sexta-feira, janeiro 30, 2009
És, talvez sem querer, o laço enigmático que me prende à idéia essencial de Deus. Que linda a declaração de amor do grande poeta Murilo Mendes.
Poema passional
Fora do tempo eu assistia
Ao nascimento das tuas sensações,
Ao nascimento dos teus filhos no teu ventre
E ao diálogo entre o Criador e o Destruidor.
Foi permitido o sítio e o saque da tua alma,
Foi permitido o corte da tua cabeleira pesada,
Fizeram uma cicatriz nos braços que abracei.
Tentaram-te muitas vezes além do extremo limite.
E eu te amei ainda mais porque saquearam tua alma,
Porque te atribuíram o impudor das perdidas,
Porque golpearam teus braços, teus cabelos,
Porque te vi sem ânimo e sem cor na mesa de operação,
Porque és alternativamente soberba e resignada.
E eu te amei ainda mais pela centelha contínua
Que transparece nos teus atos, nos teus movimentos,
No teu corpo, nos teus gestos, na tua vida.
E eu te amei sem condições, por isso reinas
sobre minha alma incontida de poeta.
És, talvez sem querer, o laço enigmático
Que me prende à idéia essencial de Deus.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
Não tenho parentes, tenho filhos de amar o mundo. Assim, Carlos Nejar deixa bem claro como são seus laços com a vida.
Laços
Não tenho parentes
tenho filhos
de amar o mundo
Sou um rio
entre o boi do chão
e as estrelas
Não estou só
o sangue secou
sou um companheiro
que partiu
Carlos Nejar
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar
O mundo que eu venci deu-me um amor. Um amor que torna contra mim, e me devora e me rumina em campos de vitória, diz um apaixonado Mário Faustino.
O mundo que venci deu-me um amor
O mundo que venci deu-me um amor,
Um troféu perigoso, este cavalo
Carregado de infantes couraçados.
O mundo que venci deu-me um amor
Alado galopando em céus irados,
Por cima de qualquer muro de credo,
Por cima de qualquer fosso de sexo.
O mundo que venci deu-me um amor
Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos infernos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em campos de vitória...
Mário Faustino
(1930-1962)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Faustino
quinta-feira, janeiro 29, 2009
Para Vinicius de Moraes, quem se perdeu de amor pelo seu semelhante não pode perder o amor de sua vida. Porque o dever é mais forte do que a vontade.
Mensagem à poesia
Não posso
Não é possível
Digam-lhe que é totalmente impossível
Agora não pode ser
É impossível
Não posso.
Digam-lhe que estou tristíssimo, mas não posso ir esta noite ao
seu encontro.
Contem-lhe que há milhões de corpos a enterrar
Muitas cidades a reerguer, muita pobreza pelo mundo
Contem-lhe que há uma criança chorando em alguma parte
do mundo
E as mulheres estão ficando loucas, e há legiões delas carpindo
A saudade de seus homens: contem-lhe que há um vácuo
Nos olhos dos párias, e sua magreza é extrema: contem-lhe
Que a vergonha, a desonra, o suicídio, rondam os lares, e é
preciso reconquistar a vida
Façam-lhe ver que é preciso eu estar alerta, voltado para todos os
caminhos
Pronto a socorrer, a amar, a mentir, a morrer se for preciso
Ponderem-lhe com cuidado - não a magoem... que se não vou
Não é porque não queira: ela sabe; é porque há um herói num
cárcere
Há um lavrador que foi agredido, há uma poça de sangue numa
praça.
Contem-lhe, bem em segredo, que eu devo estar prestes, que meus
Ombros não se devem curvar, que meus olhos não se devem
Deixar intimidar, que eu levo nas costas a desgraça dos homens
E não é o momento de parar agora; digam-lhe, no entanto
Que sofro muito, mas não posso mostrar meu sofrimento aos
Homens perplexos; digam-lhe que me foi dada
A terrível participação, e que possivelmente
Deverei enganar, fingir, falar com palavras alheias
Porque sei que há, longínqua, a claridade de uma aurora.
Se ela não compreender, oh, procurem convencê-la
Desse invencível dever que é o meu; mas digam-lhe
Que, no fundo, tudo o que estou dando é dela, e que me
Dói ter de despojá-la assim, neste poema; que por outro lado
Não devo usá-la em seu mistério: a hora é de esclarecimento
Nem debruçar-me sobre mim quando a meu lado
Há fome e mentira; e um pranto de criança sozinha numa
estrada
Junto a um cadáver de mãe; digam-lhe que há
Um náufrago no meio do oceano, um tirano no poder, um homem
Arrependido; digam-lhe que há uma casa vazia
Com um relógio batendo horas; digam-lhe que há um grande
Aumento de abismos na terra, há súplicas, há vociferações
Há fantasmas que me visitam de noite
E que me cumpre receber; contem a ela da minha certeza
No amanhã
Que sinto um sorriso no rosto invisível da noite
Vivo em tensão ante a expectativa do milagre; por isso
Peçam-lhe que tenha paciência, que não me chame agora
Com a sua voz de sombra; que não me faça sentir covarde
De ter de abandoná-la neste instante, em sua incomensurável
Solidão: peçam-lhe, oh peçam-lhe que se cale
Por um momento, que não me chame
Porque não posso ir
Não posso ir
Não posso.
Mas não a traí. Em meu coração
Vive a sua imagem pertencida, e nada direi que possa
Envergonhá-la. A minha ausência
É também um sortilégio
Do seu amor por mim. Vivo do desejo de revê-la
Num mundo em paz: Minha paixão de homem
Resta comigo; minha solidão resta comigo; minha
Loucura resta comigo. Talvez eu deva
Morrer sem vê-la mais, sem sentir mais
O gosto de suas lágrimas, olhá-la correr
Livre e nua nas praias e nos céus
E nas ruas da minha insônia. Digam-lhe que é esse
O meu martírio; que às vezes
Pesa-me sobre a cabeça o tampo da eternidade e as poderosas
Forças da tragédia abatem-se sobre mim, e me impelem para a treva
Mas que eu devo resistir, que é preciso...
Mas que a amo com toda a pureza da minha passada adolescência
Com toda a violência das antigas horas de contemplação extática
Num amor cheio de renúncia. Oh, peçam a ela
Que me perdoe, ao seu triste e inconstante amigo
A que foi dado se perder de amor pelo seu semelhante
A que foi dado se perder de amor por uma pequena casa
Por um jardim de frente, por uma menininha de vermelho
A quem foi dado se perder de amor pelo direito
De todos terem uma pequena casa, um jardim de frente
E uma menininha de vermelho; e se perdendo
Ser-lhe doce perder-se...
Por isso convençam a ela, expliquem-lhe que é terrível
Peçam-lhe de joelhos que não me esqueça, que me ame
Que me espere, porque sou eu, apenas seu; mas que agora
É mais forte do que eu, não posso ir,
Não é possível
Me é totalmente impossível
Não pode ser não
É impossível
Não posso.
Vinícius de Moraes
(1913-1980)
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Ana Cristina Cesar diz que olha muito tempo o corpo de um poema. Até sentir um filete de sangue nas gengivas.
Olho muito tempo o corpo de um poema
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
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E de súbito desaba o silêncio, um silêncio sem ti. Mas só nas minhas mãos oiço a música das tuas, diz com muito amor Eugénio de Andrade.
Sem ti
E de súbito desaba o silêncio.
É um silêncio sem ti,
sem álamos,
sem lua.
Só nas minhas mãos
oiço a música das tuas.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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quarta-feira, janeiro 28, 2009
Em um madrigal muito fácil, Manuel Bandeira declara toda a sua paixão. E confessa que tudo o que quer é ver o seu amor mais de perto ainda.
Madrigal muito fácil
Quando de longe te vi,
Quando de longe te via,
Gostei logo bem de ti.
Como é bonita! eu dizia.
Mas por enganar aquilo
Que dentro de mim senti,
Que dentro de mim sentia,
Pensei de mim para mim
Que a distância é que fazia
Me pareceres assim.
Não era a distância não!
Pois chegou aquele dia
Em que te apertei a mão
Sem saber o que dizia.
E vi que eras mais bonita
Do que para o meu sossego
A distância te fazia.
Quanto mais de perto, mais
Bonita, era o que eu dizia!
E desde então imagino
Que mais linda te acharia,
Mais fresca, mais desejável
Mais tudo enfim, se algum dia
- Dia ou noite que marcasses -
Se algum dia me deixasses
Te ver de mais perto ainda!
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
A Hilda Hilst, o desejo não faz medo. Assim como lhe veio, também não a avassala.
Do desejo
I
Porque há desejo em mim, é tudo cintilância.
Antes, o cotidiano era um pensar alturas
Buscando Aquele Outro decantado
Surdo à minha humana ladradura.
Visgo e suor, pois nunca se faziam.
Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivo
Tomas-me o corpo. E que descanso me dás
Depois das lidas. Sonhei penhascos
Quando havia o jardim aqui ao lado,
Pensei subidas onde não havia rastros.
Extasiada, fodo contigo
Ao invés de ganir diante do Nada.
II
Ver-te. Tocar-te. Que fulgor de máscaras.
Que desenhos e rictus na tua cara.
Como os frisos veementes dos tapetes antigos.
