sexta-feira, janeiro 29, 2010
A manhã se deu ao povo. A manhã é geral, no belo poema de Thiago de Mello.
Notícia da manhã
Eu sei que todos a viram
e jamais a esquecerão.
Mas é possível que alguém,
dentro de noite. estivesse
profundamente dormindo.
E aos dormidos - e também
aos que estavam muito longe
e não puderam chegar,
aos que estavam perto e perto
permaneceram sem vê-la
aos moribundos nos catres
e aos cegos de coração -
a todos que não a viram
contarei desta manhã
- manhã é céu derramado
é cristal de claridão -
que reinou, de leste a oeste,
de morro a mar - na cidade.
Pois dentro desta manhã
vou caminhando. E me vou
tão feliz como a criança
que me leva a mão.
Não tenho nem faço rumo
vou no rumo da manhã,
levado pelo menino
(ele conhece caminhos
e mundos melhor do que eu).
Amorosa e transparente,
esta é a sagrada manhã
que o céu inteiro derrama
sobre os campos, sobre as casas,
sobre os homens, sobre o mar.
Sua doce claridade
já se espalhou mansamente
por sobre todas as dores.
Já levou a cidade. Agora,
vai lavando corações
(não o do menino, o meu,
que é cheio de escuridões).
Por verdadeira, a manhã
vai chamando outras manhãs
sempre radiosas que existem
(e às vezes tarde despontam
ou não despontam jamais)
dentro dos homens, das coisas:
na roupa estendida à corda,
nos navios chegando,
na torre das igrejas,
nos pregões dos peixeiros,
na serra circular dos operários,
nos olhos da moça que passa, tão bonitos!
A manhã está no chão, está nas palmeiras,
está no quintal dos subúrbios,
está nas avenidas centrais,
está nos terraços dos arranha-céus.
(Há muita, muita manhã
no menino, e um pouco em mim.)
A beleza mensageira
desta radiosa manhã
não se resguardou no céu
nem ficou apenas no espaço,
feita de sol e de vento,
sobrepairando a cidade.
Não: a manhã se deu ao povo.
A manhã é geral.
As árvores da rua,
a réstia do mar,
as janelas abertas,
o pão esquecido no degrau,
as mulheres voltando da feira,
os vestidos coloridos,
o casal de velhos rindo na calçada,
o homem que passa com cara de sono,
a provisão de hortaliças,
o negro na bicicleta,
o barulho do bonde,
os passarinhos namorando
- ah! pois todas essas coisas
que minha ternura encontra
num pedacinho de rua
dão eterno testemunho
da amada manhã que avança
e de passagem derrama
aqui uma alegria,
ali entrega uma frase
(como o dia está bonito!)
à mulher que abre a janela,
além deixa uma esperança,
mais além uma coragem,
e além, aqui e ali
pelo campo e pela serra,
aos mendigos e aos sovinas,
aos marinheiros, aos tímidos,
aos desgraçados, aos prósperos,
aos solitários, aos mansos,
às velhas virgens, às puras
e às doidivanas também,
a manhã vai derramando
uma alegria de viver,
vai derramando um perdão,
vai derramando uma vontade de cantar.
E de repente a manhã
- manhã é céu derramado,
é claridão, claridão -
foi transformando a cidade
numa praça imensa praça,
e dentro da praça o povo
o povo inteiro cantando,
dentro do povo o menino
me levando pela mão.
Thiago de Mello
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
Cesário Verde está cruel, frenético, exigente, mau humorado, sofre até com as desditas da vizinha. São as contrariedades de um poeta sem editor...
Contrariedades
Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.
Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.
Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.
Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...
O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.
Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.
A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.
Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.
Eu nunca dediquei poema às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.
Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaconne.
Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.
A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...
E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!
Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!
Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?
Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "reclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...
E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!
Cesário Verde
(1855-1886)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde
quinta-feira, janeiro 28, 2010
Manoel de Barros confessa conter vocação para não saber línguas cultas. Mas sabe a linguagem dos pássaros: é só cantar.
Línguas
Contenho vocação pra não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.
A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.
A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao
dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.
A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito
mais importante o rumor das palavras do que o sentido
que elas tenham.
Usam trinados até na dor.
Na lingua dos Guanás há sempre uma sombra do
charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.
Entendo ainda o idoma inconversível das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das
palavras.
Sei também a linguagem dos pássaros - é só cantar.
Manoel de Barros
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
É para ti que canta ou simplesmente para ninguém? Não perguntes, escuta: é para ti que canta, ensina em versos Eugénio de Andrade.
Não perguntes
De onde vem? De que fonte
ou boca
ou pedra aberta?
É para ti que canta
ou simplesmente
para ninguém?
Que juventude
te morde ainda os lábios?
Que rumor de abelhas
te sobe à garganta?
Não perguntes, escuta:
é para ti que canta.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
quarta-feira, janeiro 27, 2010
Foi-se o tempo quando, escrevendo, era preciso uma folha isenta. Nenhuma página jamais foi limpa, no entender de Leminski.
Plena pausa
Lugar onde se faz
o que já foi feito,
branco de página,
soma de todos os textos,
foi-se o tempo
quando, escrevendo,
era preciso
uma folha isenta.
Nenhuma página
jamais foi limpa.
Mesmo a mais Saara,
ártica, significa.
