sexta-feira, junho 20, 2008

Em 1952, a mexer no armário de roupas, num apartamento da rua Tenente Possolo, Ferreira Gullar vive a história do homem. E se pergunta, quem sou eu?


Quem sou eu?


Quem sou eu dentro da minha boca?
Quem sou eu nos meus dentes
detrás dos meus dentes
na língua que se move
presa no fundo da garganta? que nome tenho
na escuridão do esôfago?
no estômago
na química dos intestinos?

Quem em mim secreta
saliva? excreta
fezes?
quem embranquece em meus cabelos
e vira pus nas gengivas?
Quem sou eu
ao lado da Biblioteca Nacional
tão frágil, meu deus, na noite
sob as estrelas?
e no entanto impávido!
(a mexer no armário de roupas
num apartamento da rua Tenente Possolo
em 1952
vivo a história do homem).

J’irai sous la aterre
et toi, tu marcheras dans le soleil.


Tudo o que sobrará de mim
é papel impresso.

Com um pouco de manhã
engastado nas sílabas, é certo, mas
que é isso
em comparação com meu corpo real? meu
corpo
onde a alegria é possível
se mãos lhe tocam os pêlos
se uma boca o beija
o saliva
o chupa com dois olhos brilhantes?

E sou então
praia vento floresta
resposta sem pergunta
o eixo do corpo
na saliva dourada
giro
e giramos
com o verão que se estende por todo o hemisfério sul

Como dizer então: pouco
me importa a morte?
E sobretudo se existem as histórias em quadrinhos
e os programas de televisão
que continuarão a passar noite após noite
no recesso dos lares
numa terça-feira que antecede à quarta
numa quinta-feira que antecede à sexta
ou num sábado
ou num domingo.
Como dizer
pouco me importa?

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Um comentário:

Anônimo disse...

O poeta não sabe quem dentro dele o
arrasta para a decadência, para o declínio final. Mas sente, mesmo assim, a vida pulsando dentro dele!
A vida que não quer morrer!
Ferreira Gullar faz sempre esse percurso: o homem e seu conflito diante dessa grande contradição que é viver!