Que sombrio te tornas se repito
O sinuoso caminho que persigo: um desejo
Sem dono, um adorar-te vívido mas livre.
E que escura me faço se abocanhas de mim
Palavras e resíduos. Me vêm fomes
Agonias de grande espessuras, embaçadas luas
Facas, tempestade. Ver-te. Tocar-te.
Cordura.
Crueldade.
III
Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada a tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosses o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.
IV
Se eu disser que vi um pássaro
Sobre o teu sexo, deverias crer?
E se não for verdade, em nada mudará o Universo.
Se eu disser que o desejo é Eternidade
Porque o instante arde interminável
Deverias crer? E se não for verdade
Tantos o disseram que talvez possa ser.
No desejo nos vêm sofomanias, adornos
Inpudência, pejo. E agora digo que há um pássaro
Voando sobre o Tejo. Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
V
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst
Poeta sim, poeta é o meu nome, diz Miguel Torga. Uma palavra só, velha e sagrada, tatuada em sua própria carne.
Ficha
Poeta sim, poeta...
É o meu nome.
Um nome de baptismo
Sem padrinhos...
O nome do meu próprio nascimento...
O nome que ouvi sempre nos caminhos
Por onde me levava o sofrimento...
Poeta, sem mais nada.
Sem nenhum apelido.
Um nome temerário,
Que enfrenta, solitário,
A solidão.
Uma estranha mistura
De praga e de gemido à mesma altura.
O eco de uma surda vibração.
Poeta, como santo, ou assassino, ou rei.
Condição,
Profissão,
Identidade,
Numa palavra só, velha e sagrada,
Pela mão do destino, sem piedade,
Na minha própria carne tatuada.
Miguel Torga
(1907-1995)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga
terça-feira, janeiro 27, 2009
Mario Quintana e sua maravilhosa capacidade de emocionar com um verso. Um verso plantado para sempre em nossos corações.
Germinal
Planto
com emoção
este verso em teu coração.
Mario Quintana
(1906-1994)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
Francisco Alvim e a história antiga do homem que queria um emprego público. E tudo começou com a famosa carta de Pero Vaz de Caminha.
História antiga
Na época das vagas magras
redemocratizado o país
governava a Paraíba
alugava de meu bolso
em Itaipu uma casa
do Estado só um soldado
que lá ficava sentinela
um dia meio gripado
que passara todo em casa
fui dar uma volta na praia
e vi um pescador
com sua rede e jangada
mar adentro e saindo
perguntei se podia ir junto
não me reconheceu partimos
se arrependimento matasse
nunca sofri tanto
jogado naquela velhíssima
jangada
no meio de um mar
brabíssimo
voltamos agradeci
meses depois num despacho
anunciaram um pescador
já advinhando de quem
e do que se tratava
dei (do meu bolso) três contos
é para uma nova jangada
que nunca vi outra
tão velha
voltou o portador
com a seguinte notícia
o homem não quer jangada
quer um emprego público
Francisco Alvim
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Antonio Cícero diz que em cofre não se guarda coisa alguma, perde-se a coisa à vista. Daí, o lance de um poema: por guardar-se o que se quer guardar.
Guardar
Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance de um poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Antonio Cícero
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_C%C3%ADcero
segunda-feira, janeiro 26, 2009
Quando criou este poema, Drummond causou uma grande polêmica. Tão intenso foi o debate que, anos mais tarde, ele publicou "A biografia de um poema".
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
Eu só quero uma coisa branca bem junto de mim. Para me sumir, para me esquecer, nesta noite fria e sem Deus, é tudo o que pede Dante Milano.
Imagem
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.
Uma coisa branca
De carne, de luz,
Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,
Uma coisa branca,
Doce e profunda,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.
Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,
Uma coisa branca
Para me encostar
E afundar o rosto.
Talvez um seio,
Talvez um ventre,
Talvez um braço,
Onde repousar.
Eis o meu desejo,
Uma coisa branca
Bem junto de mim,
Para me sumir,
Para me esquecer,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Dante Milano
(1899-1981)
Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano
Emílio Moura ouve a voz do desejo e recua até as origens de sua angústia. Ele acende fogueiras dentro da noite e espera cantando pela madrugada.
Poema patético
Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma caverna,
Como um abafado soluço que irrompesse de súbito de um quarto
fechado,
Ouço-te, agora, a voz, ó meu desejo, e instintivamente recuo até as
origens de minha angústia,
Policiada e vencida, oh! afinal vencida por tantos e tantos séculos
de resignação e humildade.
Em que hora remota, em que época já tão distanciada, foi que os ares
vibraram pela última vez, diante de teu último grito de rebeldia?
Quantas vezes, ó meu desejo, tu me obrigaste a acender grandes fogueiras
dentro da noite.
E esperar, cantando, pela madrugada?
Mas, e hoje? Hoje a tua voz ressoa dentro de mim, como um cântico de
órgão.
Como a voz de um pequeno braço de mar perdido dentro de uma
caverna,
Como um abafado soluço que irrompesse, de súbito, de um quarto
fechado.
Emílio Moura
(1902-1971)
Mais sobre Emílio Moura em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Em%C3%ADlio_Moura
sábado, janeiro 24, 2009
No Romanceiro da Inconfidência, Cecília Meireles escreveu alguns de seus mais importantes poemas. E pôs sua poesia no cenário da luta pela Liberdade.
Cenário
(do Romanceiro da Inconfidência)
Passei por essas plácidas colinas
e vi das nuvens, silencioso, o gado,
pascer nas solidões esmeraldinas.
Largos rios de corpo sossegado
dormiam sobre a tarde, imensamente,
e eram sonhos sem fim, de cada lado.
Entre nuvens, colinas e torrente,
uma angústia de amor estremecia
a deserta amplidão na minha frente.
Que vento, que cavalo, que bravia
saudade me arrastava a esse deserto,
me obrigava a adorar o que sofria?
Passei por entre as grutas negras, perto
dos arroios fanados, do cascalho
cujo ouro já foi todo descoberto.
As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.
De coração votado a iguais perigos,
vivendo as mesmas dores e esperanças,
a ovoz ouvi de amigos e inimigos.
Vencendo tempo, fértil em mudanças,
conversei com doçura as mesmas fontes,
e vi serem comuns nossas lembranças.
Da brenha tenebrosa aos curvos montes,
do quebrado almocafre aos anjos de ouro
que o céu sustém nos longos horizontes,
tudo me fala e entende do tesouro
arrancado a estas Minas enganosas,
com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.
Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
e os girassóis destes jardins, que um dia
foram terras e areias dolorosas,
por onde o passo da ambição rugia;
por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.
Escuto os alicerces que o passado
tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
de muros de ouro em fogo evaporado.
Altas capelas contam-me divinas
fábulas. Torres, santos e cruzeiros
apontam-me altitudes e neblinas.
Ó pontes sobre os córregos! ó vasta
desolação de ermas, estéreis serras
que o sol frequenta e a ventania gasta!
Rubras, cinéreas, tenebrosas terras
retalhadas por grandes golpes duros,
de infatigáveis, seculares guerras...
Tudo me chama: a porta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus próprios assuntos inseguros.
Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelaçados
na mesma dor, quiméricos e altivos.
E assim me acenam por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na sentença dos homens e dos fados.
Cemitério das almas... - que tristeza
nutre as papulas de tão vaga essência?
(Tudo é sombra de sombras, com certeza...
O mundo, vaga e inábil aparência,
que se perde nas lápides escritas,
sem qualquer consistência ou consequência.
Vão-se as datas e as letras eruditas
na pedra e na alma, sob etéreos ventos,
em lúcidas venturas e desditas.
E são todas as coisas uns momentos
de perdulária fantasmagoria,
- jogo de fugas e aparecimentos.)
Das grotas de ouro à extrema escadaria,
por asas de memória e de saudade,
com o pó do chão meu sonho confundia.
Armado pó que finge eternidade,
lavra imagens de santos e profetas
cuja voz silenciosa nos persuade.
E recompunha as coisas incompletas:
figuras inocentes, vis, atrozes,
vigários, coronéis, ministros, poetas.
Retrocedem os tempos tão velozes,
que ultramarinos árcades pastores
falam de Ninfas e Metamorfoses.
E percebo os suspiros dos amores
quando por esses prados florescentes
se ergueram duros punhos agressores.
Aqui tiniram ferros de correntes;
pisaram por ali tristes cavalos.
E enamordos olhos refulgentes
- parado o coração por escutá-los -
prantearam nesse pânico de auroras
densas de brumas e gementes galos.
Isabéis, Dorotéias, Eliodoras,
ao longo desses vales, deses rios,
viram as suas mais douradas horas
em vasto furacão de desvarios
vacilar como em caules de altas velas
cálida luz de trêmulos pavios.
Minha sorte se inclina junto àquelas
vagas sombrias da triste madrugada,
fluidos perfis de donas e donzelas.
Tudo em redor é tanta coisa e é nada:
Nise, Anarda, Marília... - quem procuro?
Quem responde a essa póstuma chamada?
Que mensageiro chega, humilde e obscuro?
Que cartas se abrem? Quem reza ou pragueja?
Quem foge? Entre que sombras me aventuro?
Que soube cada santo em cada igreja?
A memória é também pálida e morta
sobre a qual nosso amor saudoso adeja.
