sexta-feira, dezembro 23, 2011
É dia de Natal. Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade. Glória a Deus nas Alturas.
Dia de Natal
Hoje é dia de ser bom.
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças,
de falar e de ouvir com mavioso tom,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças.
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem,
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria,
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem,
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria.
Comove tanta fraternidade universal.
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos,
como se de anjos fosse,
numa toada doce,
de violas e banjos,
entoa gravemente um hino ao Criador.
E mal se extinguem os clamores plangentes,
a voz do locutor anuncia o melhor dos detergentes.
De novo a melopeia inunda a Terra e o Céu e as vozes crescem num fervor patético.
(Vossa Excelência verificou a hora exacta em que o Menino Jesus nasceu?
Não seja estúpido! Compre imediatamente um relógio de pulso antimagnético.)
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates,
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica,
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates,
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores.
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento.
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar.
Mas a maior felicidade é a da gente pequena.
Naquela véspera santa
a sua comoção é tanta, tanta, tanta,
que nem dorme serena.
Cada menino
abre um olhinho
na noite incerta
para ver se a aurora
já está desperta.
De manhãzinha
salta da cama,
corre à cozinha
mesmo em pijama.
Ah!!!!!!!!!!
Na branda macieza
da matutina luz
aguarda-o a surpresa
do Menino Jesus.
Jesus,
doce Jesus,
o mesmo que nasceu na manjedoura,
veio pôr no sapatinho
do Pedrinho
uma metralhadora.
Que alegria
reinou naquela casa em todo o santo dia!
O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
fuzilava tudo com devastadoras rajadas
e obrigava as criadas
a caírem no chão como se fossem mortas:
tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
Já está!
E fazia-as erguer para de novo matá-las.
E até mesmo a mamã e o sisudo papá
fingiam
que caíam
crivados de balas.
Dia de Confraternização Universal,
dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
É dia de Natal.
Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
Glória a Deus nas Alturas.
António Gedeão
(1906-1997)
Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho
(/code)
(code)
Marcadores:
António Gedeão
quinta-feira, dezembro 22, 2011
Para Ferreira Gullar, a vida apenas se sonha que é plena, bela ou o que for. Por mais que nela se ponha é o mesmo que nada se por.
Toada à toa
A vida, apenas se sonha
que é plena, bela ou o que for.
Por mais que nela se ponha
é o mesmo que nada por.
Pois é certo que o vivido
- na alegria ou desespero -
como o gás é consumido...
Recomeçamos de zero.
Ferreira Gullar
(1930)
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
(/code)
(code)
Marcadores:
Ferreira Gullar
quarta-feira, dezembro 21, 2011
Aconteceu de tudo, até demoliram uma mulher a sons de clarinete. E Murilo Mendes escreve para se tornar invisível, para perder a chave do abismo.
A fatalidade
Um moço azul atirou-se de um jasmineiro
Os sinos perderam a fala
A fértil sementeira de espadas
Atrai o olhar das crianças
Não existem mais dimensões
Nem cálculos possíveis
O vento caminha
A léguas da história
As rosas quebram a vidraça.
Demoliram uma mulher
A sons de clarinete.
Escrevo para me tornar invisível,
Para perder a chave do abismo.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
(/code)
(code)
Marcadores:
Murilo Mendes
terça-feira, dezembro 20, 2011
No fundo de mim estou eu e sei que não sou sem fim. E no fundo de mim sou sem fundo, reconhece Antonio Cícero.
Dilema
O que muito me confunde
é que no fundo de mim estou eu
e no fundo de mim estou eu.
No fundo
sei que não sou sem fim
e sou feito de um mundo imenso
imenso num universo
que não é feito de mim.
Mas mesmo isso é controverso
se nos versos de um poema
perverso sai o reverso.
Disperso num tal dilema
o certo é reconhecer:
no fundo de mim
sou sem fundo.
Antonio Cícero
(1945)
(1945)
Mais sobre Antonio Cícero em
(/code)
(code)
Marcadores:
Antonio Cícero
segunda-feira, dezembro 19, 2011
Mário de Sá-Carneiro quer deixar a vida, este mundo malvado. E repousar ao lado de sua amante, para ele, divina.
