domingo, outubro 29, 2006

Fernando Pessoa e Milton Nascimento em "Emissário de um Rei desconhecido", na belíssima interpretação de Eugênia Melo e Castro.



Emissário de um rei desconhecido


Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há ! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Em "Emissário de um Rei Desconhecido", Fernando Pessoa está dividido entre o dever ao rei e o amor pelo seu povo.


Emissário de um Rei Desconhecido


Emissário de um rei desconhecido,
Eu cumpro informes instruções de além,
E as bruscas frases que aos meus lábios vêm
Soam-me a um outro e anômalo sentido...
Inconscientemente me divido
Entre mim e a missão que o meu ser tem,
E a glória do meu Rei dá-me desdém
Por este humano povo entre quem lido...

Não sei se existe o Rei que me mandou.
Minha missão será eu a esquecer,
Meu orgulho o deserto em que em mim estou...

Mas há ! Eu sinto-me altas tradições
De antes de tempo e espaço e vida e ser...
Já viram Deus as minhas sensações...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

O poema é obsceno, afirma o poeta. Obsceno como o salário de um trabalhador aposentado.


Poema obsceno

Façam a festa
cantem e dancem
que eu faço o poema duro
o poema-murro
sujo
como a miséria brasileira
Não se detenham:
façam a festa
Bethânia Maninho
Clementina
Estação Primeira de Mangueira Salgueiro
gente de Vila Isabel e Madureira
todos
façam
a nossa festa
enquanto eu soco este pilão
este surdo
poema
que não toca no rádio
que o povo não cantará
(mas que nasce dele)
Não se prestará a análises estruturalistas
Não entrará nas antologias oficiais
Obsceno
como o salário de um trabalhador aposentado
o poema
terá o destino dos que habitam o lado escuro do país
- e espreitam.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

O poeta do simbolismo teve o corpo corroído pela tuberculose e a alma tomada pela loucura. E como o acrobata, acabou por mostrar toda a sua dor.


Acrobata da Dor


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço, que desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos, e convulsionado
salta, gavroche, salta clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas d'aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri! Coração, tristíssimo palhaço.

Cruz e Sousa
(1861-1898)

Mais sobre Cruz e Sousa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cruz_e_Sousa

Me dê coragem meu Deus, me dê a coragem de me enfrentar. E perdoe o meu pecado de pensar, implora a poeta.


Meu Deus, me dê a coragem


Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
meu pecado de pensar.

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Clarice Lispector em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector

Em seu lamento, o homem reconhece que merece a morte. Mas nos versos da poeta, ele não suporta a dor de ter o seu cavalo morto.


Lamento do Oficial Por Seu Cavalo Morto


Nós merecemos a morte,
porque somos humanos e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Cecília Meirelles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Até na poesia entre o cais e o hospital a garganta do homem está gemendo no ar. E são poucos os que se dão conta disso, como a poeta.


Poesia Entre o Cais e o Hospital


Geme no cais o navio cargueiro
No hospital ao lado, o homem enfermo.
O vento da noite recolhe gemidos
Une angústias do mundo ermo.
Maresia transborda do mar em cansaço,
Odor de remédios inunda o espaço.
Máquina e homem, ambos exaustos
Um, pela carga que pesa em seu bojo
Outro, na dor tomando o seu corpo.
Cais, hospital: Portos de espera
E começo de fim da longa viagem.
Chaminés de cargueiros gritando no mar,
Garganta do homem em gemidos no ar.
No fundo, o universo,
O mar infinito,
O céu infinito,
O espírito infinito.
Neblinados em tristezas e medos
Surgem silêncios entre os rochedos.
Chaminés de cargueiros gritando no mar
E a garganta do homem em gemidos no ar.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

Só os mortos sabem a resposta que os vivos não sabem. Nada mudou em essência.


Carta aos mortos

Amigos, nada mudou
em essência.

Os salários mal dão para os gastos,
as guerras não terminaram
e há vírus novos e terríveis,
embora o avanço da medicina.
Volta e meia um vizinho
tomba morto por questão de amor.
Há filmes interessantes, é verdade,
e como sempre, mulheres portentosas
nos seduzem com suas bocas e pernas,
mas em matéria de amor
não inventamos nenhuma posição nova.
Alguns cosmonautas ficam no espaço
seis meses ou mais, testando a engrenagem
e a solidão.
Em cada olimpíada há récordes previstos
e nos países, avanços e recuos sociais.
Mas nenhum pássaro mudou seu canto
com a modernidade.