O passado não abre a sua porta
e não pode entender a nossa pena.
Mas, nos campos sem fim que o sonho corta,
vejo uma forma no ar subir serena:
vaga forma, do tempo desprendida.
É a mão do Alferes, que de longe acena.
Eloquência da simples despedida:
"Adeus! que trabalhar vou para todos!..."
(Esse adeus estremece a minha vida)
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
Moacyr Félix não sabe por quê mas tem uma vontade mansa de tomar chá com T. S. Eliot. E não dizer nada, só uma coisa qualquer para quebrar o silêncio.
Tarde da ilha
Não sei por quê,
mas tenho
uma vontade mansa de tomar chá
com Thomas Stearns Eliot,
de não dizer nada
de não perguntar nada,
e ficar olhando
todas as manchetes e todas as capas
de todos os livros,
olhando de olhos vazios
não como os do morto, mas vazios
como o luar que orvalha a tamareira e o poço.
Uma vez ou outra, ouvirei
a colherinha pousar na porcelana frágil,
e é tudo que eu ouvirei, a colherinha de prata.
Talvez até lhe dissesse uma coisa qualquer, uma coisa
só para quebrar o silêncio, só para isso
uma coisa sem importância, simples, como por exemplo:
Você sabe, ó T.S. Eliot, minha mãe já foi muita bonita...
Moacyr Félix
(1926-2005)
Entre zabumbas de bombos e rangir de ganzás, Ascenso Ferreira canta o maracatu de sua gente. Luanda, Luanda, onde estás? Luanda, Luanda, onde estou?
Maracatu
Zabumba de bombos,
Estouro de bombas,
Batuques de ingonos,
Cantigas de banzo,
Rangir de ganzás...
- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
As luas crescentes
De espelhos luzentes,
Colares e pentes,
Queijares e dentes
De maracajás...
- Luanda, Luanda, onde estás?
Luanda, Luanda, onde estás?
A balsa do rio
Cai no corrupio
Faz passo macio,
Mas toma desvio
Que nunca sonhou...
- Luanda, Luanda, onde estou?
Luanda, Luanda, onde estou?
Ascenso Ferreira
(1895-1965)
Mais sobre Ascenso Ferreira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ascenso_Ferreira
quinta-feira, janeiro 22, 2009
Olho por todo o meu passado e vejo que fui quem foi aquilo em torno meu. E não conheço quem fui no que hoje sou, admite com tristeza Fernando Pessoa.
Hoje
Hoje que a tarde é calma e o céu tranquilo,
E a noite chega sem que eu saiba bem,
Quero considerar-me e ver aquilo
Que sou, e o que sou o que é que tem.
Olho por todo o meu passado e vejo
Que fui quem foi aquilo em torno meu,
Salvo o que o vago e incógnito desejo
De ser eu mesmo de meu ser me deu.
Como a páginas já relidas, vergo
Minha atenção sobre quem fui de mim,
E nada de verdade em mim albergo
Salvo uma ânsia sem princípio ou fim.
Como alguém distraído na viagem,
Segui por dois caminhos par a par.
Fui com o mundo, parte da paisagem;
Comigo fui, sem ver nem recordar.
Chegado aqui, onde hoje estou, conheço
Que sou diverso no que informe estou.
No meu próprio caminho me atravesso.
Não conheço quem fui no que hoje sou.
Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por 'star aqui?
Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
De tempo-seres de quem sou o viver?
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
Se morresse agora, Joaquim Cardoso levaria duas boas lembranças. A visão do mar do alto da Misericórdia em Olinda e a saudade de Josefa de Tramataia.
Recordações de Tramataia
I
Eu vi nascer as luas fictícias
Que fazem surgir no espaço as curvas das marés
Garças brancas voavam sobre os altos mangues
de Tramataia.
Bandos de jandaias passavam sobre os coqueiros doidos
De Tramataia.
E havia um desejo de gente na casa de farinha e nos mocambos vazios
De Tramataia.
Todavia! Todavia!
Eu gostava de olhar as nuvens grandes, brancas e sólidas,
Eu tinha o encanto esportivo de nadar e de dormir.
II
Se eu morresse agora,
Se eu morresse precisamente
Neste momento,
Duas boas lembranças levaria:
A visão do mar do alto da Misericórdia de Olinda ao nascer do verão.
E a saudade de Josefa,
A pequena namorada do meu amigo de Tramataia.
Joaquim Cardoso
(1897-1978)
Mais sobre Joaquim Cardoso em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Cardoso
Para Rainer Maria Rilke, a dançarina espanhola é só flama, inteiramente. E em versos, ele demonstra todo o seu encantamento.
Dançarina espanhola
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.
E logo ela é só flama, inteiramente.
Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.
Então como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,
pisa-o com seu pequeno pé preciso.
Rainer Maria Rilke
(1875-1926)
Mais sobre Rainer Maria Rilke em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Rainer_Maria_Rilke
quarta-feira, janeiro 21, 2009
A noite fria, no jardim fechado, joga convites para os namorados. Mas, quanta ironia, Guimarães Rosa sofre uma grande decepção.
Ironia
A noite fria, no jardim fechado,
joga convites
para os namorados.
Um grilo sibila,
seu estribilho
de tenor sem sono.
Esses vaga-lumes,
abelhas sonâmbulas
de velinhas verdes,
vêm das corolas das estrelinhas
destilar orvalho
nos botões de jasmim.
Tudo calado
no jardim fechado...
Beija-me querida, nesta noite fria
roda de alegria...
Não queres beijar-me?...
Queres ir embora?
Perdoa...Eu pensava
que gostasses de mim...
Quanta ironia
nesta noite fria,
no escuro do jardim...
Os vaga-lumes já vão piscando,
vão apagando as lanterninhas frias...
E faz tanto frio
que o grilo franzino
já desafina
no seu flautim...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa
Para Ronald de Carvalho, a sabedoria está em fazer da realidade uma obra de beleza. E deixar as sutis discussões para os doutores de tudo.
Sabedoria
Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!
Faze da tua realidade
uma obra de beleza
Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece...
Ronald de Carvalho
(1893-1935)
Mais sobre Ronald de Carvalho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_de_Carvalho
De tanto amor, Pedro Kilkerry confessa que enlouqueceu. Pela mulher que paira em seus sonhos, é só o que ele sabe.
Essa, que paira em meus sonhos
Essa, que paira em meus sonhos,
Em meus sonhos a brilhar,
E tem nos lábios risonhos
O nácar de Iônio - Mar -
Numa fantasia estranha,
Estranhamente a sonhei
E de beleza tamanha,
Enlouqueci. É o que sei.
Ela era, em plaustro dourado
Levado de urcos azuis,
De Paros nevirrosado,
Ombros nus, os seios nus...
E que de esteiras de estrelas,
De prásio, opala e rubim!
Na praia perto, por vê-las
Vi que saltava um delfim
Que longamente as fitando
Alçou a calda, a tremer
E outros delfins, senão quando
Aparecer.
Pedro Kilkerry
(1855-1917)
Mais sobre Pedro Kilkerry em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pedro_Kilkerry
terça-feira, janeiro 20, 2009
Malditas sejas! Olavo Bilac faz questão de gritar sua dor e revolta por todo o mal que o grande amor de sua vida lhe fez.
Maldição
Se por vinte anos, nesta furna escura,
Deixei dormir a minha maldição,
- Hoje, velha e cansada da amargura,
Minha alma abrirá como um vulcão.
E em torrentes de cólera e loucura,
Sobre a tua cabeça ferverão
Vinte anos de silêncio e de tortura,
Vinte anos de agonia e solidão...
Malditas sejas pelo ideal perdido!
Pelo mal que fizeste sem querer!
Pelo amor que morreu ter nascido!
Pelas horas vividas sem prazer!
Pela tristeza do que eu tenho sido!
Pelo esplendor do que eu deixei de ser!...
Olavo Bilac
(1865-1918)
Mais sobre Olavo Bilac em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Olavo_Bilac
Em versos, Cassiano Ricardo diz que só ama a graça do imperfeito. Para ele, o perfeito quando existe tem o defeito de ser triste.
Amor imperfeito
A perfeição
é um momento,
por demais claro.
Como repeti-la,
sem enfaro?
A perfeição,
se possuída
a todo instante
se faz rainha
suicida.
Quem já mediu
o perfeito,
rosa de prata,
mas em sua
medida exata?
Nada existe
sem o defeito
que lhe dá graça.
Só amo a graça
do imperfeito.
O perfeito
quando existe
tem o defeito
de ser triste.
(Lácrima Cristi)
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo
segunda-feira, janeiro 19, 2009
Para Mario Quintana, as palavras ficam-lhe nas linhas como urubus plantados na cerca. E pergunta, onde a cantiga tão doce que o meu amor cantava?
Canção do poeta difícil
A minha pena é ásp'ra; a folha, que nem zinco!
Onde a cantiga tão doce
Que o meu amor cantava?
As palavras ficam-me nas linhas como urubus
plantados na cerca.
Quando eu era um passarinho
Morava numa gaiola
Que eu pensava que era um ninho...
Mas até onde, até onde eu vou puxar esta carreta?!
Quando eu era pequnino
Não usava ponto-e-vírgula...
Onde o arroio tão puro
Que de tão puro sumiu?