Quem me dera meu amor
Quem me dera, meu amor,
Contigo deixar a vida.
Que é tanta esp'rança perdida,
Que é tanta miséria e dor!
Deixar o mundo malvado
E repousar a teu lado -
Oh! minha amante divina! -
Na mesma cova esquecida,
Tendo à minha boca unida
Essa boca pequenina!...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
(/code)
(code)
Marcadores:
Mário de Sá-Carneiro
domingo, dezembro 18, 2011
Alberto Caeiro não se importa com as rimas. Para ele, raras vezes há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Não me importo
Não me importo com as rimas. Raras vezes
Há duas árvores iguais, uma ao lado da outra.
Penso e escrevo como as flores têm cor
Mas com menos perfeição no meu modo de exprimir-me
Porque me falta a simplicidade divina
De ser todo só o meu exterior
Olho e comovo-me,
Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,
E a minha poesia é natural como o levantar-se vento...
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Alberto Caeiro
sábado, dezembro 17, 2011
Responder a perguntas não respondo, perguntas impossíveis não pergunto. Assim é Cecília Meireles.
Soneto antigo
Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.
Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.
O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.
Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
(/code)
(code)
Marcadores:
Cecília Meireles
sexta-feira, dezembro 16, 2011
Eugénio de Andrade ouve falar da sua vocação mendicante. E sorri.
Oiço falar
Oiço falar da minha vocação
mendicante e sorrio. Porque não sei
se tal vocação não é apenas
uma escolha entre riquezas, como Keats
diz ser a poesia.
Desci à rua pensando nisto,
atravessei o jardim, um cão
saltava à minha frente,
louco com as folhas do outono
que principiara, e doiravam
o chão. A música,
digamos assim,
a que toda a alma aspira,
quando a alma
aspira a ter do mundo o melhor dele,
corria à minha frente, subia
por certo aos ouvidos de deus
com a ajuda de um cão,
que nem sequer me pertencia.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Eugénio de Andrade
quinta-feira, dezembro 15, 2011
Augusto Frederico Schmidt sente viver nele um mar de sombras. Mas tão rico de vida e de harmonias que dele sabe nascer a misteriosa música que se espalha em seus versos.
Mar desconhecido
Sinto viver em mim um mar ignoto,
E ouço, nas horas calmas e serenas,
As águas que murmuram, como em prece,
Estranhas orações intraduzíveis.
Ouço também, do mar desconhecido,
Nos instantes inquietos e terríveis,
Dos ventos o guaiar desesperado
E os soluços das ondas agoniadas.
Sinto viver em mim um mar de sombras,
Mas tão rico de vida e de harmonias,
Que dele sei nascer a misteriosa
Musica, que se espalha nos meus versos,
Essa música errante como os ventos,
Cujas asas no mar geram tormentas.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt
(/code)
(code)
Marcadores:
Augusto Frederico Schmidt
quarta-feira, dezembro 14, 2011
Às vezes, pequenos grandes terremotos ocorrem do lado esquerdo do peito de Affonso Romano de Sant' Anna. Mas fora, não se dão conta os desatentos.
Assombros
Às vezes, pequenos grandes terremotos
ocorrem do lado esquerdo do meu peito.
Fora, não se dão conta os desatentos.
Entre a aorta e o omoplata rolam
alquebrados sentimentos.
Entre as vértebras e as costelas
há vários esmagamentos.
Os mais íntimos
já me viram remexendo escombros.
Em mim há algo imóvel e soterrado
em permanente assombro.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)
Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna
(/code)
(code)
Marcadores:
Affonso Romano de Sant'Anna
terça-feira, dezembro 13, 2011
Não deixes portas entreabertas, escancare-as. Ou bata-as de vez, aconselha Flora Figueiredo..
Lembrete
Não deixes portas entreabertas
Escancare-as.
Ou bata-as de vez.
Pelos vãos, brechas e fendas.
Passam apenas semiventos.
Meias verdades
E muita insensatez.
Flora Figueiredo
(1951)
Mais sobre Flora Figueiredo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Flora_figueiredo
(/code)
(code)
Marcadores:
Flora Figueiredo
segunda-feira, dezembro 12, 2011
No momento cruel da despedida, Euclides da Cunha não chorou. Mas sentiu a vida das lágrimas ao peso se curvar.