Nunca houve isso,
uma página em branco.
No fundo, todas gritam,
pálidas de tanto.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
Dizer o que é o amor sem o dizer, tirar um poema que te cante. Saber o que és, dizer o teu corpo, nos versos apaixonados de Nuno Júdice.
Retrato com véu
ouvir-te num breve instante,
dizer o que é amor sem o dizer,
tirar de mim um poema que te cante;
e ver passar-te por entre os dedos
o fio de luz que prende os teus olhos,
e vê-lo enrolar-se em segredos
quando a tua voz o apaga e acende;
tocar-te os lábios num fim de verso,
ver-te hesitar entre sorriso e mágoa,
perguntar se o teu rosto tem reverso,
e ter nele uma transparência de água:
é o que vejo em ti no cair de véu
em que me dás a terra que vale o céu.
Nuno Júdice
Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice
terça-feira, janeiro 26, 2010
Murilo Mendes não bebe álcool, não toma ópio nem éter. Mas é apontado na rua como o homem que é fanático por uma mulher.
Poema do fanático
Não bebo álcool, não tomo ópio nem éter,
Sou o embriagado de ti e por ti.
Mil dedos me apontam na rua:
Eis o homem que é fanático por uma mulher.
Tua ternura e tua crueldade são iguais diante de mim
Porque eu amo tudo o que vem de ti.
Amo-te na tua miséria e na tua glória
E te amaria mais ainda se sofresses muito mais.
Caíste em fogo na minha vida de rebelado.
Sou insensível ao tempo - porque tu existes.
Eu sou fanático da tua pessoa,
Da tua graça, do teu espírito, do aparelhamento da tua vida.
Eu quisera formar uma unidade contigo
E me extinguir violentamente contigo na febre da minha, da tua, da nossa poesia.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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Martins Fontes chora e o seu desespero inconsolado explode. Pela agonia de ter amado, quanto amar se pode, sem ter amado quanto amar devia.
Beijos mortos
Amemos a mulher que não ilude,
e que, ao saber que a temos enganado,
perdoa por amor e por virtude,
pelo respeito ao menos do passado.
Muitas vezes, na minha juventude,
evocando o romance de um noivado,
sinto que amei outrora quando pude,
porém mais deveria ter amado.
Choro. O remorso os nervos me sacode.
E, ao relembrar o mal que então fazia,
meu desespero inconsolado explode.
E a causa desta horrrível agonia,
é ter amado, quanto amar se pode,
sem ter amado quanto amar devia.
Martins Fontes
(1884-1937)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Martins_Fontes
segunda-feira, janeiro 25, 2010
O que será que aconteceu com o poeta???
Sonho de uma noite de coca
O Suplicante - Padre Nosso, que estás no céu santificado seja
o teu nome. Venha a nós o teu reino. Seja
feita a tua vontade, assim na terra como no
céu. O pó nosso de cada dia nos dá hoje...
O Senhor (interrompendo enternecidíssimo) - Toma lá, meu filho.
Afinal, tu és pó e em pó te converterás!
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
Nós nos amaremos livremente no dia marcado pelos deuses. Como poucos, no teu tempo, lindamente, cantou Lya para o seu amor.
Canção da estrela murmurante
Nós nos amaremos docemente,
Nesta luz, neste encanto, neste medo:
Nós nos amaremos livremente
No dia marcado pelos deuses.
Nós nos amaremos com verdade
Porque estas almas já se conheciam:
nós nos amaremos para sempre
Além da concreta realidade.
Nós nos amaremos lindamente,
nós nos amaremos como poucos.
no teu tempo.
Lya Luft
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domingo, janeiro 24, 2010
Os olhos de Drummond são pequenos para ver toda a tragédia causada pelo nazismo. Mas ele vislumbra um outro mundo que brota daqueles tempos de guerra.
Visão 1944
Meus olhos são pequenos para ver
a massa de silêncio concentrada
por sobre a onda severa, piso oceânico
esperando a passagem dos soldados.
Meus olhos são pequenos para ver
luzir na sombra a foice da invasão
e os olhos no relógio, fascinados,
ou as unhas brotando em dedos frios.
Meus olhos são pequenos para ver
o general com seu capote cinza
escolhendo no mapa uma cidade
que amanhã será pó e pus no arame.
Meus olhos são pequenos para ver
a bateria de rádio prevenindo
vultos a rastejar na praia obscura
aonde chegam pedaços de navios.
Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.
Meus olhos são pequenos para ver
o corpo pegajento das mulheres
que foram lindas, beijo cancelado
na produção de tanques e granadas.
Meus olhos são pequenos para ver
a distância da casa na Alemanha
a uma ponte na Rússia,
onde retratos, cartas, dedos de pé bóiam em sangue.
Meus olhos são pequenos para ver
uma casa sem fogo e sem janela
sem meninos em roda, sem talher,
sem cadeira, lampião, catre, assoalho.
Meus olhos são pequenos para ver
os milhares de casas invisíveis
na planície de neve onde se erguia
uma cidade, o amor e uma canção.
as fábricas tiradas do lugar,
levadas para longe, num tapete,
funcionando com fúria e com carinho.
Meus olhos são pequenos para ver
na blusa do aviador esse botão
que balança no corpo, fita o espelho
e se desfolhará no céu de outono.