Reencenamos as mesmas tragédias gregas,
relemos o Quixote, e a primavera
chega pontualmente cada ano.

Alguns hábitos, rios e florestas
se perderam.
Ninguém mais coloca cadeiras na calçada
ou toma a fresca da tarde,
mas temos máquinas velocíssimas
que nos dispensam de pensar.

Sobre o desaparecimento dos dinossauros
e a formação das galáxias
não avançamos nada.
Roupas vão e voltam com as modas.
Governos fortes caem, outros se levantam,
países se dividem
e as formigas e abelhas continuam
fiéis ao seu trabalho.

Nada mudou em essência.

Cantamos parabéns nas festas,
discutimos futebol na esquina
morremos em estúpidos desastres
e volta e meia
um de nós olha o céu quando estrelado
com o mesmo pasmo das cavernas.
E cada geração , insolente,
continua a achar
que vive no ápice da história.

Afonso Romano de Sant'ana

Mais informações sobre Afonso Romano de Sant'ana em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'ana

Um poema começado do fim pode levar até o Caminho do Céu, diz Adélia Prado. Será?


Poema Começado do Fim


Um corpo quer outro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.
Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adélia_Prado

sábado, outubro 28, 2006

Para Yeats, a Irlanda romântica estava morta. Mas depois de escrever este famoso poema em defesa dos trabalhadores, ele abraçou o fascismo.


September 1913



What need you, being come to sense,
But fumble in a greasy till
And add the halfpence to the pence
And prayer to shivering prayer, until
You have dried the marrow from the bone?
For men were born to pray and save:
Romantic Ireland's dead and gone,
It's with O'Leary in the grave.

Yet they were of a different kind,
The names that stilled your childish play,
They have gone about the world like wind,
But little time had they to pray
For whom the hangman's rope was spun,
And what, God help us, could they save?
Romantic Ireland's dead and gone,
It's with O'Leary in the grave.

Was it for this the wild geese spread
The grey wing upon every tide;
For this that all that blood was shed,
For this Edward Fitzgerald died,
And Robert Emmet and Wolfe Tone,
All that delirium of the brave?
Romantic Ireland's dead and gone,
It's with O'Leary in the grave.

Yet could we turn the years again,
And call those exiles as they were
In all their loneliness and pain,
You'd cry, 'Some woman's yellow hair
Has maddened every mother's son':
They weighed so lightly what they gave.
But let them be, they're dead and gone,
They're with O'Leary in the grave.

William Butler Yeats




Mais sobre William Butler Yeats em
http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Butler_Yeats







Se todos os povos tivessem aprendido alguma coisa com estes versos de Brecht, o mundo não estaria do jeito que está. Utopia ou Verdade?


Solidarity Song




Peoples of the world, together
Join to serve the common cause!
So it feeds us all for ever
See to it that it's now yours.

Forward, without forgetting
Where our strength can be seen now to be!
When starving or when eating
Forward, not forgetting
Our solidarity!

Black or white or brown or yellow
Leave your old disputes behind.
Once start talking with your fellow
Men, you'll soon be of one mind.

Forward, without forgetting
Where our strength can be seen now to be!
When starving or when eating
Forward, not forgetting
Our solidarity!

If we want to make this certain
We'll need you and your support.
It's yourselves you'll be deserting
if you rat your own sort.

Forward, without forgetting
Where our strength can be seen now to be!
When starving or when eating
Forward, not forgetting
Our solidarity!

All the gang of those who rule us
Hope our quarrels never stop
Helping them to split and fool us
So they can remain on top.

Forward, without forgetting
Where our strength can be seen now to be!
When starving or when eating
Forward, not forgetting
Our solidarity!

Workers of the world, uniting
Thats the way to lose your chains.
Mighty regiments now are fighting
That no tyrrany remains!

Forward, without forgetting
Till the concrete question is hurled
When starving or when eating:
Whose tomorrow is tomorrow?
And whose world is the world?

Bertolt Brecht

(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht













Ela é considerada uma das maiores poetas da língua inglesa, mas nunca teve um poema publicado em vida. Porque ela não podia esperar pela Morte.


Because I could not stop for Death


Because I could not stop for Death –
He kindly stopped for me –
The Carriage held but just Ourselves –
And Immortality.