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
Thiago de Mello escreve para dizer simplesmente que já basta. Seu sonho é quedar com quem mal e bem lhe quer, é demais felicidade.
Já basta
Escrevo para dizer
simplemente que já basta.
Basta de tanto milagre.
Basta de tudo o que a vida
inventou só pra me dar
com sua mão estrelada,
e continua a inventar
sem que eu lhe peça nem sonhe,
mas desponta a madrugada.
Basta da brisa chegando
bem cedinho, me chamando
para inaugurar o dia
na luz das ancas perfeitas
que em meu dorso se aconchegam.
Basta de paz dessa garça
que não mereço, mas pousa
de perfil, cheia de graça
na beirada da manhã.
Basta, vida, da encantada
candura que a moça amiga
sem me ver diz que perdura.
Basta das águas distantes
que de exílio naveguei
e me cobriram de limos
resplandecentes.
Já basta
da imensidão da memória
que, antiga e apenas acesa
por neurônios fatigados,
deu de crescer, se mostrar,
como menina enxerida,
trazendo, peitos floridos,
milagres da mocidade.
Chega de bençãos, de afagos,
de prêmios que mal me cabem.
Todo o meu sonho é quedar
(de tão bom, sonho que sonho)
com quem mal e bem me quer,
mas gosta de ser mulher
com seu viço de menina,
colo que sabe a bonina,
onde agasalho o meu sono.
Ela dizendo o meu nome,
como se fosse palavra
de sortilégio que acende
ternuras e borboletas
dançando no corpo dela.
Não há coração que aguente,
é demais felicidade!
Força é ceder aos limites
(culpa não tenho) do tempo
que o Livro dá para a vida
de um filho de Deus.
Já basta.
Thiago de Mello
Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
Devagar, peça mais, e mais e mais. Assim é a poesia de Ana Cristina César, inquieta e complexa como sua alma.
Flores do mais
devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano da boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
Ana Cristina César
(1952-1983)
Mais sobre Ana Cristina César em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar
domingo, janeiro 18, 2009
Ninguém melhor do que Vinicius de Moraes para escrever um poema sobre todas as namoradas que já teve. Todas estão noivas e só uma casou-se.
Todas as namoradas que eu já tive
Todas as namoradas que eu já tive
Estão noivas
Uma só dentre todas não está noiva
Casou-se.
Nenhuma se lembra mais de mim
As que tiveram meus beijos evitam meus olhos
As que tiveram minha afeição riem mal de mim
E beijam furtivamente os noivos nos cinemas e nas praias
Todas têm meus sonetos de amor
Com promessas ardentes de constâncias e fidelidade
Todas têm meu retrato
O retrato do menino risonho que eu já fui
Com todas eu gastei algumas horas do dia
E algumas horas da noite
Todas estão noivíssimas
E são apenas meninas sem juízo fazendo o que querem
Dando aos namorados anteriores a satisfação social do noivado
E exibindo o noivo bonito aos olhos das moças sem namorado.
Algumas eu amei sinceramente
Sem grandes palavras mas com olhares francos
Olhares que eu estudava nos bondes com outras
Para fazê-los ainda mais verdadeiros
Com outras me diverti
Passeando horas e horas braço com braço
Com palavras grandes e pequenos olhares
A todas eu feri inconscientemente
As que eu beijei e as que eu não beijei
As que eu beijei porque um dia não quis beijar
As que eu não beijei porque um dia quis beijar.
Vi-as fugirem todas de mim
E me vi fugindo de todas elas
Vejo-as agora aqui e ali ontem e hoje
A casada, com um filho
As noivas, com brilhos maternais nos olhos
Futuros infelizes para o mundo
Vejo-me por momentos pai de família comprando brinquedos
E a satisfação de estar só é tão grande
Que no fundo eu estimo sinceramente todas essas meninas
Que estão noivas e serão muito felizes
E a que está casada e não é feliz mas faz que é
E me estimo mais, ainda, a mim próprio
Que estou só, feliz e só, com os meus amigos e com a minha boemia discreta.
Vinicius de Moraes
(1913-1090)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes
Florbela Espanca diz ao seu amor que, se mais que ela, um dia lhe quiser alguém, bendita seja essa mulher. Bendito seja o beijo dessa boca .
Oração de joelhos
Bendita seja a mãe que te gerou!
Bendito o leite que te fez crescer!
Bendito o berço aonde te embalou
A tua ama pra te adormecer!
Bendito seja o brilho do luar
Da noite em que nasceste tão suave,
Que deu essa candura ao teu olhar
E à tua voz esse gorjeio d'ave.
Benditos sejam todos que te amarem!
Os que em volta de ti ajoelharem
Numa grande paixão, fervente, louca!
E se mais que eu, um dia te quiser
Alguém, bendita seja essa mulher!
Bendito seja o beijo dessa boca!
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
Olha para estas mãos roceiras, diz Cora Coralina. Mãos de mulher que nunca encontrou nada na vida, caminheira de uma longa estrada, sempre a caminhar.
Estas mãos
Olha para estas mãos
de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras.
Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras.
Mãos que jamais calçaram luvas.
Nunca para elas o brilho dos anéis.
Minha pequenina aliança.
Um dia o chamado heróico emocionante:
- Dei Ouro para o Bem de São Paulo.
Mãos que varreram e cozinharam.
Lavaram e estenderam
roupas nos varais.
Pouparam e remendaram.
Mãos domésticas e remendonas.
Íntimas da economia,
do arroz e do feijão
da sua casa.
Do tacho de cobre.
Da panela de barro.
Da acha de lenha.
Da cinza da fornalha.
Que encestavam o velho barreleiro
e faziam sabão.
Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
ajudar, unir e abençoar.
Mãos de semeador...
Afeitas à sementeira do trabalho.
Minhas mãos raízes
procurando a terra.
Semeando sempre.
Jamais para elas
os júbilos da colheita.
Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida.
Mãos alavancas
na escava de construções inconclusas.
Mãos pequenas e curtas de mulher
que nunca encontrou nada na vida.
Caminheira de uma longa estrada.
Sempre a caminhar.
Sozinha a procurar
o ângulo prometido,
a pedra rejeitada.
Cora Coralina
(1889-1985)
Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina
sábado, janeiro 17, 2009
Em versos apaixonados, Manuel Bandeira diz que neste mundo de Deus tem visto muitas mulheres. Mas em parte alguma viu nenhuma que fosse bonita assim!
Cantiga de amor
Mulheres neste mundo de meu Deus
Tenho visto muitas - grandes, pequenas,
Ruivas, castanhas, brancas e morenas.
E amei-as, por mal dos pecados meus!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!
Andei por São Paulo e pelo Ceará
(não falo em Pernambuco, onde nasci)
Bahia, Minas, Belém do Pará...
De muito olhar de mulher já sofri!
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!
Atravessei o mar e, no estrangeiro,
Em Paris, Basiléia e nos Grisões,
Lugano, Gênova por derradeiro,
Vi mulheres de todas as nações.
Mas em parte alguma vi, ai de mim,
Nenhuma que fosse bonita assim!
Mulher bonita não falta, ai de mim!
Nenhuma porém, tão bonita assim!
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
Por maior que seja o desespero, nenhuma ausência é mais funda do que a tua. Em belo poema de amor, Sophia de Mello Breyner expõe todo seu sofrimento.
Ausência
Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner
Adélia Prado conta que o poeta cerebral tomou café sem açúcar e foi pro gabinete concentrar-se. Três horas depois, o dia arde e o prepúcio dele coça.
A formalística
O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas já que estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.
Daqui a pouco começam a fosforecer coisas no mato.
A serva de Deus sai de sua cela à noite
e caminha na estrada,
passeia porque Deus quis passear
e ela caminha.
O jovem poeta,
fedendo a suicídio e glória,
rouba de todos nós e nem assina:
'Deus é impecável'.
As rãs pulam sobressaltadas
e o pelejador não entende,
quer escrever as coisas com as palavras.
Adélia Prado
Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
sexta-feira, janeiro 16, 2009
Álvaro de Campos sente que tem a loucura exatamente na cabeça. E uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Ora
Ora até que enfim...perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exatamente na cabeça.
Meu coração estourou como uma bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...
Graças a Deus que estou doido!
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a sarapilheira para empilhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me quer fazer vomitar sem eu ter comido nada!
Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução,
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos!
Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos líricos, também já por cá se passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
A chuva de pedra assombra Menotti del Picchia. E ele vê como as roupas penduradas nos varais dançam com as pedradas, numa fila macabra de enforcados.
Chuva de pedra
quebrassem com estrondo um pedaço de gelo
para a salada de frutas do pomares...
O cafezal, numa carreira alucinada,
grimpa as lombas de ocre
apedrejada matilha de cães verdes...
fremem, gotejam eriçadas suas copas
como pêlos de um animal todo molhado.
O céu é uma pedreira cor de zinco
onde estoura dinamite dos coriscos.
Rola de fraga em fraga a lasca retumbante
de um trovão.
Os riachos
correm com seus pés invisíveis e líquidos
para o abrigo das furnas. No terreiro,
as roupas penduradas nos varais
dançam, funambulescas, com as pedradas,
numa fila macabra de enforcados!
(1892-1988)
Mais sobre Menotti del Picchia em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia
Cansado e vivendo sem esperança, José Régio pede que venha a morte quando Deus quiser. Mas, pergunta, com isto que têm as estrelas?