Meus olhos são pequenos para ver
o deslizar do peixe sob as minas,
e sua convivência silenciosa
com os que afundam, corpos repartidos.
Meus olhos são pequenos para ver
os coqueiros rasgados e tombados
entre latas, na areia, entre formigas
incomprensivas, feias e vorazes.
Meus olhos são pequenos para ver
a fila de judeus de roupa negra,
de barba negra, prontos a seguir
para perto do muro - e o muro é branco.
Meus olhos são pequenos para ver
essa fila de carne em qualquer parte,
de querosene, sal ou de esperança
que fugiu dos mercados deste tempo.
Meus olhos são pequenos para ver
a gente do Pará e de Quebec
sem notícias dos seus e perguntando
ao sonho, aos passarinhos, às ciganas.
Meus olhos são pequenos para ver
todos os mortos, todos os feridos,
e este sinal no queixo de uma velha
que não pôde esperar a voz dos sinos.
Meus olhos são pequenos para ver
países mutilados como troncos,
proibidos de viver, mas em que a vida
lateja subterrânea e vingadora.
Meus olhos são pequenos para ver
as mãos que se hão de erguer, os gritos roucos,
os rios desatados, e os poderes
ilimitados mais que todo exército.
Meus olhos são pequenos para ver
toda essa força aguda e martelante,
a rebentar do chão e das vidraças,
ou do ar, das ruas cheias e dos becos.
Meus olhos são pequenos para ver
tudo que uma hora tem, quando madura,
tudo que cabe em ti, na tua palma,
ó povo! que no mundo te dispersas.
Meus olhos são pequenos para ver
atrás da guerra, atrás de outras derrotas,
esta imagem calada, que se aviva,
que ganha em cor, em forma e profusão.
Meus olhos são pequenos para ver
tuas sonhadas ruas, teus objetos,
e uma ordem consentida (puro canto,
vai pastoreando sonos e trabalhos).
Meus olhos são pequenos para ver
esta mensagem franca pelos mares,
entre coisas outroras envilecidas
e agora a todos, todas ofertadas.
Meus olhos são pequenos para ver
o mundo que se esvai em sujo e sangue,
outro mundo que brota, qual nelumbo
- mas vêem, pasmam, baixam deslumbrados.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
Passageiro, Cassiano Ricardo diz que o trem de ferro desloca o sentido das coisas. E com ele, viajam as palavras.
Viajam as palavras
Passageiros, formo como que um diagrama
entre o céu tremido e o jornal que a trepidação
do trem sacode
em minhas mãos.
A paisagem me vem oferecer seus buquês
roxos e cor de ouro
mas foge, arrependida.
Vistos, de longe, de passagem,
todos os rostos são amigos, são iguais.
Só que depois, em minha memória,
que estará rolando ainda esta paisagem
impressa em mim, à minha saudade
como um quadro à parede.
O possível desastre
faz cantar, como uma carretilha ao meu ouvido,
o pássaro do adeus.
O trem de ferro desloca o sentido das coisas.
Viajam as palavras.
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo
sábado, janeiro 23, 2010
Henriqueta Lisboa sente que os olhos do seu amor são mais tristes do que os dela. E tem a impressão de que que ele vai lhe dizer adeus.
Olhos tristes
Olhos mais tristes ainda do que os meus
são esses olhos com que o olhar me fitas.
Tenho a impressão que vais dizer adeus
este olhar de renúncias infinitas.
Todos os sonhos, que se fazem seus,
tomam logo a expressão de almas aflitas.
E até que, um dia, cegue à mão de Deus,
será o olhar de todas as desditas.
Assim parado a olhar-me, quase extinto,
esse olhar que, de noite, é como o luar,
vem da distância, bêbedo de absinto...
Este olhar, que me enleva e que me assombra,
vive curvado sob o meu olhar
como um cipreste sobre a própria sombra.
Henriqueta Lisboa
(1901-1985)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Henriqueta_Lisboa
sexta-feira, janeiro 22, 2010
Nos versos de João Cabral de Melo, os vazios do homem contêm nadas. Contêm apenas vazios.
Os vazios do homem
Os vazios do homem não sentem ao nada
do vazio qualquer: do do do casaco vazio,
do da saca vazia (que não ficam de pé
quando vazios, ou o homem com vazios);
os vazios do homem sentem a um cheio
de um coisa que inchasse já inchada;
ou ao que deve sentir, quando cheia,
uma saca,: todavia, não qualquer saca.
Os vazios do homem, esse vazio cheio,
não sentem ao que uma saca de tijolos,
uma saca de rebites; nem têm o pulso
que bate numa de sementes, de ovos.
2
Os vazios do homem, ainda que sintam
a uma plenitude (gora mas presença),
contém nadas, contêm apenas vazios:
o que a esponja, vazia quando plena;
incham do que a esponja, de ar vazio,
e dele copiam certamente a estrutura:
toda em grutas, ou em gotas de vazio,
postas em cachos de bolha, de não-uva.
Esse cheio vazio sente ao que uma saca
mas cheia de esponjas cheias de vazio;
os vazios do homem ou o vazio inchado:
ou o vazio que inchou por estar vazio.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto
Henrique Trindade Coelho vê a mulher rondar, erótica e franzina, por detrás do quartel as vozes dos soldados. Ao ouvir um "Quem vem lá?", ela fugiu.