We slowly drove – He knew no haste
And I had put away
My labor and my leisure too,
For His Civility –

We passed the School, where Children strove
At Recess – in the Ring –
We passed the Fields of Gazing Grain –
We passed the Setting Sun –

Or rather – He passed us –
The Dews drew quivering and chill –
For only Gossamer, my Gown –
My Tippet – only Tulle –

We paused before a House that seemed
A Swelling of the Ground –
The Roof was scarcely visible –
The Cornice – in the Ground –

Since then – 'tis Centuries – and yet
Feels shorter than the Day
I first surmised the Horses' Heads
Were toward Eternity –

Emily Dickinson
(1830-1886)

Mais sobre Emily Dickinson em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Emily_Dickinson

segunda-feira, outubro 23, 2006

Fernando Pessoa e Francis Hime em "Glosa", interpretação de Francis e Olivia Hime.


Fernando Pessoa e Francis Hime, em "Glosa", por Francis & Olivia Hime.

Glosa

Quem me roubou a minha dor antiga
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem faz a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor....

Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava?"

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, outubro 22, 2006

Quem me roubou a dor antiga e só a vida me deixou por dor? Quem me arrancou ao sonho que me odiava e me deu só a vida em que me esqueço? Quem, quem?


Glosa


Quem me roubou a minha dor antiga
E só a vida me deixou por dor?
Quem, entre o incêndio da alma em que o ser periga,
Me deixou só no fogo e no torpor?

Quem faz a fantasia minha amiga,
Negando o fruto e emurchecendo a flor?
Ninguém ou o Fado, e a fantasia siga
A seu infiel e irreal sabor....

Quem me dispôs para o que não pudesse?
Quem me fadou para o que não conheço
Na teia do real que ninguém tece?
Quem me arrancou ao sonho que me odiava
E me deu só a vida em que me esqueço,
"Onde a minha saudade a cor se trava?"

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa






Se o poeta fosse um padre, como as missas seriam diferentes e lindas. Afinal, um belo poema sempre leva a Deus.


Se eu fosse um Padre


Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
- muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
... a um belo poema - ainda que de Deus se aparte -
um belo poema sempre leva a Deus!

Mario Quintana
(1906-1984)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

O Incriado de Deus não pode fugir à carne e à memória porque nada pode permanecer para a vida. Só ele, parado dentro do tempo, passando, passando...


O incriado

Distantes estão os caminhos que vão para o tempo - outro luar eu vi passar na altura
Nas plagas verdes as mesmas lamentações escuto como vindas da eterna espera
O vento ríspido agita sombras de araucárias em corpos nus unidos se amando
E no meu ser todas as agitações se anulam como vozes dos campos moribundos.

Oh, de que serve ao amante o amor que não germinará na terra infecunda
De que serve ao poeta desabrochar sobre o pântano e cantar prisioneiro?
Não há a fazer pois que estão brotando crianças trágicas como cactos
Da semente má que a carne enlouquecida deixou nas matas silenciosas.

Nem plácidas visões restam aos olhos - só o passado surge se a dor surge
E o passado é como o último morto que é preciso esquecer para Ter vida
Todas as meias-noites soam e o leito está deserto do corpo estendido
Nas ruas noturnas a alma passeia, desolada e só, em busca de Deus.

Eu sou como o velho barco que guarda no seu bojo o eterno ruído do mar batendo
No entanto, como está longe o mar e como é dura a terra sob mim...
Felizes são os pássaros que chegam mais cedo que eu à suprema franqueza
E que, voando, caem, pequenos e abençoados, nos parques onde a primavera é eterna.

Na memória cruel vinte anos seguem a vinte anos na única paisagem humana
Longe do homem os desertos continuam impassíveis diante da morte
Os trigais caminham para o lavrador e o suor para a terra
E dos velhos frutos caídos surgem árvores estranhamente calmas.

Ai, muito andei e em vão... rios enganosos conduziram meu corpo a todas as idades
Na terra primeira ninguém conhecia o Senhor das bem-aventuranças...
Quando meu corpo precisou repousar, eu repousei,
quando minha boca ficou sedenta, eu bebi
Quando meu ser pediu a carne, eu dei-lhe a carne mas eu me senti mendigo.