Sabedoria
Desde que tudo me cansa,
Comecei eu a viver.
Comecei a viver sem
esperança...
E venha a morte quando
Deus quiser.
Dantes, ou muito ou pouco,
Sempre esperara:
Às vezes, tanto, que o meu
sonho louco
Voava das estrelas à mais
rara;
Outras, tão pouco,
Que ninguém mais com tal se
conformara.
Hoje, é que nada espero.
Para quê, esperar?
Sei que já nada é meu senão
se o não tiver;
Se quero, é só enquanto
apenas quero;
Só de longe, e secreto, é
que inda posso amar...
E venha a morte quando Deus
quiser.
Mas, com isto, que têm as
estrelas?
Continuam brilhando, altas
e belas.
José Régio
(1901-1969)
Mais sobre José Régio em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_R%C3%A9gio
quinta-feira, janeiro 15, 2009
É melhor deixar que a dor se exerça, sem mentiras nem desculpas. Esta é a lição de Ferreira Gullar para quem se perdeu na alegria e foi ao fundo.
Aprendizado
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Ferreira Gullar
Mais sobre Ferreira Gullar em
Nos versos de Jorge de Lima, para não apanhar mais Maria Diamba falou que sabia fazer bolos. Virou cozinha e foi outras coisas para que tinha jeito.
Maria Diamba
Para não apanhar mais
falou que sabia fazer bolos:
virou cozinha.
Foi outras coisas para que tinha jeito.
Não falou mais:
Viram que sabia fazer tudo,
até mulecas para a Casa-Grande.
Depois falou só,
só diante da ventania
que ainda vem do Sudão;
falou que queria fugir
dos senhores e das judiarias deste mundo
para o sumidouro.
Jorge de Lima
(1893-1953)
Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima
A plenos pulmões, Mayakovsky se dirige aos caros camaradas futuros. Com sua arma favorita, a poesia revolucionária, na forma e no conteúdo.
A plenos pulmões
Primeira Introdução ao Poema
Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda fóssil
de agora,
perscrutando
estes dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim. Ora,
começará
vosso homem de ciência
afogando os porquês
num banho de sabença,
conta-se
que outrora
um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor.
Professor,
jogue fora
as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
de mim
da minha era.
Eu - incinerador,
eu - sanitarista,
a revolução
me convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia -
fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim
virgem
virgem
sombra
alfombra.
"É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim".
Este verte versos feito regador,
aquele os baba,
boca em babador, -
bonifrates encapelados,
descabelados vates -
entendê-los,
ao diabo!,
quem há-de...
Quarentena é inútil contra eles -
mandolinam por detrás das paredes:
"Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
ta-ran-ten-n-n...
Triste honra,
se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.
Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças, -
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta do meu canto.
Escutai,
camaradas futuros,
o agitador,
o cáustico caudilho,
o extintor
dos melífluos enxurros:
por cima
dos opúsculos líricos,
eu vos falo
como um vivo aos vivos.
Chego a vós,
à Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através
dos séculos em arco
sobre os poetas
e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como
ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
com labor
rompe a mole dos anos,
e assoma
a olho nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respirareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha voz;
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
nao faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
- tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
E todo
este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido.
eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha
até a última letra.
O inimigo
da colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo figadal.
Anos
de servidão e de miséria
comandavam
nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas
de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado,
em que frente.
Dialética,
não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,
quando,
sob o nosso projétil,
debandava o burguês
que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
- glória -
se arraste
após os gênios,
merencória.
Morre,
meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.
Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,
cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, -
entre nós todos, -
o comum monumento:
o socialismo,
forjado
na refrega
e no fogo.
Vindouros,
varejai vossos lexicos:
do Letes
brotam letras como lixo -
"tuberculose",
"bloqueio",
"meretrício".
Por vós,
geração de saudáveis, -
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros de tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
fossilcoleante.
Camarada vida,
vamos,
para diante,
galopemos
pelo quinquênio afora.
Os versos
para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta, -
para mim é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro
ofuscante,
sobre a malta
dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.
Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)
Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky
quarta-feira, janeiro 14, 2009
No poema de Augusto dos Anjos, o auto-retrato da psicologia de um vencido. O poeta sofre a angústia de seus distúrbios e só encontra saída na morte.
Psicologia de um vencido
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
Profundissimamente hipocondríaco,
esse ambiente me causa repugnância...
Sabe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.
Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,
Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos
Affonso Romano de Sant'Anna conhece bem as limitações do flerte e o que sempre acontece nessas situações. Por isso, diz ele, ficar olhando não basta.
Limitações do flerte
Que fim levaram aquelas
que flertamos nos bares,
esquinas e aeroportos?
Não aquelas que levamos
ao restaurante, parques
e camas, mas aquelas tocadas
num leve aceno, de longe,
corpo fluindo e morrendo
na ponte aérea do instante.
Mas por que pensar nas distantes
que nem tocamos na mão ou fronte?
Preferimos jogar com a ausente?
É essa a nossa concreta fonte?
Como se vê, não adianta, não se aprende.
A gente aqui pensando nas que flertamos
de leve, em dois minutos intensos,
entre um sorriso e o gesto frustro,
enquanto, perto, pisamos brutos
o calcanhar da que está junto,
ou pulamos na jugular
da que nos cobre de frutos,
olhando por sobre os muros,
as que ondeiam seus bustos
sobre a linha do horizonte.
- Amar com os olhos é mais fácil
e anônimo? - É mais fútil? É declarar
por telefone, apenas com um fio
de voz que enrosca os corpos e mentes,
ou melhor, numa vaga prolação, sem dormente
ou trilho que leve o trem-passageiro
ao outro corpo-estação.
Mas como é vegetativo esse amar plantado,
esgalhando o olhar furtivamente. A isso,
prefiro carnívoras plantas que se abraçam
e num sufoco se esmigalham deixando ao chão
sementes em que piso, convertendo a morte havida
em refluir de raízes.
Flertar é texto-antigo, é bordar caligrafias
quando há guerras e telegramas. Flertar é prefácio
e eu quero logo desfolhar o livro. Flertar é usar binóculos
devastando camarotes oblíquos
quando o drama está no palco
- e em nossos corpos aflitos.
Amar assim tão voyeurista, é tão perverso
como amar só por carta, com a caneta em riste e triste,
é pior que conhecer estrela só na foto,
é apenas vê-la de luneta, correr atrás de um cometa.
É chamar a fêmea sem macho
na pradaria. É cear ante um retrato
e uma cadeira vazia em frente.
Isto de amar de longe, só com os olhos,
não é sequer ir à caça. É ir à exposição
de animal de raça. É ver decoração em loja,
olhar por trás da vitrina um feriado que passa.
É coisa de telegrafista ou coisa de mau amador
de rádio, ouvindo só os ruídos
do outro lado da antena e cama.
Não é tocar de ouvido partitura desconhecida,
o músico, nisso, é o contrário, vai mais fundo
pois pega com as mãos e arpeja
a música com os dedos.
E eu tenho essa mania de amar como o invasor
pulando os muros de Roma, como o astronauta
se acolchoando na câmara, como o casulo
se entre-tecendo no claro-e-escuro,
enfim, como a gavinha da barroca parreira
crescendo a sede das vinhas.
Um amar estabanado, como a criança quebrando
o delicado brinquedo e derramando a alma
dos bichos sobre o tapete do medo.
Comigo é assim:
ficar olhando não basta. Vou logo
precipitando borrasca e estrela.
Que se cuide o olhar alheio quando
olho com o corpo inteiro, porque alojo fácil,
peço café e pijama, e fico pastando
com esse olhar de boi manso
no breve espaço da cama.
Affonso Romano de Sant'Anna
Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna
Em sua saudação a Palmares, Castro Alves reafirma o caráter social da sua poesia. E ainda faz reviver uma boa lembrança dos tempos do colégio.
Saudação a Palmares
Nos altos cerros erguido
Ninho d'águias atrevido,
Salve - País do bandido!
Salve - Pátria do jaguar!
Verde serra onde os palmares
- Como indianos cocares -
No azul dos colúmbios ares
Desfraldam-se em mole arfar!...
Salve! Região dos valentes
Onde os ecos estridentes
Mandam aos plainos trementes
Os gritos do caçador!
E ao longe os latidos soam...
E as trompas de caça atroam...
E os corvos negros revoam
Sobre o campo abrasador!...
Palmares! a ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Que no soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
E provocaste a rajada,
Solta a flâmula agitada
Aos uivos da marujada
Nas ondas da escravidão!
De bravos soberbo estádio,
Das liberdades paládio,
Pegaste o punho do gládio,
E olhaste rindo p'ra o val:
"Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fronte!"
E riste... O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!...
Cantem Eunucos devassos
Dos reis os marmóreos paços;
E beijem os férreos laços,
Que não ousam sacudir...
Eu canto a beleza tua,
Caçadora seminua!...
Em cuja perna flutua
Ruiva a pele de um tapir.
Crioula! o teu seio escuro
Nunca deste ao beijo impuro!
Luzídio, firme, duro,
Guardaste p'ra um nobre amor.
Negra Diana selvagem,
Que escutas sob a ramagem
As vozes - que traz a aragem
Do teu rijo caçador!...