Ela andou a rondar, erótica e franzina
Ela andou a rondar, erótica e franzina,
por detrás do quartel as vozes dos soldados.
Numa biqueira, ao fundo, a água leve e fina
tinha à luz do luar suspiros cadenciados.
Ondeou, requebrada, e perpassou, felina.
E de lá, na penumbra, em gestos excitados,
mostrou à sentinela a curva viperina,
viscosa e sensual dos seios desbotados.
Alongou-os depois nas mãos impacientes,
alongou-os. Na sombra, as filas dos seus dentes
davam uns arrepios à quietação da rua.
Mas houve um "Quem vem lá?". Fugiu pela viela.
Aquela hora, apenas, magra, uma cadela
vadiava também, na grande paz da lua.
Henrique Trindade Coelho
(1885-1934)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Henrique_Trindade_Coelho
quinta-feira, janeiro 21, 2010
Para Ferreira Gullar, o sofrimento não tem nenhum valor. Não acende um halo em volta de tua cabeça, não ilumina trecho nenhum de tua carne escura.
A alegria
O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).
Sofre tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o inseticida envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.
Ferreira Gullar
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
Flora Figueiredo pede desculpas pelo mau-jeito. É que ela comporta, em sua quota de defeitos, não levar junto os enganos que amou.
Atitude
Esse seu silêncio
soa como um grito,
abafado em panos.
Só faz denunciar os danos que causei.
Desculpe o mau-jeito,
mas comporto, em minha quota de defeitos,
não levar junto os enganos que eu amei.
Flora Figueiredo
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Flora_figueiredo
terça-feira, janeiro 19, 2010
Eu sei que tudo é inútil, tudo é impossível. Pelo medo de te deixar de amar, diz Cecília Meireles em versos tristes.
Poema dos desenganos
Antes eu tivesse partido
Para longe de mim...
Antes eu tivesse me refugiado
No antro dos velhos Magos...
- Porque eles me dariam a beber
O sumo da Flor-Sábia,
Da Flor-Mãe,
Que adormece,
Alivia,
Consola...
Antes eu tivesse partido
Para longe de mim...
Mas o antro dos Velhos Magos
É tão negro e tão triste...
Tive mede de me perder
Naquela treva,
De onde nunca mais
Poderia ver
Os caminhos sidéreos
Que a ti conduzem
Meus olhos...
Antes eu tivesse partido
Para longe de mim...
Mas doía-me adormecer,
Pelo medo de te deixar de amar...
No entanto,
Eu sei que tudo é inútil...
Eu sei que tudo é impossível...
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
Carlos Nejar sabe que amar é a mais alta constelação. E que aqui ficam as coisas.
Aqui ficam as coisas
Aqui ficam as coisas.
Amar é a mais alta constelação.
Os sapatos sem dono
tripulando
na correnteza-espaço
em que deitamos.
As minhas mãos telhado
no teu rosto de pombas.
Os corpos circulando
na varanda dos braços.
É a mais alta constelação.
Carlos Nejar
Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar
segunda-feira, janeiro 18, 2010
Vinicius de Moraes sente-se só como um seixo de praia. E não sabe se é o que não é.
Sinto-me só como um seixo de praia
Sinto-me só como um seixo de praia
Vivendo à busca no cristal das ondas,
Não sei se sou o que não sou. Pressinto
Que a maré vai morar no fundo d'alma.
Calo-me sempre se te escuto vindo
Marulho de incerteza e de agonia;
Há crenças deslizando nos meus traços,
Molhando a estátua do meu sonho antigo.
Declino-me nas frases dos rochedos
Nas pérolas de som do inesquecer
Na incrível sombra da montanha adulta.
E ao me curvar ao peso da memória,
Descubro meu reflexo obscuro
Num soneto de espumas inexatas.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes
À amada, Manuel Alegre quer contar longamente as perigosas coisas do mar. Contar o mar ardente e o verbo amar, e longamente as coisas perigosas.
Coisa Amar
Contar-te longamente as perigosas
coisas do mar. Contar-te o amor ardente
e as ilhas que só há no verbo amar.
Contar-te longamente longamente.
Contar-te longamente as misteriosas
maravilhas do verbo navegar.
E mar. Amar: as coisas perigosas.
Contar-te longamente que já foi
num tempo doce coisa amar. E mar.
Contar-te longamente como dói
desembarcar nas ilhas misteriosas.
Contar-te o mar ardente e o verbo amar.
E longamente as coisas perigosas.
Manuel Alegre
Mais sobre Manuel Alegre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Alegre
domingo, janeiro 17, 2010
Os três poemas que roubaram de Mario Quintana.
Três poemas que me roubaram
Lá pelas tantas menos um quarto eu suspirei num poema:
"Vontade de escrever Sagesse de Verlaine..."
Mas o que eu tenho vontade mesmo
é de haver escrito a Pedra no Meio do Caminho
a Balada & Canha, a Estrela da Manhã,
se
- ó Musa infiel,
não te houvessem possuído antes
Carlos, Augusto e Manuel!...*
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
* referência aos poetas Carlos Drummond de Andrade, Augusto Meyer e Manuel Bandeira
sábado, janeiro 16, 2010
Josette é tudo o que quiser o poema de Paulo Mendes Campos. Mas, seus olhos, calmaria de ilhas verdes, ah, são seus olhos.