Longe está o espaço onde existem os grandes vôos e onde a música vibra solta
A cidade deserta é o espaço onde o poeta sonha os grandes vôos solitários
Mas quando o desespero vem e o poeta se sente morto para a noite
As entranhas das mulheres afogam o poeta e o entregam dormindo à madrugada.

Terrível é a dor que lança o poeta prisioneiro à suprema miséria
Terrível é o sono atormentado do homem que suou sacrilegamente a carne
Mas boa é a companhia errante que traz o esquecimento de um minuto
Boa é a esquecida que dá o lábio morto ao beijo desesperado.

Onde os cantos longínquos do oceano?...
Ssobre a espessura verde eu me debruço e busco o infinito
Ao léu das ondas há cabeleiras abertas como flores -
São jovens que o terno amor surpreendeu
Nos bosques procuro a seiva úmida mas os troncos estão morrendo
No chão vejo magros corpos enlaçados de onde a poesia fugiu como o perfume da flor morta.

Muito forte sou para odiar nada senão a vida
Muito fraco sou para amar nada mais do que a vida
A gratuidade está no meu coração e a nostalgia dos dias me aniquila
Porque eu nada serei como ódio e como amor se eu nada conto e nada valho.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não teve a sua alma e semelhança
Eu sou o que surgiu da terra e a quem não coube outra dor senão a terra
Eu sou a carne louca que freme ante a adolescência impúbere e explode sobre a imagem criada
Eu sou o demônio do bem e o destinado do mal mas eu nada sou.

De nada vale ao homem a pura compreensão de todas as coisas
Se ele tem algemas que o impedem de levantar os braços para o alto
De nada valem ao homem os bons sentimentos se ele descansa nos sentimentos maus
No teu puríssimo regaço eu nunca estarei, Senhora...

Choram as árvores na espantosa noite, curvadas sobre mim, me olhando...
Eu caminhando... sobre meu corpo as árvores passando
Quem morreu se eu estou vivo, por que choram as árvores?
Dentro de mim tudo está imóvel, mas eu estou vivo, eu seu que estou vivo porque sofro.

Se alguém não devia sofrer eu não devia, mas sofro e é tudo o mesmo
Eu tenho o desvelo e a benção, mas sofro como um desesperado e nada posso
Sofro a pureza impossível, sofro o amor pequenino dos olhos de das mãos
Sofro porque a náusea dos seios gastos está amargurando a minha boca.

Não quero a esposa que eu violaria nem o filho que ergueria a mão sobre o meu rosto
Nada quero porque eu deixo traços de lágrimas por onde passo
Quisera apenas que todos me desprezassem pela minha fraqueza
Mas, pelo amor de Deus, não me deixeis nunca sozinho!

Ás vezes por um segundo a alma acorda para um grande êxtase sereno
Num sopro da suspensão e beleza passa e beija a fronte do homem parado
E então o poeta surge e do seu peito se ouve uma voz maravilhosa
Que palpita no ar fremente e envolve todos os gritos num só grito.

Mas depois, quando o poeta foge e o homem volta como de um sonho
E sente sobre a sua boca um riso que ele desconhece
A cólera penetra em seu coração e ele renega a poesia
Que veio trazer de volta o princípio de todo o caminho percorrido.

Todos os momentos estão passando e todos os momentos estão sendo vividos
A essência das rosas invade o peito do homem e ele se apazigua no perfume
Mas se um pinheiro uiva no vento o coração do homem cerra-se de inquietude
No entanto, ele dormirá ao lado dos pinheiros uivando e das rosas recendendo.

Eu sou o Incriado de Deus, o que não pode fugir à carne e à memória
Eu sou como o velho barco longe do mar, cheio de lamentações no vazio do bojo
No meu ser todas as agitações se anulam - nada permanece para a vida
Só eu permaneço parado dentro do tempo passando, passando, passando...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Um dos mais belos cantos de amor da poesia universal. Neruda e o seu dom supremo de mexer com o coração de todos nós, simples mortais.