Salve Amazona guerreira!
Que nas rosas da clareira,
- Aos urros da cachoeira -
Sabes bater e lutar...
Salve! - nos cerros erguido -
Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido!...
A liberdade... e o jaguar!
Castro Alves
(1847-1871)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves
terça-feira, janeiro 13, 2009
Como o motorneiro, João Cabral de Melo viaja pela estrada de Caxangá. Onde tudo passa ou já passou, o presente e o passado e o passado anterior.
O motorneiro de Caxangá
Ida
Na estrada de Caxangá
todo dia passa o sol,
fugindo de seu nascente
porque o chamam arrebol.
A estrada de Caxangá
é sua pista de aviador;
é a pista que o sol percorre
antes de levantar vôo.
A pista de Caxangá
o próprio sol a traçou,
na substância verde e branda
dos engenhos de redor.
Volta
Mas a estrada não pertence
só ao sol aviador.
É também porto de mar
do Sertão do interior.
Possui hotéis para burros,
hospitais para motor,
cemitérios para bondes,
fábricas para o suor.
Mais tudo o que deve haver
num bom porto de vapor:
armazéns, contrabandistas,
fortalezas, guarda-mor.
Ida
Na estrada de Caxangá
tudo passa ou já passou:
o presente e o passado
e o passado anterior;
os engenhos de outros tempos,
de que só nome ficou;
os sítios de casas mansas,
que agonizam sem rancor;
os quintais de sombra doce
com frutas do mesmo teor,
onde hoje carrocerias
aguardam seus urubus.
Volta
Mas na estrada de Caxangá
nada de vez já passou:
o verde das canas sobra
nos campos de futebol
e ainda nas oficinas
poças do antigo frescor
dos quintais sobram nas úmidas
manchas de óleo de motor:
que a estrada é também a cauda
por onde, ainda em vigor,
o Recife arrasta as coisas
que do centro eliminou.
Ida
Na estrada de Caxangá,
depois que a inaugura o sol,
pares os mais estranhos
todo o dia passam por;
pares como o da raposa
casada com o rouxinol
ou o dos bondes circulando
por entre carros de boi;
caminhões entre galinhas
calam ferralha e furor
e sempre se vê um vaqueiro
olhando um taco de golf.
Volta
Mas na estrada de Caxangá
nem tudo tem tal teor;
por ela passa também
uma gente mais sem cor:
retirantes (sempre a pé)
tirados de todo suor;
imigrantes (de automóvel)
suando, porém de calor;
namorados que passeiam
amadurecendo o amor;
gente que não a passeia,
passa-a, simples corredor,
Ida
A estrada de Caxangá
é também trilhos do sol
(que nem sempre tem o sol)
urgências de aviador):
de cada lado dos quais
um trem de taipa parou,
um trem de casas que lembram
vagões, sem tirar nem pôr;
um trem de casas-vagões
cada um com sua cor
e levando nas janelas
latas por jarros de flor.
Volta
Mas o trem de casas-vagões
passa ou é passado por?
como poder distinguir
do passado o passador?
se na estrada tudo passa
e nada de vez passou?
como saber se é a gente
ou as casas-trem o andador?
ou quem sabe? a própria estrada
rolando com um propulsor?
(pois dela sobe incessante
e subterrâneo rumor).
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto
Para Mário de Andrade, ela era mesmo bonita, muito moça. E com duas alianças no dedo, os homens se aproximaram ainda mais.
Viuvita
Ela era mesmo bonita, muito moça
Esperando autobonde sozinha na esquina.
Todos os homens a encaravam sem respeito, desejando.
Vai, pra se livrar de tanta amolação
Ela fez esse gesto de moça que arranca chapéu,
Só pra mostrar a defesa que tinha no dedo, uma aliança.
A moça esqueceu que tinha duas alianças no dedo...
Por causa disso os homens se aproximaram mais.
Mário de Andrade
(1893-1945)
Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade
Cala, poesia, diz um sofrido Dante Milano diante dos horrores da guerra. Ele compreende que a dor dos homens não pode se exprimir em nenhuma língua.
Vozes abafadas
O ruído vem de longe e quase não se escuta.
Passa no ar ou ruge dentro de nossos ouvidos?
Vem do centro da terra ou do terror das consciências?
São crianças chorando com medo da vida?
Soluços de mães que ignoram as causas?
Gritos alucinados de homens caídos sob as rodas do carro terrível?
São os últimos brados das pátrias esfaceladas,
Os uivos dos vento nas bandeiras das nações vencidas,
Ou no ventre do caos os vagidos do mundo futuro?
Cala, poesia,
A dor do homem não se pode exprimir em nenhuma língua.
Talvez a exprimisse o ai da cabeça separada do corpo que rola ensanguentada,
Talvez a escrevesse a mão hirta que no último gesto de horror largou a espada,
Talvez a disesse o grito sufocado, o pranto que salta, o suor frio, o olhar esbugalhado...
Ante o ricto dos mortos compreendo que a dor não se exprime
Em língua nenhuma e ainda que os homens falassem uma só língua.
Dante Milano
(1889-1991)
Mais sobre Dante Milano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano
segunda-feira, janeiro 12, 2009
Por causa do Soviete, seu Naum largou de Odessa e abriu vendinha em Botafogo. No fim de um ano, é tão brasileiro que inda é capaz de chegar a senador.
Família russa no Brasil
O Soviete deu nisto,
seu Naum largou de Odessa numa chispada,
abriu vendinha em Botafogo,
logo no bairro chique.
Veio com a mulher e duas filhas,
uma delas é boa posta de carne,
a outra é garotinha mas já promete.
No fim de um ano seu Naum progrediu,
já sabe que tem Rui Barbosa, Mangue, Lampião.
Joga no bicho todo o dia, está ajuntando pro carnaval,
depois do almoço anda às turras com a mulher.
As filhas dele instalaram-se na vida nacional.
Sabem dançar o maxixe
conversam com os sargentos em tom brasileiro.
Chega de tarde a aguardente acabou,
os fregueses somem, seu Naum cai na moleza.
Nos sábados todo janota ele vai pro criouléu.
Seu Naum inda é capaz de chegar a senador.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
Para Paulo Mendes Campos, nada existe mais abstrato do que o poema concreto. Mas depois de chamar a Jônia, ele viu como dói viver em Babilônia.
Do tresloucado
- E nada existe mais abstrato do que o poema concreto.
Na solitude entrei em meu lugar.
As velas acendi. Tomei vanádio.
Os dentes areei. Liguei o rádio.
Eu vinha do festim de Baltasar.
Anunciava o locutor: "No Estádio
Nabucodonosor vai terminar
a luta, patrocínio de Paládio."
As ninfas já não pintam no meu lar.
Desliguei, desligado, o aparelho.
Em mim, no céu, fundia-se o sol-posto.
Doíam-me a coluna e o joelho.
Para tomar mais um, chamei a Jônia,
meiga mestiça, que m'o pôs a gosto.
Vê como dói viver em Babilônia.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
Eugénio de Andrade é mestre não só na poesia, mas também na arte de navegar. E quando se faz água no peito da sua amada, a mão dele se faz marinheiro.
Arte de navegar
Vê como o verão
subitamente
se faz água no teu peito,
e a noite se faz barco,
e minha mão marinheiro.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
domingo, janeiro 11, 2009
Para Alberto Caeiro, a Guerra é o tipo perfeito de erro de filosofia. A guerra inflige a morte, e a morte é o desprezo do Universo por nós.
A guerra
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,
É o tipo perfeito do erro da filosofia.
A guerra, como tudo humano, quer alterar.
Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muito
E alterar depressa.
Mas a guerra inflige a morte.
E a morte é o desprezo do Universo por nós.
Tendo por consequência a morte, a guerra prova que é falsa.
Sendo falsa, prova que é falso todo o querer-alterar.
Deixemos o universo exterior, e os outros homens onde a Natureza os pôs.
Tudo é orgulho e inconsciência.
Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.
Para o coração e o comandante dos esquadrões
Regressa aos bocados o universo exterior.
A química direta da Natureza
Não deixa lugar vago para o pensamento.
A humanidade é uma revolta de escravos.
A humanidade é um governo usurpado pelo povo.
Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.
Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!
Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem!
Paz à essência inteiramente exterior do Universo!
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
Em seu gazel, Carlos Nejar diz à amada que não quer a maçã branca, quer a outra que ela lhe dá. É que quando ela se avezinha, todo o seu corpo é maçã.
Gazel do teu paraíso
Não quero esta maça branca,
quero a outra que me dás.
Não quero a maça da sombra
que apenas na sombra jaz.
A intemporã, colhida
com orvalho em cima da paz.
A perto das madressilvas
e de tão apetecida,
é cada vez mais veraz.
A maça de cotovia
de tua fala, a maçã
das pernas mansas e esguias
e a do sexo, talismã
de outra maçã sombria
no paraíso do chão.
Quando, amada, te avezinha,
todo o teu corpo é maçã.
Os seios, maçãs cativas
e os pés selvagens, as mãos
que alongas, a casca fina
das celestes estações.
E quando a maçã se inclina,
o inverno se faz verão.
