sábado, maio 17, 2008

Saio do meu poema como quem lava as mãos, diz João Cabral de Melo. Assim, ele começa um dos mais importantes poemas da língua portuguesa.


Psicologia da composição


I


Saio do meu poema

como quem lava as mãos.

Algumas conchas tornaram-se,

que o sol da atenção

cristalizou; alguma palavra

que desabrochei, como a um pássaro.

Talvez alguma concha

dessas (ou pássaro) lembre,

côncava, o corpo do gesto

extinto que o ar já preencheu;

talvez como a camisa

vazia, que despi.


II

Esta folha branca

me proscreve o sonho,

me incita ao verso

nítido e preciso.

Eu me refugio

nesta praia pura

onde nada existe

em que a noite pouse.

Como não há noite

cessa toda fonte;

como não há fonte

cessa toda fuga;

como não há fuga

nada lembra o fluir

de meu tempo, ao vento

que nele sopra o tempo.


III


Neste papel

pode teu sal

virar cinza;

pode o limão

virar pedra;

o sol da pele,

o trigo do corpo

virar cinza.

(Teme, por isso,

a jovem manhã

sobre as flores

da véspera.)

Neste papel

logo fenecem

as roxas, mornas

flores morais;

todas as fluidas

flores da pressa;

todas as úmidas

flores do sonho.

(Espera, por isso,

que a jovem manhã

te venha revelar

as flores da véspera.)


IV


O poema, com seus cavalos,

quer explodir

teu tempo claro: romper

seu branco frio, seu cimento

mudo e fresco.

(O descuido ficara aberto

de par em par;

um sonho passou, deixando

fiapos, logo árvores instantâneas

coagulando a preguiça.)


V


Vivo com certas palavras,

abelhas domésticas.

Do dia aberto

(branco guarda-sol)

esses lúcidos fusos retiram

o fio do mel

(do dia que abriu

também como flor)

que na noite

(poço onde vai tombar

a aérea flor)

persistirá: louro

sabor, e ácido,

contra o açúcar do podre.


VI


Não a forma encontrada

como uma concha, perdida

nos frouxos areais

como cabelos;

não a forma obtida

em lance santo ou raro,

tiro nas lebres de vidro

do invisível;

mas a forma atingida

como a ponta do novelo

que a atenção, lenta,

desenrola.,

aranha; como o mais extremo

desse fio frágil, que se rompe

ao peso, sempre, das mãos

enormes.


VII


É mineral o papel

onde escrever

o verso; o verso

que é possível não fazer.

São minerais

as flores e as plantas,

as frutas, os bichos

quando em estado de palavra.

É mineral

A linha do horizonte,

nossos nomes, essas coisas

feitas de palavras.

É mineral, por fim,

qualquer livro:

que é mineral a palavra

escrita, a fria natureza

da palavra escrita.


VIII


Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

(A árvore destila

a terra, gota a gota;

a terra completa

cai, fruto!

Enquanto na ordem

de outro pomar

a atenção destila

palavras maduras.)

Cultivar o deserto

como um pomar às avessas:

então, nada mais

destila; evapora;

onde foi maçã

resta uma fome;

onde foi palavra

(povos ou touros

contidos) resta a severa

forma do vazio.


João Cabral de Melo Neto

(1920-1999)


Mais sobre João Cabral de Melo Neto em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

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