Veinte poemas de amor y una canción desesperada

Poema 5

Para que tú me oigas
mis palabras
se adelgazan a veces
como las huellas de las gaviotas en las playas.
Collar, cascabel ebrio
para tus manos suaves como las uvas.
Y las miro lejanas mis palabras.
Más que mías son tuyas.
Van trepando en mi viejo dolor como las yedras.
Ellas trepan así por las paredes húmedas.
Eres tú la culpable de este juego sangriento.
Ellas están huyendo de mi guarida oscura.
Todo lo llenas tú, todo lo llenas.
Antes que tú poblaron la soledad que ocupas,
y están acostumbradas más que tú a mi tristeza.
Ahora quiero que digan lo que quiero decirte
para que tú las oigas como quiero que me oigas.
El viento de la angustia aún las suele arrastrar.
Huracanes de sueños aún a veces las tumban
Escuchas otras voces en mi voz dolorida.
Llanto de viejas bocas, sangre de viejas súplicas.
Ámame, compañera. No me abandones. Sígueme.
Sígueme, compañera, en esa ola de angustia.
Pero se van tiñendo con tu amor mis palabras.
Todo lo ocupas tú, todo lo ocupas.
Voy haciendo de todas un collar infinito
para tus blancas manos, suaves como las uvas.

Pablo Neruda

(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

Um poema é erótico se um mestre da poesia o cria com todo o seu desejo. Para ele, não importa se os tempos e até o próprio amor vão mudar.


Poema Erótico

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...

Volúpia de água e da chama...

A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...

Manuel Bandeira

(1886-1968)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira



É muito difícil existir quando alguma coisa está errada e dá mal estar. E a poeta só se recusa o que tem mesmo que recusar.


Se tudo existe

Se tudo existe é porque sou.
Mas por que esse mal estar?
É porque não estou vivendo do único modo
que existe para cada um de se viver e nem sei qual é.
Desconfortável.
Não me sinto bem.
Não sei o que é que há.
Mas alguma coisa está errada e dá mal estar.
No entanto estou sendo franca e meu jogo é limpo.
Abro o jogo.
Só não conto os fatos de minha vida:
sou secreta por natureza.
O que há então?
Só sei que não quero a impostura.
Recuso-me.
Eu me aprofundei mas não acredito em mim porque meu pensamento é inventado.

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Claricce Lispector em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector

Quando chega um tempo em que não adianta morrer e que a vida é uma ordem, pouco resta a viver, ensina o poeta. Sem mistificação.


Os ombros suportam o Mundo


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Camões é considerado um dos maiores poetas da Humanidade. Mais conhecido pelos Luzíadas, a sua poesia é toda da melhor qualidade.


Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo amor?

Luiz Vaz de Camões

(1524-1580)

Mais sobre Luiz Vaz de Camões em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lu%C3%ADs_Vaz_de_Cam%C3%B5es


Ou se ama ou se odeia, ninguém fica indiferente à poesia de Augusto dos Anjos. Mas até hoje ele é um dos poetas brasileiros mais reeditados.


Versos íntimos


Vês ! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera !
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro
A mão que afaga é a mesma que apedreja

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga
Escarra nessa boca que te beija

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Um segredo que não podia mais ser guardado e uma surpreendente declaração de amor da poeta.


Objeto de amor


De tal ordem é e tão precioso
o que devo dizer-lhes
que não posso guardá-lo
sem que me oprima a sensação de um roubo:
cu é lindo!
Fazei o que puderdes com esta dádiva.
Quanto a mim dou graças
pelo que agora sei
e, mais que perdôo, eu amo.

Adélia Prado

Mais sobre Adelia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

terça-feira, outubro 17, 2006

Fernando Pessoa e Sueli Costa, em "Segue o teu destino". Interpretação maravilhosa de Nana Caymmi.


Fernando Pessoa & Suely Costa

Segue o teu destino

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, outubro 15, 2006

Para o poeta, a realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. E os deuses são deuses porque não se pensam.


Segue o teu destino


Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Ricardo Reis,
um dos heterônimos de Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Nos versos lascivos de Drummond, o amor não é completo se não sabe coisas que só o amor pode inventar.


A outra porta do prazer


A outra porta do prazer,
porta a que se bate suavemente,
seu convite é um prazer ferido a fogo
e, com isso, muito mais prazer.

Amor não é completo se não sabe
coisas que só o amor pode inventar,
Procura o estreito átrio do cubículo
aonde não chega a luz, e chega o ardor
de insofrida, mordente
fome de conhecimento pelo gozo.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Estás morto, estás velho, estás cansado! E para a poeta, se estás velho estás morto.


Velho

Estás morto, estás velho, estás cansado!
Como um suco de lágrimas pungidas
Ei-las, as rugas, as indefinidas
Noites do ser vencido e fatigado.