E se adormeces, menina,
o sonho é maçã. Depois
pelo caroço do tempo
a morte se recompôs,
mas não há morte junto ao pêlo
de maçãs. Nunca mais veio
a morte quando te amo,
se em morte me precavenho
de maçãs pelos teus ramos.
Carlos Nejar
Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar
Ela passa em frente aos olhos de Mário de Sá-Carneiro, toda negra de crepes lutuosos. Ele diz que nunca foi poeta, mas começa a meditar uns versos.
Simplesmente...
Em frente dos meus olhos, ela passa
Toda negra de crepes lutuosos
Os seus passos são leves, vigorosos;
No seu perfil há distinção, há raça.
Paris. Inverno e sol. Tarde gentil.
Crianças chilreantes deslizando...
Eu perco o meu olhar de quando em quando,
Olhando o azul, sorvendo o ar de abril.
...Agora sigo a sua silhueta
Até desapar'cer no boulevard,
E eu que não sou nem nunca fui poeta,
Estes versos começo a meditar.
Perfil perdido...Imaginariamente,
Vou conhecendo a sua vida inteira.
Sei que é honesta, sã, trabalhadeira,
E que o pai lhe morreu recentemente.
(Ah! como nesse instante a invejei,
Olhando a minha vida deplorável -
A ela, que era enérgica e prestável,
Eu, que até hoje nunca trabalhei!...)
A dor foi muito, muito grande. Entanto
Ela e a mãe souberam resistir.
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
sábado, janeiro 10, 2009
Drummond faz uma viagem poética por Europa, França e Bahia. Mas seus olhos brasileiros se enjoam da Europa e sua boca procura a "Canção do exílio".
Europa, França e Bahia
Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cais bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.
O pulo da Mancha num segundo.
Meus olhos espiam olhos ingleses vigilantes nas docas.
Tarifas bancos fábricas trustes craques.
Milhões de dorsos agachados em colônias longínquas formam um tapete
para Sua Graciosa Majestade Britânica pisar.
E a lua de Londres como um remorso.
Submarinos inúteis retalham mares vencidos.
O navio alemão cauteloso exporta dolicocéfalos arruinados.
Hamburgo, embigo do mundo.
Homens de cabeça rachada cismam em rachar a cabeça dos outros
dentro de alguns anos.
A Itália explora conscientemente vulcões apagados,
vulcões que nunca estiveram acesos
a não ser na cabeça de Mussolini.
E a Suiça cândida se oferece
numa coleção de postais de altitudes altíssimas.
Meus olhos brasileiros se enjoam da Europa.
Não há mais Turquia.
O impossível dos serralhos esfacela erotismos prestes a declanchar.
Mas a Rússia tem as cores da vida.
A Rússia é vermelha e branca.
Sujeitos com um brilho esquisito nos olhos criam o filme bolchevista
e no túmulo de Lenin em Moscou parece que um coração enorme
está batendo, batendo mas não bate igual ao da gente...
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a "Canção do exílio".
Como era mesmo a "Canção do exílio"?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
Brecht gostaria de oferecer ao seu filho uma juventude em que ele fosse brincar no bosque com os companheiros. Um poema que poderia ser de hoje.
Mau tempo para a juventude
Em vez de brincar no bosque com os companheiros
Meu filho se debruça sobre os livros
E lê de preferência
Sobre as negociatas dos financistas
E as carnificinas dos generais.
Quando lê que nossas leis
Proíbem aos pobres e aos ricos
Dormir sob as pontes
Ouço sua risada divertida.
Quando descobre que o autor de um livro foi subornado
Ilumina-se seu rosto jovem. Eu aprovo isso
Mas gostaria de poder lhe oferecer
Uma juventude em que ele
Fosse brincar no bosque com os companheiros.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
Guilherme de Almeida diz à hóspede que não precisa bater quando chegar. E que não olhe para trás quando tomar o caminho que desce, caminha e esquece.
A hóspede
Não precisas bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram à relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colméia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha - e esquece.
Guilherme de Almeida
(1890-1969)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida
sexta-feira, janeiro 09, 2009
Vinicius de Moraes diz que as muito feias que o perdoem, mas beleza é fundamental. Um verso muito conhecido de um poema que poucos leram.
Receita de mulher
As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental. É preciso
Que haja qualquer coisa de flor em tudo isso
Qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture
Em tudo isso (ou então
Que a mulher se socialize elegantemente em azul, como na República
Popular Chinesa).
Não há meio-termo possível. É preciso
Que tudo isso seja belo. É preciso que súbito
Tenha-se a impressão de ver uma garça apenas pousada e que um rosto
Adquira de vez em quando essa cor só encontrável no terceiro minuto da
aurora.
É preciso que tudo isso seja sem ser, mas que se reflita e desabroche
No olhar dos homens. É preciso, é absolutamente preciso
Que seja tudo belo e inesperado. É preciso que umas pálpebras cerradas
Lembrem um verso de Éluard e que se acaricie nuns braços
Alguma coisa além da carne: que se os toque
Com o âmbar de uma tarde. Ah, deixai-me dizer-vos
Que é preciso que a mulher que ali está como a corola ante o pássaro
Seja bela ou tenha pelo menos um rosto que lembre um templo e
Seja leve como um rosto de nuvem: mas que seja uma nuvem
Com olhos e nádegas. Nádegas é importantíssimo. Olhos, então,
Nem se fala, que olhem com certa maldade inocente. Uma boca
Fresca (nunca úmida) é também de extrema pertinência.
É preciso que as extremidades sejam magras; que uns ossos
Despontem, sobretudo a rótula no cruzar as pernas, e as pontas pélvicas
No enlaçar de uma cintura semovente.
Gravíssimo é porém o problema das saboneteiras: uma mulher sem
saboneteiras
É como um rio sem pontes. Indispensável
Que haja uma espécie de barriguinha, e em seguida
A mulher se alteia em cálice, e que seus seios
Sejam uma expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca
E possam iluminar o escuro com uma capacidade mínima de cinco velas.
Sobremodo pertinaz é estarem a caveira e a coluna cervical
Levemente à mostra; e que exista uma grande latifúndio dorsal!
Os membros que terminem como hastes, mas bem haja um certo volume
de coxas.
E que elas sejam lisas, lisas como a pétala e cobertas de suavíssima
penugem
No entanto sensível à carícia em sentido contrário
É aconselhável na axila uma doce relva com aroma próprio
Apenas sensível (um mínimo de produtos farmacêuticos!)
Preferíveis sem duvida os pescoços longos
De forma que a cabeça dê por vezes a impressão
De nada ter a ver com o corpo, e a mulher não lembre
Flores sem mistério. Pés e mãos devem conter elementos góticos
Discretos. A pele deve ser fresca nas mãos, nos braços, no dorso e na
face
Mas que as concovidades e reentrâncias tenham uma tempestade nunca
inferior
A 37º centígrados, podendo eventualmente provocar queimaduras
Do primeiro grau. Os olhos, que sejam de preferência grandes
E de rotação pelo menos tão lenta quanto a da terra; e
Que se coloquem sempre para lá de um invisível muro de paixão
Que é preciso ultrapassar. Que a mulher seja em princípio alta
Ou, caso baixa, que tenha a atitude mental dos altos píncaros.
Ah, que mulher dê sempre a impressão de que se se fechar os olhos
Ao abrí-los ela não mais estará presente
Com seu sorriso e suas tramas. Que ela surja, não venha; parta, não vá
E que possua uma certa capacidade de emudecer subitamente e nos
fazer beber
O fel da dúvida. Oh, sobretudo
que ela não perca nunca, não importa em que mundo
Não importa em que circunstâncias, a sua infinita volubilidade
De pássaro; e que acariciada no fundo de si mesma
Transforme-se em fera sem perder sua graça de ave; e que exale sempre
O impossível perfume; e destile sempre
O embriagante mel; e cante sempre o inaudível canto
Da sua combustão; e não deixe nunca de ser a eterna dançarina
Do efêmero; e em sua incalculável imperfeição
Constitua a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes
Paulo Leminski diz que os livros sabem de cor milhares de poemas, sabem de tudo. Só não sabem que, no fundo, ler não passa de uma lenda.
M, de memória
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
Um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
Um poeta estava do outro lado do mar. E seus poemas caminharam com Sophia de Mello Breyner nos passeados campos de sua juventude.
Manuel Bandeira
Este poeta está
Do outro lado do mar
Mas reconheço a sua voz há muitos anos
E digo ao silêncio os seus versos devagar
Relembrando
O antigo jovem tempo tempo quando
Pelos sombrios corredores da casa antiga
Nas solenes penumbras do silêncio
Eu recitava
"As três mulheres do sabonete Araxá"
E minha avó se espantava
Manuel Bandeira era o maior espanto da minha avó
Quando em manhãs intactas e perdidas
No quarto já então pleno de futura
Saudade
Eu lia
A canção do "Trem de ferro"
E o "Poema do beco"
Tempo antigo lembrança demorada
Quando deixei uma tesoura esquecida nos ramos da cerejeira
Quando
Me sentava nos bancos pintados de fresco
E no Junho inquieto e transparente
As três mulheres do sabonete Araxá
Me acompanhavam
Tão visíveis
Que um elétrico amarelo as decepava
Estes poemas caminharam comigo e com a brisa
Nos passeados campos da minha juventude
Estes poemas poisaram a sua mão sobre o meu ombro
E foram parte do tempo respirado
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner
quinta-feira, janeiro 08, 2009
Para Ricardo Reis, cada um cumpre o destino que lhe cumpre e deseja o destino que deseja. Nem cumpre o que deseja, nem deseja o que cumpre.