Josette
Colunas do teu corpo. O real
Das coxas longas onde se implanta o ventre
Leve. O branco do seio
Dando o leite do sonho ao animal
Da noite acostumado a sofrer sede.
Teu perfil tem a linha imaginária
Das mais felizes frases literárias.
És quem tu és, és a rosa e o rosicler.
Quando caminhas vais frisando a rua
De uma eloquência clara de escultura.
És sol agora, ontem na praia foste a lua.
És tudo o que quiser o meu poema,
Mas não és o orvalho que roreja nem és pura.
Possuis a elegância de uma ave
De pés espapaçados (as mais belas)
E tens do mar o frescor suave e a voz tão grave.
Como a vaga empinada que se espraia
Abres equestres movimentos no vento. Teus cabelos
São as últimas lembranças lúcidas que me restam.
Calmaria de ilhas verdes, teus olhos,
Ah,
São teus olhos.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
sexta-feira, janeiro 15, 2010
Este livro é de mágoas. Desgraçados que no mundo passais, chorai ao lê-lo, grita toda a sua dor Florbela Espanca.
Este livro...
Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, sentí-lo... e compreendê-lo.
Este livro é pra vós, Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia de tristes... Ó Desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!
Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Névoas... e Saudades!
Vai pelo mundo... (Trouxw-o no meu seio...)
Irmãos na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!...
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
É tua vida a minha própria vida, diz Abgar Renault ao seu amor. Em seus versos de encantamento, ela é como um sonho que nunca se sonhassse.
Encantamento
Ante o deslumbramento do teu vulto
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em lua a treva em que me oculto.
Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza,
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.
É tua vida a minha própria vida,
e trago em mim tua alma adormecida...
Mas, num mistério surdo que me assombra,
Tu és, às minhas mãos, fluida, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...
Abgar Renault
(1901-1995)
Mais sobre Abgar Renault em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault
quinta-feira, janeiro 14, 2010
Em sua luta contra o nazismo, Brecht diz que para espoliar o povo alemão não é preciso ter um nariz diferente. Basta pertencer ao regime nazista.
O judeu, uma desgraça para o povo
Como informam os alto-falantes do regime
Em nosso país os judeus são culpados por todas as desgraças.
Sendo a liderança muito sábia
Como sempre enfatizou
As irregularidades, cada vez mais frequentes
Podem vir apenas dos judeus, cada vez em menor número.
Somente os judeus são culpados pela fome que o povo tem
Apesar de os grandes proprietários de terras se matarem de trabalhar
nos campos
E apesar dos industriais do Ruhr comerem apenas as migalhas das
mesas dos trabalhadores.
E somente o judeu pode estar por trás, quando
Falta trigo para o pão porque
Os militares tomaram tantas terras
Para suas casernas e seus locais de treinamento que
A sua extensão é igual à de uma província. Portanto
Sendo o judeu uma desgraça para o povo
Não deve ser difícil para o povo
Reconhecer um judeu. Para isso não precisa de
Registros de nascimento ou sinais exteriores -
Pois tudo isso pode enganar -, precisa apenas perguntar:
Este ou aquele homem é uma desgraça para nós? Então
É um judeu. Uma desgraça não se reconhece pelo nariz, mas pelo fato
De nos prejudicar. A desgraça não são os narizes
São os atos. Não é necessário
Ter uma nariz diferente
Para espoliar o povo, é necessário apenas
Pertencer ao regime! Todos sabem
Que o regime é uma desgraça para o povo, logo
Se todas as desgraças vêm dos judeus, o regime
Só pode vir dos judeus. Mas é evidente.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
Ele é feio, sólido, leal e a sua amada, bela, frágil, assustada. Assim, Cesário Verde a quer, sempre, recatada numa existência honesta, de cristal.
A débil
Eu, que sou feio, sólido, leal,
A ti, que és bela, frágil, assustada,
Quero estimar-te, sempre, recatada
Numa existência honesta, de cristal.
Sentado à mesa dum café devasso.
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura.
Nesta Babel tão velha e corruptora,
Tive tenções de oferecer-te o braço.
E, quando socorreste um miserável,
Eu que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
"Ela aí vem!" disse eu para os demais;
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.
Via-te pela porta envidraçada;
E invejava, – talvez não o suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
Ia passando, a quatro, o patriarca.
Triste eu saí. Doía-me a cabeça.
Uma turba ruidosa, negra, espessa,
Voltava das exéquias dum monarca.
Adorável! Tu muito natural,
Seguias a pensar no teu bordado;
Avultava, num largo arborizado,
Uma estátua de rei num pedestal.
Cesário Verde
(1855-1886)
Mais sobre Cesário Verde em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verdequarta-feira, janeiro 13, 2010
Manoel de Barros não quer saber como as coisas se comportam. Quer inventar um comportamento para as coisas.
Comportamento
Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Manoel de Barros
Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
Onde começa a boca? Que fique bem claro que onde acaba a tua boca aí começa a minha, nos versos apaixonados de Mario Benedetti.
