nas magníficas
tardes de ouro outonal da Gávea,
ter a meu lado, calma e suave, a
que nos loucos páreos do amor
me faz vencido e vencedor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

quinta-feira, novembro 07, 2013

Um moço que sofria de paixão por causa duma índia que não queria ceder para ele, se levantou e desapareceu na água do rio. Para Mário de Andrade, neste rio tem uma iara...



Poema

Neste rio tem uma iara....
De primeiro o velho que tinha visto a iara
Contava que ela era feiosa, muito!
Preta gorda manquitola ver peixe-boi.
Felizmente velho já morreu faz tempo.
Duma feita, madrugada de neblina
Um moço que sofria de paixão
Por causa duma índia que não queria ceder pra ele,
Se levantou e desapareceu na água do rio.
Então principiaram falando que a iara cantava, era moça,
Cabelos de limo verde do rio...
Ontem o piá brincabrincando
Subiu na igara do pai abicada no porto,
Botou a mãozinha na água funda.

E vai, a piranha abocanhou a mãozinha do piá.

Neste rio tem uma iara...

Mário de Andrade
(1893-1945)

domingo, novembro 03, 2013

Você não está mais na idade de sofrer por essas coisas, disseram a Drummond. Inconformado, ele escreveu um poema, um poema sobre essas coisas.


Link para fazer o download do poema m mp3 no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/3038736-26d

Essas coisas

"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas".

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram lá de fora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade sofrer
é por que estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1988)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade



sexta-feira, novembro 01, 2013

João Cabral de Melo Neto diz que as amadas rebentam nas fontes do poema. Mas uma delas não sabe onde o encontrar.


As amadas

As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.

Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

quinta-feira, outubro 31, 2013

Vai-se a vida, resta a canção. Não foi uma canção perdida, ficaste no meu coração, diz Cecília Meireles ao seu amor.


Dedicatória

Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.

.................................................

Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: "Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!"

(Qual seria este tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

domingo, outubro 27, 2013

A uma mulher, Murilo Mendes dedicou um dos mais belos poemas de amor da língua portuguesa. Em versos plenos de amor e dor.


A uma mulher

Não tendo podido te criar
Nem tendo sido criado por ti
Eu me vingo do destino enxertando-me no teu ser.
Jamais conseguirás te libertar de mim
Porque eu te sitiei com a chama do amor,
Porque rondei durante dias e noites o Coração de Deus
A fim de extrair dele o segredo da ternura.
Todos os que te olham pensam logo em mim,
Todos os que me olham pensam logo em ti.
Eu sou tua cicatriz que nunca se há de fechar.
Eu te perseguirei até depois da minha morte
E virei a ti no murmúrio dos ventos, no lamento das ondas,
Na angústia e na alegria dos poetas meus sucessores,
Nas almas grandes limitadas pelo físico.
Sentado nas nuvens eternas eu te esperarei
E me nutrirei através dos tempos da nostalgia de ti.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

sexta-feira, outubro 25, 2013

O que eu quero, o que eu amo, o que desejo em ti, é o teu calor animal. De Mario Quintana, em seu bilhete com endereço.


Bilhete com endereço

Mas onde já se ouviu falar
Num amor à distancia,
Num tele-amor?!
Num amor de longe...
Eu sonho é um amor pertinho
Um amor juntinho...
E, depois,
Esse calor humano é uma coisa
Que todos - até os executivos - têm.
É algo que acaba se perdendo no ar,
No vento
No frio que agora faz...
Escuta!
O que eu quero,
O que eu amo,
O que desejo em ti,

É o teu calor animal!...

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

quinta-feira, outubro 24, 2013

Ana Cristina Cesar queria um beijo que tivesse um blue e que imitasse feliz a delicadeza que mergulha no reino do prazer. Mas era um blue feliz.


Um beijo

Que tivesse um blue
Isto é
Imitasse feliz
A delicadeza, a sua
Assim como um tropeço
Que mergulha surdamente
No reino expresso
Do prazer
Espio sem um ai
As evoluções do teu confronto
À minha sombra
Desde a escolha
Debruçada no menu;
Um peixe grelhado
Um namorado
Uma água sem gás
De decolagem:
Leitor ensurdecido
Talvez embebecido
"ao sucesso"
diria meu censor
"à escuta"
diria meu amor
sempre em blue
mas era um blue feliz.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

domingo, outubro 20, 2013

De tanto amor é que, um dia, em teu corpo hei de morrer de amar mais do que pude. Assim é o amor total, segundo Vinicius de Moraes.


Soneto do amor total

Amo-te tanto meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te enfim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 19, 2013

Para as mulheres que tanto amou, Vinicius de Moraes escreveu os seus mais belos poemas. Mas o seu poema de amor mais importante foi dedicado a todos nós, brasileiros.