Cada um
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos,
Nada mais nos é dado.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
Carlos Pena diz que não falará de coisas, mas de inventos e buscas no esquisito. E que chegará à cor do grito, a música das cores e do vento.
Soneto das definições
Não falarei de coisas, mas de inventos
e de pacientes buscas no esquisito.
Em breve, chegarei à cor do grito,
à música das cores e do vento.
Mutiplicar-me-ei em mil cinzentos
(desta maneira, lúcido, me evito)
e a estes pés cansados de granito
saberei transformar em cataventos.
Daí, o meu desprezo a jogos claros
e nunca comparados ou medidos
como estes meus, ilógicos mais raros.
Daí também, a enorme divergência
entre os dias e os jogos, divertidos
e feitos de beleza e improcedência.
Carlos Pena Filho
(1929-1960)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Pena_Filho
No poema de António Gedeão, por detrás de cada flor há um homem de chapéu de coco e sobrolho carregado. Não à frente ou ao lado, por detrás da flor.
Poema da flor proibida
Por detrás de cada flor
há um homem de chapéu de coco e sobrolho carregado.
Podia estar à frente ou estar ao lado,
mas não, está colocado
exactamente por detrás da flor.
Também não está escondido nem dissimulado,
está dignamente especado
por detrás da flor.
Abro as narinas para respirar
o perfume da flor,
não de repente
(é claro) mas devagar,
a pouco e pouco,
com os olhos postos no chapéu de coco.
Ele ama-me. Defende-me com os seus carinhos,
protege-me com o seu amor.
Ele sabe que a flor pode ter espinhos,
ou tem mesmo,
ou já teve,
ou pode vir a ter,
e fica triste se me vê sofrer.
Transmito um pensamento à flor
sem mover a cabeça e sem a olhar.
De repente,
como um cão cínico arreganho o dente
e engulo-a sem mastigar.
António Gedeão
(1906-1997)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho
quarta-feira, janeiro 07, 2009
Para Manuel Bandeira, o amor é chama e, depois, fumaça. Depois, o fumo vem, a chama passa...
Chama e fumo
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Medita no que vais fazer:
O fumo vem, a chama passa...
Gozo cruel, ventura escassa,
Dono do meu e do teu ser,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Tanto ele queima! e, por desgraça,
Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...
Paixão puríssima ou devassa,
Triste ou feliz, pena ou prazer,
Amor - chama, e, depois, fumaça...
A cada par que a aurora enlaça,
Como é pungente o entardecer!
O fumo vem, a chama passa...
Antes, todo ele é gosto e graça.
Amor, fogueira linda a arder!
Amor - chama, e, depois, fumaça...
Portanto, mal se satisfaça
(Como te poderei dizer?...)
O fumo vem, a chama passa...
A chama queima. O fumo embaça.
Tão triste que é! Mas...tem de ser...
Amor?...- chama, e, depois, fumaça:
O fumo vem, a chama passa.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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Nos versos de amor de Augusto Frederico Schmidt, há um grande momento. É quando os olhos dele conseguem entrar pela noite fresca dos olhos da amada.
O grande momento
A varanda era batida pelos ventos do mar
As árvores tinham flores que desciam para a
morte, com a lentidão das lágrimas.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as
asas cansadas e brancas se despedindo,
O tempo fugia com uma doçura jamais de
novo experimentada
Mas o grande momento era quando os meus
olhos conseguiam
entrar pela noite fresca dos seus olhos...
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
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Em sua invocação, Maria Teresa Horta expõe-se por inteiro. Mais do que pedir, ela se dá toda ao seu amor.
Invocação ao amor
Pedir-te a sensação
a água
o travo
aquele odor antigo
de uma parede
branca
Pedir-te da vertigem
a certeza
que tens nos olhos quando
me desejas
Pedir-te sobre a mão
a boca inchada
um rasto de saliva
na garganta
pedir-te que me dispas
e me deites
de borco e os meus seios
na tua cara
Pedir-te que me olhes e me aceites
me percorras
me invadas
me pressintas
Pedir-te que me peças
que te queira
no separar das horas
sobre a língua
Meu ciúme
meu perfil
minha fome
meu sossego
minha paz
minha aventura
Meu sabor
minha avidez
saciedade
minha noite
minha angústia
meu costume
Maria Teresa Horta
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta
terça-feira, janeiro 06, 2009
Para Mario Quintana, era a flor da morte e era uma canção tão linda que só se poderia ler dançando. E que nada dizia, em sua graça ingênua.
A Canção
Era a flor da morte
E era uma canção...
Tão linda que só se poderia ler dançando
E que nada dizia
Em sua graça ingênua
Dos subterrâneos êxtases e horrores em que estavam
mergulhadas as suas raízes...
Mas estava fragilmente pintada sobre o véu do silêncio
Onde a morta jazia com os seus cabelos esparsos
Com os seus dedos sem anéis
Com os seus lábios imóveis
E que talvez houvessem desaprendido para sempre até
as sílabas com que outrora
pronunciavam meu nome...
Onde a morta jazia, na sua misteriosa ingratidão!
Era uma pobre canção,
Ingênua e frágil,
Que nada dizia...
Mario Quintana
(1906-1996)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
Para Manoel de Barros, os poetas têm na cabeça parafusos trocados e não de a menos. E é essa troca que provoca uma disfunção lírica nos poetas.
A disfunção
Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos.
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.
1 - Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 - Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre palavras.
5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de uma pedra.
7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.
Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.
Manoel de Barros
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
De Hilda Hilst & Zeca Baleiro, na voz de Olívia Byington, "Ode Descontínua e Remota, para Flauta e Oboé, de Ariana para Dionísio, Canção VIII".
Link para download do poema no canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/5135443-477
Canção VIII
Se Clódia desprezou Catulo
E teve Rufus, Quintius, Gelius,
Inacius e Ravidus
Tu podes muito bem, Dionísio,
Ter mais cinco mulheres
E desprezar Ariana
Que é centelha e âncora
E refrescar tuas noites
Com teus amores breves.
Ariana e Catulo, luxuriantes
Pretendem eternidade, e a coisa breve
A alma dos poetas não inflama.
Nem é justo, Dionísio, pedires ao poeta
Que seja sempre terra o que é celeste
E que terrestre não seja o que é só terra.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst
segunda-feira, janeiro 05, 2009
Cecília Meireles confessa que já nasceu desiludida, mas empresta ao mundo outra aparência e às palavras outra pronúncia. Ela nasceu para a Renúncia.
Beatitude
Corta-me o espírito de chagas!
Põe-me aflições em toda a vida:
Não me ouvirás queixas nem pragas...
Eu já nasci desiludida,
De alma votada ao sofrimento
E com renúncias de suicida...
Sobre o meu grande desalento,
Tudo, mais tudo, passa breve,
Breve, alto e longe como o vento...
Tudo, mais tudo, passa leve,
Numa sombra muito fugace,
- Sombra de neve sobre neve...-
Não deixando na minha face
Nem mais surpresas nem mais sustos:
- É como, até, se não passasse...
Todos os fins são bons e justos...
Alma desfeita, corpo exausto,
Olho as coisas de olhos augustos...
Dou-lhes nimbos irreais de fausto,
Numa grande benevolência
De quem nasceu para o holocausto!
Empresto ao mundo outra aparência
E às palavras outra pronúncia,
Na suprema benevolência
De quem nasceu para a Renúncia!...
Cecília Meireles
(1901-1964)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
Em belo poema, Miguel Torga diz que a Terra é sua aliada na criação, sua mulher, seu amor. Pela beleza que não sabe a pão, mas ao gosto da vida.
A terra
Também eu quero abrir-te e semear
Um grão de poesia no teu seio!
Anda tudo a lavrar,
Tudo a enterrar centeio,
E são horas de eu pôr a germinar
A semente dos versos que granjeio.
Na seara madura de amanhã
Sem fronteiras nem dono,
Há de existir a praga da milhã,
A volúpia do sono
Da papoula vermelha e temporã,
E o alegre abandono
De uma cigarra vã.
Mas das asas que agite,
O poema que cante
Será graça e limite
Do pendão que levante
A fé que a tua força ressuscite!
Casou-nos Deus, o mito!
E cada imagem que me vem
É um gomo teu, ou um grito
Que eu apenas repito
Na melodia que o poema tem.
Terra, minha aliada
Na criação!
Seja fecunda a vessada,
Seja à tona do chão,
Nada fecundas, nada,
Que eu não fermente também de inspiração!
E por isso te rasgo de magia
E te lanço nos braços a colheita
Que hás de parir depois...
Poesia desfeita,
Fruto maduro de nós dois.
Terra, minha mulher!
Um amor é o aceno,
Outro a quentura que se quer
Dentro dum corpo nu, moreno!
A charrua das leivas não concebe
Uma bolota que não dê carvalhos;
A minha, planta orvalhos...
Água que a manhã bebe
No pudor dos atalhos.
Terra, minha canção!
Ode de pólo a pólo erguida
Pela beleza que não sabe a pão
Mas ao gosto da vida!