Na manhã do milênio
De que valeu o assombro indignado
e esta perseverança que me acende
em pleno dia a estrela que me guia,
seguro do meu chão e do meu sonho?
De que valeram todos os prodígios
da ciência mergulhando nas funduras
mais escuras da terra e dominar
jamais imaginadas vastidões
para encontrar a luz fossilizada?
Do que valeu meu passo peregrino
pelo tempo, meu grito solidário,
a entrega ardente, o castigo injusto,
o viver afastado do meu povo,
só porque desfraldei em plena praça
a bandeira do amor? Do que valeu
se hoje, manhã deste milênio novo,
avança, imensa e escura bem na fronte
a marca suja da miséria humana,
gravada em cinza pela indiferença
dos que pretendem donos ser da vida,
avança escura uma legião de crianças
deserdadas do amor e todavia
capazes de sorrir: maior milagre
do século perverso que findou?
De que valeram todas as palavras
que proferi na trova da esperança?
Tão pouco, talvez nada. Não consola
saber que fiz, que fiz a minha parte,
que reparti com tantos o diamante,
que olhei o sol de frente e não fugi
(nem do meu próprio medo).
De consolo não cuido. Pois valeu.
Que tudo vale a pena quando a alma
não é pequena.*
Não sei o tamanho
da minha alma. Só sei que vou varando
o fim do rio, já posso discernir
a margem que me chama. Mas obstinado
confiante sigo no poder distante
da estrela alucinante. Que destino
de estrela é o de brilhar.
E mesmo extinta
brilhante permanece sobre o mundo.
Thiago de Mello
Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
*versos de Fernando Pessoa
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