quarta-feira, setembro 30, 2015

Murilo Mendes quer e precisa de uma mulher profunda e romântica. Para receber o diadema construído pela Poesia.



O diadema

Eu quero uma mulher
Para receber um diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vasta e lisa a cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes


segunda-feira, setembro 28, 2015

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, é preciso a saudade para eu te sentir. Mas nunca te pareces com o teu retrato e eu tenho que fechar os olhos para ver-te, lamenta Mario Quintana.


Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento...
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, trevo machucado,
folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surgir és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho que fechar os olhos para ver-te!

Mario Quintana
(1904-1996)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

domingo, setembro 27, 2015

Minha mulher, a solidão, consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é ao coração ter este bem que não existe, na ilusão de Fernando Pessoa.


Minha mulher


Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminhos.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda -,
E fala só - leque animado.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, setembro 26, 2015

De Hilda Hilst para um grande amor: Como se te perdesse, assim te quero. E como não te visse, te respiro inteiro.


Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hilst
(1930-2004)

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sexta-feira, setembro 25, 2015

Para Drummond, eterno é o amor que une e separa. Para ele, o esquecimento ainda é memória, eterno é o fim.


Permanência

Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
Dia virá em que nenhum será lembrado.
Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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quinta-feira, setembro 24, 2015

O amor, esse sufoco. Para Leminski, troço de louco.


O amor, esse sufoco

O amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro.

Ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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quarta-feira, setembro 23, 2015

Para quem foi feito o mundo? Para aquele que o goze, diz Paulo Mendes Campos em sua balada do homem de fora.


Balada do homem de fora

Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.

O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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terça-feira, setembro 22, 2015

Fernando Pessoa sofre com a angústia, a raiva vil, o desespero de não poder confessar. Confessar num tom de grito, num último grito austero, seu coração a sangrar.



Ah! A angústia

Ah! A angústia, a raiva vil, o desespero
De não poder confessar
Num tom de grito, num último grito austero
Meu coração a sangrar!

Falo, e as palavras que digo são um som
Sofro, e sou eu.
Ah! Arrancar à música o segredo do tom
Do grito seu!

Ah! Fúria de a dor nem ter sorte em gritar,
De o grito não ter
Alcance maior que o silêncio, que volta, do ar
Na noite sem ser!.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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segunda-feira, setembro 21, 2015

No beijo que nunca deu em seu amor, Florbela Espanca guardava os versos mais lindos que tinha feito. Tanto amor!



Os versos que te fiz 

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolência de veludos caros,
São como sedas pálidas a arder ...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda ...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!


Amo-te tanto ! E nunca te beijei ...
E nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!


Florbela Espanca
( 1894-1930)

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domingo, setembro 20, 2015

Álvaro de Campos não tirou o bilhete para a vida e errou a porta do sentimento. Para ele, mais vale não ser que ser assim, mais vale arrumar a mala.



Grandes são os desertos e tudo é deserto

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes -
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar

Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia-te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;
Hei de vê-la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.
Fim.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa 
(1888-1935)

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sexta-feira, setembro 18, 2015

Para Alberto Caeiro, se depois de ele morrer, quiserem escrever a sua biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas, a da sua nascença e a da sua morte.


Se depois de eu morrer

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,
Não há nada mais simples
Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.
Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto corri o pensamento seria achá-las todas iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso, fui o único poeta da Natureza.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quinta-feira, setembro 17, 2015

Entre ser, ter e amar, o testemunho da vida na poesia de Thiago de Mello. Ele sente que sofredor grandioso só mesmo o coração, pois nele cabe Deus.


O testemunho

I - Ser

Num campo de silêncio,
onde pastam manhãs,
estou - sempre que sou.

Quis-me o campo por senda:
em meu lúcido passo,
entanto, lá não vou.

Atendo a um chamamento
feroz, tímido e brando:
são vozes maduras.

Toda recusa é vã:
asas me erguem, e sou.
Ser é resposta. E dói.

É um campo de silêncio:
oh! palpitante berço
e pasto roçagante

de infinitas manhãs
que se cantam nascidas
para a noite do mundo.

De silêncio, e contudo
ali se escuta a dor
crescer, fingida em relva.

Essa relva me sabe.
O coração é a boca
que se crispa a seu travo.

Pasto dor e silêncio
no campo onde sou.

II - Ter

Dor sofrida é salário.

O amargo que mastigo
transmuda-se na moeda
com que me cumpro e compro

o segredo fecundo
adormecido há invernos
na boca das auroras.

Para erguê-las ao campo
de silêncio onde pastam
- e de onde me chamaram -,

antes entrego as mãos
às lâminas de brasa
que me buscam, ferozes:

matutinos orvalhos,
serenos de idas tardes,
sepultos semivivos.