Dónde empieza la boca?
en el beso?
en el insulto?
en el mordisco?
en el grito?
en el bostezo?
en la sonrisa?
en el silbo?
en la amenaza?
en el gemido?
que te quede bien claro
donde acaba tu boca
ahí empieza la mia
Mario Benedetti
(1920-2009)
Mais sobre Mario Benedetti em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mario_Benedetti
terça-feira, janeiro 12, 2010
No poema nu de Murilo Mendes, o poeta é pobre como um sino, pobre como um gramofone de 1900. Afinal, a poesia é pobreza.
Poema nu
Amor, sinônimo de pobreza,
Amor, sinônimo de poesia.
A grande Ode antiga
Clama no deserto:
O poeta meu servo
É pobre como um sino,
Pobre como um gramofone de 1900.
A poesia é pobreza,
E o amor sobe para o espaço
Sem ajuda.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
Para Gilberto Freyre, quem sabe na madrugada do Recife o boêmio não encontrará uma iaiá de cabelos e desejos soltos? Ou uma mulata de rosa no cabelo?
Boêmio
Boêmio e até byroniano:
sair liricamente ruas afora,
ir pela beira do cais do Capibaribe
ora recitando baixinho versos à Vovó Lua
ou à Dona Lua, ora assobiando
altos trechos da Viúva Alegre ouvida cantar
por italiana opulentamente gorda no Santa Isabel
e sempre gozando o silêncio da meia-noite recifense, o ar
bom da madrugada que
dá ao Recife o seu melhor encanto.
Quem sabe se não encontrará alguma mulher bonita?
Alguma pálida iaiá de cabelos e desejos soltos?
Ou mesmo alguma moura -
encantada
na figura de uma encantadora
mulata
de rosa ou flor cheirosa no cabelo
Gilberto Freyre
(1900-1987)
Mais sobre Gilberto Freyre em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Gilberto_Freyre
segunda-feira, janeiro 11, 2010
Bem, hoje que estou só posso ver com o poder de ver do coração quanto não sou, quanto não posso ser. E quanto, se o for, serei em vão.
Bem, hoje
Bem, hoje que estou só e posso ver
Com o poder de ver do coração
Quanto não sou, quanto não posso ser,
Quanto, se o for, serei em vão.
Hoje, vou confessar, quero sentir-me
Definitivamente ser ninguém,
E de mim mesmo, altivo, demitir-me
Por não ter procedido bem.
Falhei a tudo, mas sem galhardias,
Nada fui, nada ousei e nada fiz,
Nem colhi nas urtigas dos meus dias
A flor de parecer feliz.
Mas fica sempre, porque o pobre é rico
Em qualquer cousa, se procurar bem,
A grande indiferença com que fico.
Escrevo-o para o lembrar bem.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
É impossível no mundo estarmos juntos ainda que do meu lado adormecesses. O véu que protege a vida nos separa e protege.
Intenso brilho
É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
Aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão.
.
Adélia Prado
Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
domingo, janeiro 10, 2010
Como esperei teu canto, noites e dias, necessitava tanto. Mas já não sou mais gente, não ando mais tão perto, diz Cecília Meireles em versos amargos.
Tardio canto
Canta o meu nome agreste,
cheio de espinhos
o nome que me deste,
quando andei nos teus caminhos.
Canta esse nome amargo,
hoje perdido,
no tempo largo,
sem mais nenhum sentido.
Como esperei teu canto,
noites e dias!
Necessitava tanto!
Tu não podias...
Ouço o teu grito ardente,
cigarra do deserto!
Mas já não sou mais gente...
Não ando mais tão perto...
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
sábado, janeiro 09, 2010
Em certo momento, Mário de Andrade sente que a gente escapa da vontade. E a vida, como viola desonesta, viola a morte do ardor, e se dedilha... fraca.
Momento
O mundo que se inunda claro em vultos roxos
No caos profundo em que a tristura
Tange mansinho os ventos aos mulambos.
A gente escapa da vontade.
Se sente prazeres futuros,
Chegar em casa,
Reconhecer-se em naturezas-mortas...
Oh, que pra lá da serra caxingam os dinosauros!
Em breve a noite abrirá os corpos,
As embaúbas vão se refazer...
A gente escapa da vontade.
Os seres mancham apenas a luz dos olhares,
Se sobrevoam feito músicas escuras.
E a vida, como viola desonesta,
Viola a morte do ardor, e se dedilha...
Fraca.
Mário de Andrade
(1894-1945)
Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade
sexta-feira, janeiro 08, 2010
O que é isso que soa bem longe, pergunta Mayakovsky ao seu amor. E ele mesmo responde: é o amor, o vento nas vidraças, amor meu.
Ar de noturno
das folhas mortas,
medo dos prados
cheios de orvalho.
eu vou dormir;
se não me despertas,
deixarei a teu lado meu coração frio.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
Pus em ti colares
com gemas de aurora.
Por que me abandonas
neste caminho ?
Se vais muito longe,
meu pássaro chora
e a verde vinha
não dará seu vinho.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
Nunca saberás,
esfinge de neve,
o muito que eu
haveria de te querer
essas madrugadas
quando chove
e no ramo seco
se desfaz o ninho.
O que é isso que soa
bem longe ?
Amor. O vento nas vidraças,
amor meu !
(1893-1930)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski
Vicente de Carvalho confessa estar arrebatado por um acesso de raivosa paixão desatinada. E viu que tinha para tão grande amor, bem curtas pernas...
