Volta a Pernambuco
Contemplando a maré baixa
nos mangues do Tijipió
lembro a baía de Dublin
que daqui já me lembrou.
Em meio à bacia negra
desta maré quando em cio,
eis a Albufera, Valência,
onde o Recife me surgiu.
As janelas do cais da Aurora,
olhos compridos, vadios,
incansáveis, como em Chelsea,
vêem rio substituir rio,
e essas várzeas de Tiuma
com seus estendais de cana
vêm devolver-me os trigais
de Guadalajara, Espanha.
Mas as lajes da cidade
não me devolvem só uma,
nem foi uma só cidade
que me lembrou destas ruas.
As cidades se parecem
nas pedras do calçamento
das ruas artérias regando
faces de vário cimento,
por onde iguais procissões
do trabalho, sem andor,
vão levar o seu produto
aos mercados do suor.
Todas lembravam o Recife,
este em todas se situa,
em todas em que é um crime
para o povo estar na rua,
em todas em que esse crime,
traço comum que surpreendo,
pôs nódoas de vida humana
nas pedras do pavimento.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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