Com essa dor se cunha
a moeda em cuja efígie
vê-se o perfil dos anjos.

Meu salário é meu júbilo:
ao regressar-me, esplendem
alvíssaras profundas

no momento em que entrego
ao mundo - envolta em cânticos -
humilde sempremanhã.

III - Amar

No campo de silêncio
onde, existindo, sou,
não me retardo. Tardo

a ser, e quando sou
- sou pouco. O muito é a dor.
As têmporas estalam.

O tempo que ficou
e, aquém de mim, me espera
reclama o existir turvo.

Então, perdido, torno,
a caminho transbordo,
transvio-me de mim:

quando chego, sou pouco.
Crestam-me a vida vã
saudades de ter sido.

A dor é eco longínquo
de grito soterrado.
O ser é estrela extinta,

lua de treva em céu
já desabado, pedra
lavada pela chuva.

Permaneço, contudo,
e comigo a amargura,
quando o amor é o caminho

que em mim se faz e faz-me
correr ao campo branco
onde alvoradas sonham,

onde me espera o pasto
onde a fome fareja
a dor antiga, eterna:

dor esplêndida e dura
- dor de ser e de amar.
Porque de amar, perdura.

E trago dessa viagem
uma treva mais doce
para a noite do mundo.

Às vezes é uma aurora
que me aclara também:
e vejo em amargor

a face que me coube,
a face dessa noite
noite tão noite e fria

que é minha e de meu mundo,
ai, mundo meu não mundo,
perdido, em pranto, e pouco.

O muito em mim, e grande,
e sofredor grandioso
- só mesmo o coração:
pois nele cabe Deus.

Thiago de Mello
(1926)

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quarta-feira, setembro 16, 2015

Escreve-me, ainda que seja uma só palavra, uma palavra apenas. Cinco letras pequenininhas, no pedido da Flor mais bela.


Escreve-me...

Escreve-me! Ainda que seja só
Uma palavra, uma palavra apenas,
Suave como o teu nome e casta
Como um perfume casto d'açucenas!
Escreve-me! Há tanto, há tanto tempo
Que te não vejo, amor!
Meu coração
Morreu já, e no mundo aos pobres mortos
Ninguém nega uma frase d'oração!
"Amo-te!
Cinco letras pequeninas,
Folhas leves e tenras de boninas,
Um poema d'amor e felicidade!
Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

Florbela Espanca 
(1894-1930)

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Onde a morte diz "Quero nascer"? Lá longe, para Murilo Mendes.



Lá longe

Lá longe
Onde a polícia lavra os campos
Lá longe
Onde ninguém cresce nem diminui,
Lá longe
Onde navios de guerra dormem dentro de garrafas.
Lá longe
Onde Oriente e Ocidente
Debruçados à janela dialogam.
Lá longe
Onde cada um
Tem seu pão, sua dama e sua paz,
Lá longe
Onde os descantos antigos movem o rio,
Lá longe
Onde forma, palavra e energia se unem,
Lá longe
Onde Deus caminha com pés de alfombra,
Lá longe
Onde "Quero nascer" a morte diz.

Murilo Mendes
(1901-1975)


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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

segunda-feira, setembro 14, 2015

As lágrimas que Florbela chora, ninguém as vê brotar dentro da alma. E ninguém as vê cair dentro dela.



Lágrimas ocultas 

Se me ponho a cismar em outras eras
em que ri e cantei, em que era q'rida,
Parece-me que foi noutras esferas,
Parece-me que foi numa outra vida...
E a minha triste boca dolorida
Que dantes tinha o rir das Primaveras,
Esbate as linhas graves e severas
E cai num abandono de esquecida!
E fico, pensativa, olhando o vago...
Toma a brandura plácida dum lago
O meu rosto de monja de marfim...
E as lágrimas que choro, branca e calma,
Ninguém as vê brotar dentro da alma!
Ninguém as vê cair dentro de mim!

Florbela Espanca
(1894-1930)
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domingo, setembro 13, 2015

Prazer, mas devagar, Lídia, gozemos escondidos, a sorte inveja, emudeçamos. Para viver a vida, é preciso bem entender este poema de Ricardo Reis.



Prazer, mais devagar

Prazer, mas devagar,
Lídia, que a sorte àqueles não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos retiremos do horto mundo
Os depredandos pomos.
Não despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo trava.
Como um regato, mudos passageiros,
Gozemos escondidos.
A sorte inveja, Lídia. Emudeçamos.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, setembro 12, 2015

Um lindo amor está matando Mário de Sá-Carneiro com tão grande ingratidão. E ele só pode se queixar, em versos.


Lindo amor, que me matais, com tão grande ingratidão

Por que razão desdenhais
Deste amor que vos of'reço?
Por que é que me desprezais,
Quando eu, por vós, enlouqueço?...
Lindo amor que me matais!...
Dou-vos, alma e coração,
Por vós, da vida desisto...
Desisto, sim, mas em vão:
Vós pagais-me tudo isto
Com tão grande ingratidão!...

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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sexta-feira, setembro 11, 2015

Quando a saia levantou, Alexander Search viu o tornozelo dela. E ficou sem palavras para bem descrever a vista.


Em um tornozelo

Tive uma revelação não do alto
Mas de baixo, quando a vossa saia por um momento levantou
Traíu tal promessa que não tenho
Palavras para bem descrever a vista.

E mesmo se o meu verso tal coisa pudesse tentar,
Difícil seria, se a minha tarefa fosse contemplada,
Para encontrar uma palavra que não fosse mudada
Pela mão fria da Moralidade.
Olhar é o bastante: o mero olhar jamais destruíu qualquer mente,
Mas oh, doce senhora, além do que foi visto
Que coisas podem ser adivinhadas ou sugerir desrespeito!
Sagrada não é a beleza de uma rainha.
Pelo vosso tornozelo isso cheguei a suspeitar
Do mesmo jeito que vós podeis suspeitar do que eu quis dizer.

Alexander Search, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)


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quinta-feira, setembro 10, 2015

Adélia Prado encontrou seu marido com uma loura oxidada. Depois da briga, ela diz com ironia que, desde então, faz milagres.


Briga no beco

Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

Adélia Prado
(1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quarta-feira, setembro 09, 2015

Quem ganhou aquela briga entre o quanto e o tanto faz? Leminski pergunta e responde.


Diga minha poesia

Diga minha poesia
E esqueça-me se for capaz
Siga e depois me diga
Quem ganhou aquela briga
Entre o quanto e o tanto faz

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

terça-feira, setembro 08, 2015

Ferreira Gullar diz que é o mais feliz dos infelizes. E vai assim pelas ruas da cidade, sorrindo de seus próprios pensamentos.


Soneto só pra mim

Vou assim pelas ruas: meus cabelos
libertos, esvoaçando a quatro ventos.
Não os posso prender e nem quero prendê-los
- que eles são braços de meus pensamentos!

Vou assim pelas ruas da cidade:
- gravata frouxa, alma vagando ao léu...
Tenho a cabeça erguida por vaidade:
esta vaidade de fitar o céu.

E vou sorrindo de meus próprios pensamentos!
(alma e cabelos esvoaçando aos ventos)
Eu sou o mais feliz dos infelizes.

É que, em toda a minha vida,
sempre fui como árvore florida,
que ri do sofrimento das raízes...

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

segunda-feira, setembro 07, 2015

Manuel Bandeira e o beco.


Que importa a paisagem, a Glória, s baía, a linha do horizonte?
- O que eu vejo é o beco.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/Manuel_Bandeira




domingo, setembro 06, 2015

De Vinicius de Moraes, para a mulher amada. A você, com amor.



A você, com amor

O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...

O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

sexta-feira, setembro 04, 2015

Mário de Andrade não queria de Rosa somente o abraço devagar e o beijo molhado. Ele queria possuir até o desgosto dela.



Rondó para você

De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente este beijo
Tão molhado que você me dá...
Eu não queria só porque
Por tudo que você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você

Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você.

Mário de Andrade
(1893-1945)

quinta-feira, setembro 03, 2015

Ferreira Gullar diz que estamos todos presos à vida como numa jaula. E que para nos libertar, é preciso quebrar todas as armadilhas do mundo.


No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?
Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las

Ferreira Gullar
(1930)

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

quarta-feira, setembro 02, 2015

Quando os olhos se me cerram de desejo e os meus braços se estendem para ti, é porque vieste ver-me à tardinha. Florbela Espanca cantava o amor como ninguém.


Se tu viesses ver-me hoje à tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti... 

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

terça-feira, setembro 01, 2015

Para Vinicius, é preciso esquecer tudo ao vir um novo amor e viver esse amor até morrer. E ir conjugar o verbo no infinito.


O verbo no infinito

Ser criado, gerar-se, transformar
O amor em carne e a carne em amor: nascer
Respirar, e chorar, e adormecer
E se nutrir para poder chorar.

Para poder nutrir-se; e despertar
Um dia à luz e ver, ao mundo e ouvir
E começar a amar e então sorrir
E então sorrir para chorar.
E crescer, e saber, e ser, e haver
E perder, e sofrer, e ter horror
De ser e amar, e se sentir maldito.
E esquecer tudo ao vir um novo amor
E viver esse amor até morrer
E ir conjugar o verbo no infinito...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)