Corrida de amor
Quando partiste, em pranto, descorada
a face, o lábio trêmulo...confesso:
arrebatou-me um verdadeiro acesso
de raivosa paixão desatinada.
Ia-se nos teus olhos, minha amada,
a luz dos meus; então, como um possesso,
quis arrojar-me atrás do trem expresso
e seguir-te correndo pela estrada...
"Nem há dificuldade que não vença
tão forte amor!" pensei. Ah! como pensa
errado o vão querer das almas ternas!
Com denodo, atirei-me sobre a linha...
Mas, ao fim de uns três passos, vi que tinha
para tão grande amor, bem curtas pernas..."
Vicente de Carvalho
(1866-1924)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vicente_de_Carvalho
quinta-feira, janeiro 07, 2010
Ao seu companheiro menino, Thiago de Mello diz para levar com ele a infância como uma rosa no coração. Porque é de infância que o mundo tem precisão.
Toada de ternura
Meu companheiro menino,
perante o azul do teu dia,
trago sagradas primícias
de um reino que vai se erguer
de claridão e alegria.
É um reino que estava perto,
de repente ficou longe:
não faz mal, vamos andando
porque lá é o nosso lugar.
Vamos remando, Leonardo,
poque é preciso chegar.
Teu remo ferindo a noite,
vai construindo a manhã.
Na proa do teu navio
chegaremos pelo mar.
Talvez cheguemos por terra,
na poeira do caminhão,
um doce rastro varando
as fomes da escuridão.
Não faz mal se vais dormindo,
porque teu sono é canção.
Vamos andando, Leonardo.
Tu vais de estrela na mão,
tu vais levando o pendão.
Tu vais plantando ternuras
na madrugada do chão.
Meu companheiro menino,
neste reino serás homem,
como o teu pai sabe ser.
Mas leva contigo a infância,
como uma rosa de flama
ardendo no coração:
porque é de infância, Leonardo,
que o mundo tem precisão.
Thiago de Mello
Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
Fonte pura, assim queria Eugénio de Andrade que fosse seu coração. Fluir na noite e no dia sem se desprender do chão.
A uma fonte
Fonte pura, fonte fria...
(Onde vais, minha canção?)
Fonte pura..., assim queria
que fosse meu coração:
fluir na noite e no dia
sem se desprender do chão.
Eugénio de Andrade
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
quarta-feira, janeiro 06, 2010
Paulo Leminski diz que poema que é bom acaba zero a zero. Afinal, seguro morreu de velho, e sozinho.
Sem budismo
acaba zero a zero.
Acaba com.
Não como eu quero.
Começa sem.
Com, digamos, certo verso,
veneno de letra,
bolero. Ou menos.
Tira daqui, bota dali,
um lugar, não caminho.
Prossegue de si.
Seguro morreu de velho,
e sozinho.
Recomeça, se puderes, sem angústia e sem pressa. E de nenhum fruto queiras só metade, és homem não te esqueças, lembra Miguel Torga em seus versos.
Recomeça...
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
(1907-1995)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga
terça-feira, janeiro 05, 2010
Aos Homens do nosso tempo, Hilda Hilst promete cantar o seu próprio amor. E Aquele, que a fez poeta e lhe prometeu compaixão, ternura e paz na Terra.
II
Poemas aos Homens do nosso tempo
Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes.
Ao teu encontro, Homem do meu tempo,
E à espera de que tu prevaleças
À rosácea de fogo, ao ódio, às guerras,
Te cantarei infinitamente à espera de que um dia te conheças
E convides o poeta e a todos esses amantes da palavra, e os outros,
Alquimistas, a se sentarem contigo à tua mesa.
As coisas serão simples e redondas, justas. Te cantarei
Minha própria rudeza e o difícil de antes,
Aparências, o amor dilacerado dos homens
Meu próprio amor que é o teu
O mistério dos rios, da terra, da semente.
Te cantarei Aquele que me fez poeta e que me prometeu
Compaixão e ternura e paz na Terra
Se ainda encontrasse em ti, o que te deu.
Hilda Hist
(1930-2004)
Mais sobre Hilda Hilst em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Hilda_Hilst
Jorge Luis Borges diz que tudo acontece pela primeira vez, mas de um modo eterno. E que quem lê suas palavras está inventando-as.
La dicha
Todo sucede por primera vez.
He visto una cosa blanca en el cielo. Me dicen que es la luna,
pero qué puedo hacer con una palabra y con una mitología.
Los árboles me dan un poco de miedo. Son tan hermosos.
Los tranquilos animales se acercan para que yo les diga su nombre.
Los libros de la biblioteca no tienen letras. Cuando los abro surgen.
Al hojear el atlas proyecto la forma de Sumatra.
El que prende un fósforo en el oscuro está inventando el fuego.
En el espejo hay otro que acecha.
El que mira el mar ve a Inglaterra.
El que profiere un verso de Liliencron ha entrado en la batalla.
He soñado a Cartago y a las legiones que desolaron a Cartago.
He soñado la espada y la balanza.
Loado sea el amor en el que no hay poseedor ni poseída, pero los dos se entregan.
Loada sea la pesadilla, que nos revela que podemos crear el infierno.
El que desciende a un río desciende al Ganges.
El que mira un reloj de arena ve la disolución de un imperio.
El que juega con un puñal presagia la muerte de César.