Envolve-te o crepúsculo gelado
Que vai soturno amortalhando as vidas
Ante o repouso em músicas gemidas
No fundo coração dilacerado.

A cabeça pendida de fadiga,
Sentes a morte taciturna e amiga,
Que os teus nervosos círculos governa.

Estás velho estás morto! Ó dor, delírio,
Alma despedaçada de martírio
Ó desespero da desgraça eterna.

Cora Coralina

(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

A pequena e humana cantiga talvez dure mais do que a vida. Mas à morte já não diz mais nada, no lamento da poeta.


Canção póstuma

Fiz uma canção para dar-te;
porém tu já estavas morrendo.
A Morte é um poderoso vento.
E é um suspiro tão tímido a Arte...

É um suspiro tímido e breve
como o da respiração diária.
Choro da pomba. E a Morte é uma águia
cujo grito ninguém descreve.

Vim cantar-te a canção do mundo,
mas estás de ouvidos fechados
para os meus lábios inexatos
- atento a um canto mais profundo.

E estou como alguém que chegasse
ao centro do mar, comparando
aquele universo de pranto
com a lágrima da sua face.

E agora fecho grandes portas
sobre a canção que chegou tarde.
E sofro sem saber de que arte
se ocupam as pessoas mortas.

Por isso é tão desesperada
a pequena, humana cantiga.
Talvez dure mais que a vida.
Mas à Morte não diz mais nada.

Cecília Meireles

(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles



Quando escreveu estes versos, o poeta jamais pensou vê-los estampados em fotos nas capas dos jornais.


Pietá


Essa mulher causa piedade
Com o filho morto no regaço
Como se ainda o embalasse.
Não ergue os olhos para o céu
À espera de algum milagre
Mas baixa as pálpebras pesadas
Sobre o adorável cadáver.
Ressucitá-lo ela não pode,
Ressucitá-lo ela não sabe.
Curva-se toda sobre o filho
Para no seio guardá-lo,
Apertando-o contra o ventre
Com dor maior que a do parto.
Mãe, de Dor te vejo grávida,
Oh, mãe do filho morto!

Dante Milano
(1899-1991)

Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

quarta-feira, outubro 11, 2006

Para Maiakóvski, sem forma revolucionária não há arte revolucionária. E ele ainda fazia poesia com uma apaixonada face lírica.


A flauta vértebra


A todas vocês
que eu amei e que eu amo,
ícones guardados num coração-caverna,
como quem nun banquete ergue a taça e celebra,
repleto de versos meu crânio.

Penso, mais de uma vez:
seria melhor talvez
pôr-me o ponto final de um balaço.
Em todo caso
eu
hoje vou dar meu concerto de adeus.

Memória!
Convoca aos salões do cérebro
um renque inumerável de amadas.
Verte o riso de pupila em pupila,
veste a noite de núpcias passadas.
De corpo a corpo verta a alegria.
Esta noite ficará na História.
Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.

Vladimir Maiakóvski
(1893-1930)

Mais sobre Wladimir Maiakóvski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maiakovski

Bocage chegou a ser preso por ser "desordenado nos costumes". Mas soube morrer o que viver não soube.


Saiba morrer o que viver não soube

Meu ser evaporei na lida insana
do tropel de paixões que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta e si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus!... Quando a morte à luz me roube
ganhe um momento o que perderam anos
saiba morrer o que viver não soube.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage* em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bocage

Morte, teu nome é nada. Para a poeta, diante do eterno, nada.


Poesia XX

Teu nome é Nada.
Um sonhar o Universo
No pensamento do homem:
Diante do eterno, nada.

Morte, teu nome.
Um quase chegar perto.
Um pouco mais (me dizem)
E terias o Todo no teu gesto.

Um pouco mais, tu
O terias visto.
Teu nome é Nada.
Haste, pata. Sem ponta, sem ronda.
Um pensar duas palavras diante da Graça:
Terias tido.

Hilda Hilst
(1930-2004)

Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst

segunda-feira, outubro 09, 2006

Se te queres matar, por que não te queres matar? Talvez seja pior para outros existires que matares-te, maltrata mais ainda o verso do poeta.


Se te queres


Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por atores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo sem fím?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!
Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...
Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência! ...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?

Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjetividade objetiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente,
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células noturnamente conscientes
Pela noturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atômica das coisas,
Pelas paredes turbihonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

domingo, outubro 08, 2006

Alberto Caeiro & Antonio Carlos Jobim, em "O Tejo é o Rio da minha aldeia". Quando gênios se encontram, quem ganha é a Humanidade.


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Para o poeta, o Tejo não é mais belo que o rio da aldeia dele.


O Tejo é mais belo

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus. O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
Ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

sábado, outubro 07, 2006

A vida de Baudelaire foi uma tragédia anunciada. Mas a sua poesia é linda, como a sua Dorothée.


Bien loin d'ici

C'est ici la case sacrée
Où cette fille très parée,
Tranquille et toujours préparée,

D'une main éventant ses seins,
Et son coude dans les coussins,
Ecoute pleurer les bassins ;

C'est la chambre de Dorothée.
- La brise et l'eau chantent au loin
Leur chanson de sanglots heurtée
Pour bercer cette enfant gâtée.

Du haut en bas, avec grand soin,
Sa peau délicate est frottée
D'huile odorante et de benjoin.
- Des fleurs se pâment dans un coin.

Charles Baudelaire

(1821-1867)

Mais sobre Charles Baudelaire em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Baudelaire

Adorei teu corpo e vi todas as coisas numa só. Compreendi tudo desde o princípio do mundo, confessou o poeta.


Corpo


Adorei teu corpo,
Tombei de joelhos.
Escostei a fronte,
O rosto, em teu ventre.
Senti o gosto acre
De santidade
Do corpo nu.
Absorvi a existência,
Vi todas as coisas numa coisa só,
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.


Dante Milano
(1899-1991)

Mais sobre Dante Mila em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

O medo de acabar se desfez como tudo que é efêmero. E ficaste só tu, que é eterno.


Tu tens um medo

Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

Cecília Meirelles
( 1901-1964)

Mais sobre Cecília Meirelles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meirelles

Na manhã de tempestade, as nuvens viajavam como lenços brancos de adeus. E o enorme coração do vento pulsava sobre um silêncio enamorado.


Veinte poemas de amor y una canción desesperada - Poema IV

Es la mañana llena de tempestad
en el corazón del verano.

Como pañuelos blancos de adiós viajan las nubes,
el viento las sacude con sus viajeras manos.

Innumerable corazón del viento
latiendo sobre nuestro silencio enamorado.

Zumbando entre los árboles, orquestal y divino,
como una lengua llena de guerras y de cantos.

Viento que lleva en rápido robo la hojarasca
y desvía las flechas latientes de los pájaros.

Viento que la derriba en ola sin espuma
y sustancia sin peso, y fuegos inclinados.

Se rompe y se sumerge su volumen de besos
combatido en la puerta del viento del verano.

Pablo Neruda

(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

quinta-feira, outubro 05, 2006

Sentindo o sangue misturar-se ao de sua amada e a vida exprimir-se sem disfarce, geme o poeta um soneto em pleno gozo.


Soneto de amor

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus, não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

José Régio

(1901-1969)

Mais sobre José Régio em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_R%C3%A9gio

Que mundo é este onde homens de nada compram o amor que não têm e mulheres de tudo vendem o amor que queriam dar? Para o poeta, é terra de ninguém.


Balada do Mangue

Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
No entanto crispais sorrisos
Em vossas jaulas acesas
Mostrando o rubro das presas
Falando coisas do amor
E às vezes cantais uivando
Como cadelas à lua
Que em vossa rua sem nome
Rola perdida no céu...
Mas que brilho mau de estrela
Em vossos olhos lilases
Percebo quando, falazes,
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
Cantais, maternais hienas
Canções de caftinizar
Gordas polacas serenas
Sempre prestes a chorar.
Como sofreis, que silêncio
Não deve gritar em vós
Esse imenso, atroz silêncio
Dos santos e dos heróis!
E o contraponto de vozes
Com que ampliais o mistério
Como é semelhante às luzes
Votivas de um cemitério
Esculpido de memórias!
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
Por que vos deixais imóveis
Alérgicas sensitivas
Nos jardins desse hospital
Etílico e heliotrópico?
Por que não vos trucidais
Ó inimigas? ou bem
Não ateais fogo às vestes
E vos lançais como tochas
Contra esses homens de nada
Nessa terra de ninguém!

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Se eu pudesse seria feliz sempre e não morreria nunca. Mas o poeta não pensava assim. Então, assim seja.