Pátria minha

A minha pátria é como se não fosse, é íntima
Doçura e vontade de chorar; uma criança dormindo
É minha pátria. Por isso, no exílio
Assistindo dormir meu filho
Choro de saudades de minha pátria.

Se me perguntarem o que é a minha pátria, direi:
Não sei. De fato, não sei
Como, por que e quando a minha pátria
Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água
Que elaboram e liquefazem a minha mágoa
Em longas lágrimas amargas.

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!

Tenho-te no entanto em mim como um gemido
De flor; tenho-te como um amor morrido
A quem se jurou; tenho-te como uma fé
Sem dogma; tenho-te em tudo em que não me sinto a jeito
Nesta sala estrangeira com lareira
E sem pé-direito.
Ah, pátria minha, lembra-me uma noite no Maine, Nova Inglaterra
Quando tudo passou a ser infinito e nada terra
E eu vi alfa e beta de Centauro escalarem o monte até o céu
Muitos me surpreenderam parado no campo sem luz
À espera de ver surgir a Cruz do Sul
Que eu sabia, mas amanheceu...

Fonte de mel, bicho triste, pátria minha
Amada, idolatrada, salve, salve!
Que mais doce esperança acorrentada
O não poder dizer-te: aguarda...
Não tardo!

Quero rever-te, pátria minha, e para
Rever-te me esqueci de tudo
Fui cego, estropiado, surdo, mudo
Vi minha humilde morte cara a cara
Rasguei poemas, mulheres, horizontes
Fiquei simples, sem fontes.

Pátria minha... A minha pátria não é florão, nem ostenta
Lábaro não; a minha pátria é desolação
De caminhos, a minha pátria é terra sedenta
E praia branca; a minha pátria é o grande rio secular
Que bebe nuvem, come terra
E urina mar.

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Ponho no vento o ouvido e escuto a brisa
Que brinca em teus cabelos e te alisa
Pátria minha, e perfuma o teu chão...
Que vontade me vem de adormecer-me
Entre teus doces montes, pátria minha
Atento à fome em tuas entranhas
E ao batuque em teu coração.

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

Agora chamarei a amiga cotovia
E pedirei que peça ao rouxinol do dia
Que peça ao sabiá
Para levar-te presto este avigrama:
"Pátria minha, saudades de quem te ama…"

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

quinta-feira, outubro 17, 2013

Leminski pedia calma, calma ao coração. Afinal, dizia ele, logo mais a gente goza.


Sossegue coração

sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos afora calma calma

logo mais a gente goza
perto do osso

Paulo Leminsky
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

segunda-feira, outubro 14, 2013

Para Brecht, o cordão partido pode ser novamente atado. Mas, ali onde ele foi deixado, não será achado novamente.


O cordão partido

O cordão partido pode ser novamente atado
Ele segura novamente, mas
Está roto.

Talvez nos encontremos de novo, mas
Ali onde você me deixou
Não me achará novamente.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

domingo, outubro 13, 2013

Vinícius sente que a mulher que há de vir é a anunciada da sua poesia. E que ela será dele, só dele, como a força é do forte e a poesia é do poeta.


A que há de vir


Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.

Vinícius de Moraes 
(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 12, 2013

A vez primeira que te vi, era eu menino e tu menina. Com saudade, lembra Manuel Bandeira sua primeira paixão.


Três idades

A vez primeira que te vi,
Era eu menino e tu menina.
Sorrias tanto... Havia em ti
Graça de instinto, airosa e fina.
Eras pequena, eras franzina...

Ao ver-te a rir numa gavota,
Meu coração entristeceu.
Por quê? Relembro, nota a nota,
Essa ária como enterneceu
O meu olhar cheio do teu.

Quando te vi segunda vez,
Já eras moça, e com que encanto
A adolescência em ti se fez!
Flor e botão...sorrias tanto...
E o teu sorriso foi meu pranto...

Já eras moça...Eu, um menino...
Como contar-te o que passei?
Seguiste alegre o teu destino...
Em pobres versos te chorei.
Teu caro nome abençoei.

Vejo-te agora. Oito anos faz,
Oito anos faz que não te via...
Quanta mudança o tempo traz
Em sua atroz monotonia!
Que é do teu riso de alegria?

Foi bem cruel o teu desgosto.
Essa tristeza ê que mo diz...
Ele marcou sobre o teu rosto
A imperecível cicatriz:
És triste até quando sorris...

Porém teu vulto conservou
A mesma graça ingênua e fina...
A desventura te afeiçoou 
À tua imagem de menina.
E estás delgada, estás franzina...

Manuel Bandeira
(1886-1968)