El que duerme es todos los hombres.
En el desierto vi la joven Esfinge que acaban de labrar.
Nada hay tan antiguo bajo el sol.
Todo sucede por primera vez, pero de un modo eterno.
El que lee mis palabras está inventándolas.
Jorge Luis Borges
segunda-feira, janeiro 04, 2010
Adélia Prado sente que está no começo do seu desespero. E só vê dois caminhos: ou vira doida ou santa.
A serenata
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
Adélia Prado
Mais sobre Adélia Prado em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
António Gedeão conscientemene escreve, e consciente, medita o seu destino. E descobre que na História Natural dos sentimentos tudo se transformou.
Poema do Futuro
medito o meu destino.
No declive do tempo os anos correm,
deslizam como a água, até que um dia
um possível leitor pega num livro
e lê,
lê displicentemente,
por mero acaso, sem saber porquê.
Lê, e sorri.
Sorri da construção do verso que destoa
no seu diferente ouvido;
sorri dos termos que o poeta usou
onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;
e sorri, quase ri, do íntimo sentido,
do latejar antigo
daquele corpo imóvel, exhumado
da vala do poema.
Na História Natural dos sentimentos
tudo se transformou.
O amor tem outras falas,
a dor outras arestas,
a esperança outros disfarces,
a raiva outros esgares.
Estendido sobre a página, exposto e descoberto,
exemplar curioso de um mundo ultrapassado,
é tudo quanto fica,
é tudo quanto resta
de um ser que entre outros seres
vagueou sobre a Terra.
António Gedeão
(1906-1997)
Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho
Mais sobre António Gedeão em
domingo, janeiro 03, 2010
Amar mulheres, várias. Amar cidades, só uma - Recife, nos versos imortais de Ledo Ivo.
Recife, poesia
Amar mulheres, várias.
Amar cidades, só uma - Recife.
E assim mesmo com as suas pontes,
e os seus rios que cantam,
e seus jardins leves como sonâmbulos
e suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau.
Amar senhoras, muitas. Cidade,
só uma, e assim mesmo com o vento amplo do Atlântico
e o sol do Nordeste entre as mãos.
Felizes os jovens poetas que recebem em seus corações
antes do amor e depois da infância
a palavra, a cidade Recife.
Felizes os poetas que podem lembrar-se eternamente
das pontes que separavam: ia-se a noite
no Capibaribe, e as águas do Beberibe
te davam, ó Madalena
o meu primeiro verso.
Corola diante do mar,
bares da arte poética,
bondes, navios, aviões.
Cidade, meus pés transportam as tuas pontes
para margens versáteis.
Igrejas nos postais, namorados nos portais.
Recife de meu pai,
Recife que me deu a poesia sem que eu pedisse nada,
cidade onde se descobre Rimbaud,
a maresia de antigamente em meus olhos abertos.
Mulheres, inúmeras. Cidade, só uma
e assim mesmo diante do mar.
Ledo Ivo
Mais sobre Ledo Ivo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos. A paz sem Vencedor e sem Vencidos, pede Sophia de Mello Breyner.
A Paz sem Vencedor e sem Vencidos
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner
sábado, janeiro 02, 2010
Ele está em tudo que Manuel Bandeira pensa, em tudo que imagina, no início das cousas e no fim do universo. No céu, no céu Ele estará.
Ubiquidade
Estás em tudo que penso,
Estás em quanto imagino:
Estás no horizonte imenso,
Estás no grão pequenino.
Estás na ovelha que pasce,
Estás no rio que corre:
Estás em tudo que nasce,
Estás em tudo que morre.
En tudo estás, nem repousas,
Ó ser tão mesmo e diverso!
(Eras no início das cousas,
Serás no fim do universo).
Estás na alma e nos sentidos.
Estás no espírito, estás
Na letra e, os tempos cumpridos.
No céu, no céu estarás.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
A Cassiano Ricardo, só resta agora esta graça triste. A de haver esperado ela adormecer primeiro.
A graça triste
Só me resta agora
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
Ouço agora o rumor
Das raízes da noite,
Também o das formigas
Imensas, numerosas,
Que estão, todas, corroendo
As rosas e as espigas.
Sou um ramo seco
Onde duas palavras
Gorjeiam. Mais nada.
E sei que já não ouves
Estas vãs palavras.
Um universo espesso
Dói em mim com raízes
De tristeza e alegria.
Mas só lhe vejo a face
Da noite e a do dia.
Não te dei o desgosto
De ter partido antes.
Não te gelei o lábio
Com o frio do meu rosto.
O destino foi sábio:
Entre a dor de quem parte
E a maior — de quem fica —
Deu-me a que, por mais longa,
Eu não quisera dar-te.
Que me importa saber
Se por trás das estrelas
haverá outros mundos
Ou se cada uma delas
É uma luz ou um charco?
O universo, em arco,
Cintila, alto e complexo.
E em meio disso tudo
E de todos os sóis,
Diurnos, ou noturnos,
Só uma coisa existe.
É esta graça triste
De te haver esperado
Adormecer primeiro.
É uma lápide negra
Sobre a qual, dia e noite,
Brilha uma chama verde.
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo
sexta-feira, janeiro 01, 2010
Drummond diz que para ganhar um ano novo que mereça este nome,você tem de fazê-lo novo. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade