segunda-feira, janeiro 05, 2009

Cecília Meireles confessa que já nasceu desiludida, mas empresta ao mundo outra aparência e às palavras outra pronúncia. Ela nasceu para a Renúncia.


Beatitude


Corta-me o espírito de chagas!
Põe-me aflições em toda a vida:
Não me ouvirás queixas nem pragas...

Eu já nasci desiludida,
De alma votada ao sofrimento
E com renúncias de suicida...

Sobre o meu grande desalento,
Tudo, mais tudo, passa breve,
Breve, alto e longe como o vento...

Tudo, mais tudo, passa leve,
Numa sombra muito fugace,
- Sombra de neve sobre neve...-

Não deixando na minha face
Nem mais surpresas nem mais sustos:
- É como, até, se não passasse...

Todos os fins são bons e justos...
Alma desfeita, corpo exausto,
Olho as coisas de olhos augustos...

Dou-lhes nimbos irreais de fausto,
Numa grande benevolência
De quem nasceu para o holocausto!

Empresto ao mundo outra aparência
E às palavras outra pronúncia,
Na suprema benevolência

De quem nasceu para a Renúncia!...

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

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