Se eu pudesse

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe uma paladar,
Seria mais feliz um momento ...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...
Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva ...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja ...


Alberto Caeiro
, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

quarta-feira, outubro 04, 2006

A dor que te dói pelo avesso, quem sabe é teu amor. Porque o que tu tens, não tens.


Poema concreto


O que tu tens e queres saber (porque te dói)
não tem nome. Só tem (mas vazio) o lugar
que abriu em tua vida a sua própria falta.

A dor que te dói pelo avesso,
perdida nos teus escuros,
é como alguém que come
não o pão, mas a fome.

Sofres de não saber
o que tens e falta
num lugar que nem sabes,
mas que é tua vida,
quem sabe é teu amor.
O que tu tens, não tens.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

A poeta aprendeu uma lição com o vento que a levou e rasgou em Solombra. Mas o sonho que sabe ser sonho, este não se deixa levar nem rasgar nunca.


Eu sou essa pessoa a quem o vento chama


Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.

Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.

Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.

Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:

- Agora és livre, se ainda recordas


Cecília Meireles
(1901-1964)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

terça-feira, outubro 03, 2006

A morte, em trajes preto e amarelos brandindo, contra os amantes, doidos Cutelos e as asas rubras dos Dragões antigos.


O Amor e a Morte


Com tema de Augusto dos Anjos


Sobre essa estrada ilumineira e parda
dorme o Lajedo ao sol, como uma Cobra.
Tua nudez na minha se desdobra
— ó Corça branca, ó ruiva Leoparda.

O Anjo sopra a corneta e se retarda:
seu Cinzel corta a pedra e o Porco sobra.
Ao toque do Divino, o bronze dobra,
enquanto assolo os peitos da javarda.

Vê: um dia, a bigorna desses Paços
cortará, no martelo de seus aços,
e o sangue, hão de abrasá-lo os inimigos.

E a Morte, em trajos pretos e amarelos,
brandirá, contra nós, doidos Cutelos
e as Asas rubras dos Dragões antigos.

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

Para Thiago de Mello, amor não se faz. Quando muito, se desfaz. Para ele, o verbo exato é outro.


Arte de amar



Não faço poemas como quem chora,
nem faço versos como quem morre.
Quem teve esse gosto foi o bardo Bandeira
quando muito moço; achava que tinha
os dias contados pela tísica
e até se acanhava de namorar.
Faço poemas como quem faz amor.
É a mesma luta suave e desvairada
enquanto a rosa orvalhada
se vai entreabrindo devagar.
A gente nem se dá conta, até acha bom,
o imenso trabalho que amor dá para fazer.

Perdão, amor não se faz.
Quando muito, se desfaz.
Fazer amor é um dizer
(a metáfora é falaz)
de quem pretende vestir
com roupa austera a beleza
do corpo da primavera.
O verbo exato é foder.
A palavra fica nua
para todo mundo ver
o corpo amante cantando
a glória do seu poder.

Thiago de Mello


Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Dizes-me: que mais há a dizer?


Dizes-me

Dizes-me: tu és mais alguma cousa
Que uma pedra ou uma planta.
Dizes-me: sentes, pensas e sabes
Que pensas e sentes.
Então as pedras escrevem versos?
Então as plantas têm idéias sobre o mundo?
Sim: há diferença.
Mas não é a diferença que encontras;
Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:
Só me obriga a ser consciente.

Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.
Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.

Ter consciência é mais que ter cor?
Pode ser e pode não ser.
Sei que é diferente apenas.
Ninguém pode provar que é mais que só diferente.

Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.
Sei isto porque elas existem.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.
Sei que sou real também.
Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,
Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.
Não sei mais nada. Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.
Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.
Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;
E as plantas são plantas só, e não pensadores.
Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,

Como que sou inferior.
Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",
Digo da planta, "é uma planta",
Digo de mim, "sou eu".
E não digo mais nada. Que mais há a dizer?

Alberto Caeiro,
um dos heterônimos de Fernando Pessoa

(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa





A vida é bela, a vida é louca. Então, por que chorar?


A canção da vida


A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Fazer versos como quem chora, fazer versos como quem morre. E o sangue do poeta a escorrer de tanto amor.


Desencanto


Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto

Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.

E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca

Eu faço versos como quem morre.
Qualquer forma de amor vale a pena!!
Qualquer forma de amor vale amar!

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira