sábado, outubro 24, 2009

Triste, Joaquim Cardozo vê o Recife morto, mutilado, grande, pregado à cruz das novas avenidas. E as mãos longas e verdes da madrugada o acariciam.


Recife morto


Recife. Pontes e canais.
Alvarengas, açúcar, água verde, água negra.
Torres de tradição, desvairadas, aflitas,
apontam para o abismo negro-azul das estrelas.
Pátio do Paraíso. Praça de São Pedro.
Lajes carcomidas, decrépitas calçadas.
Falam, baixo, na pedra, as vozes da alma antiga.

Gotas de som sobre a cidade,
gritos de metal,
que o silêncio da treva condensa em harmonia.
As horas caem do relógio do Diário,
da Faculdade de Direito e do Convento
de São Francisco;
duas, três, quatro... A alvorada se anuncia.

Agora, ao ouvir as horas que as torres apregoam,
vou navegando o mar de sombra das vielas,
e o meu olhar penetra o reflexo, o prodígio,
a humilde proteção dos telhados sombrios,
o equilíbrio burguês dos postes e dos mastros,
a ironia curiosa das sacadas.
As janelas das velhas casas negras,
bocas abertas desdentadas, dizem versos
para a mudez imbecil dos espaços imóveis.

Vagam fantasmas, pelas velhas ruas,
ao passo que, em falsete, a voz fina do vento
faz rir os cartazes.

Asas imponderáveis, úmidos véus enormes.
Figuras amplas, dilatadas pelo tempo,
vultos brancos de aparições estranhas,
vindos do mar, do céu... Sonhos! Evocações!

A invasão! caravelas no horizonte!
Holandeses! Vryburg!
Motins. Procissões. Ruído de soldado em marcha.

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Os andaimes parecem patíbulos erguidos.

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Duendes!
Manhã vindoura. No ar, prenúncio de sinos.
Recife
ao clamor desta hora noturna e mágica,
vejo-te morto, mutilado, grande,
pregado à cruz das novas avenidas
e as mãos longas e verdes
da madrugada
te acariciam.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

Mais sobre Joaquim Cardozo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Cardoso

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