Despedida
No momento cruel da despedida
Gelado o lábio, mudo, hirto, sem ar,
Eu vi sua alma, de ilusões despida,
Tremer à luz de seu tão triste olhar.
E eu não chorei...Seu peito - a alva guarida
De minha alma - chorava em doudo arfar...
E eu não chorei, mas eu senti a vida
Das lágrimas ao peso se curvar!...
Saí, andei, corri, parei cansado.
Voltei-me e longe, longe eu vi asinha
- Garça de amor fugindo pr'a o passado
Branca, pura, ideal, - sua casinha -
E as lágrimas de amor deixei - domado -
Constelaram de dor a noite minha!
Euclides da Cunha
(1866-1909)
Mais sobre Euclides da Cunha em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Euclides_da_Cunha
(/code)
(code)
Marcadores:
Euclides da Cunha
domingo, dezembro 11, 2011
Vinicius foi ao cinema assistir um drama e ficou atordoado com a comédia do casal impudico que se sentara atrás dele. Como?
Desde sempre
Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
Narrando a beleza suave de um drama de amor.
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, vividas
Vivendo a memória de uma comédia de carne.
Cada beijo longo e casto do drama
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
Minha alma recolhe a carícia de um
E a minha carne a brutalidade do outro.
Eu me angustio.
Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
Para me integrar definitivamente no drama.
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
Que ambos se trocam na agitação do sexo.
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
Mas ouço terrivelmente tudo
Sem poder tapar os ouvidos.
Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
Para somente poder ver a imagem.
Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
E me penetra a alma uma tristeza infinita
Como se para mim tudo tivesse morrido.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
(/code)
(code)
Marcadores:
Vinicius de Moraes
quinta-feira, dezembro 08, 2011
Adalgisa Nery está pensando nos que possuem a paz de não pensar. E uma lágrima de fogo desce pela sua face.
Pensamentos que reúnem um tema
Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranquilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.
Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.
Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.
Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença,
Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.
Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.
Adalgisa Nery
(1905-1980)
Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery
(/code)
(code)
Marcadores:
Adalgisa Nery
quarta-feira, dezembro 07, 2011
Manoel de Barros sabe que Bola Sete não botava movimento, era incansável em não sair do lugar. E que para compensar tinha laia de poeta.
Bola sete
Bola sete não botava movimento.
Era incansável em não sair do lugar.
Igual o caranguejo de Buson que foi encontrado
de manhã debaixo do mesmo céu de ontem.
Pra compensar tinha laia de poeta.
Dava qualidades de flor a uma rã.
Dava as pessoas qualidade de água.
Isto ele fazia com letras, não precisava se mover.
Onde estava era ele, a manhã e suas garças;
era ele, o acaso e suas cores, era ele, o riacho e suas
margens; era ele, o horizonte e duas nuvens. Por aí.
Passarinhos brincavam nas paisagens de sua janela.
O mundo era perto.
Bastava estender as mãos que chegava no fim do
mundo.
Bola Sete não botava movimento.
Era um sujeito desverbado que nem uma oração
desverbada.
Manoel de Barros
(1916)
Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
(/code)
(code)
Marcadores:
Manoel de Barros
segunda-feira, dezembro 05, 2011
Florbela Espanca tem pena da Lua, só e triste a coitadinha. Ela chega então à janela, e fica a olhar pra lua, fica a chorar com ela!
Só
Eu tenho pena da Lua!
Tanta pena, coitadinha,
Quando tão branca, na rua
A vejo chorar sozinha!...
As rosas nas alamedas,
E os lilases cor da neve
Confidenciam de leve
E lembram arfar de sedas...
Só a triste, coitadinha...
Tão triste na minha rua
Lá anda a chorar sozinha...
Eu chego então à janela:
E fico a olhar pra lua...
E fico a chorar com ela!...
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
(/code)
(code)
Marcadores:
Florbela Espanca
domingo, dezembro 04, 2011
Dizem, não dizem, fazem, não fazem, por quê esperar? Para Álvaro de Campos, tudo é sonhar.
Dizem?
Dizem?
Esquecem.
Não dizem?
Disseram.
Fazem?
Fatal.
Não fazem?
Igual.
Por quê
Esperar?
- Tudo é
Sonhar.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Alvaro de Campos
sexta-feira, dezembro 02, 2011
O que um homem precisa pra falar, entre enxada e sono? Louvado seja Deus, diz Adélia Prado, bucólica e nostálgica.
Bucólica nostálgica
Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pé de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!
Adélia Prado
(1935)
Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado
(/code)
(code)
Marcadores:
Adélia Prado
quinta-feira, dezembro 01, 2011
O amor, esse sufoco. Para Leminski, troço de louco.
O amor, esse sufoco
O amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro.
Ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Leminski
quarta-feira, novembro 30, 2011
Para Oswald de Andrade, desde Bilac somos internacionalistas e portugueses júniors. E desde a Prosopopéia somos brasileiros.
Estrondam em ti as iaras
Desde Bilac
Somos internacionalistas e portugueses júniors
Gostamos de Camembert, do Nilo, de Frinéia e de Marx
Carvões do mar
Náufragos entre sustos e paisagens
- "I don't know my elders!".
Desde Gonzaga
Somos pastores e desembargadores
Desde a Prosopopéia
Somos brasileiros.
Oswald de Andrade
(1890-1954)
Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Oswald de Andrade
terça-feira, novembro 29, 2011
Da filha do rei Manuel Bandeira só viu a cor dos cabelos. O seu corpo ele jamais conhecerá.
A filha do rei
Aquela cor de cabelos
Que eu vi na filha do rei
- Mas vi tão subitamente -
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo?...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
Que eu vi na filha do rei
- Mas vi tão subitamente -
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo?...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
Manuel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
(/code)
(code)
Marcadores:
Manuel Bandeira
segunda-feira, novembro 28, 2011
Dormes, que penso e mensagens tristes lhe envio. Pensamentos, nada mais, diz Cecília em seu acalanto.
Acalanto
Dorme, que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.
Eatarás vendo. Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.
Dorme, que eu penso.
Que eu penso neste navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio.
Pensamentos - nada mais.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
(/code)
(code)
Marcadores:
Cecília Meireles
domingo, novembro 27, 2011
Drummond tem apenas duas mãos e o sentimento do mundo. E sabe que ficará sozinho em um amanhecer mais noite que a noite.
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não dosseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
sábado, novembro 26, 2011
Enre os pequenos e os grandes lábios, os sábios ainda discutem se amor é troca ou entrega louca. Leminski também.
se
amor é troca
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios
no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?
a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?
ou entrega louca
discutem os sábios
entre os pequenos
e os grandes lábios
no primeiro caso
onde começa o acaso
e onde acaba o propósito
se tudo o que fazemos
é menos que amor
mas ainda não é ódio?
a tese segunda
evapora em pergunta
que entrega é tão louca
que toda espera é pouca?
qual dos cinco mil sentidos
está livre de mal-entendidos?
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Leminski
quinta-feira, novembro 24, 2011
Eu me vou, estou triste, mas sempre estou triste. Do seu coração me diz adeus uma criança e eu lhe digo adeus, na dor de Pablo Neruda.
Farewell
1
Desde el fondo de ti, y arrodillado,
un niño triste, como yo, nos mira.
Por esa vida que arderá en sus venas
tendrían que amarrarse nuestras vidas.
Por esas manos, hijas de tus manos,
tendrían que matar las manos mías.
Por sus ojos abiertos en la tierra
veré en los tuyos lágrimas un día.
2
Yo no lo quiero, Amada.
Para que nada nos amarre
que no nos una nada.
Ni la palabra que aromó tu boca,
ni lo que no dijeron las palabras.
Ni la fiesta de amor que no tuvimos,
ni tus sollozos junto a la ventana.
3
(Amo el amor de los marineros
que besan y se van.
Dejan una promesa.
No vuelven nunca más.
En cada puerto una mujer espera:
los marineros besan y se van.
Una noche se acuestan con la muerte
en el lecho del mar.
4
Amo el amor que se reparte
en besos, lecho y pan.
Amor que puede ser eterno
y puede ser fugaz.
Amor que quiere libertarse
para volver a amar.
Amor divinizado que se acerca
Amor divinizado que se va.)
5
Ya no se encantarán mis ojos en tus ojos,
ya no se endulzará junto a ti mi dolor.
Pero hacia donde vaya llevaré tu mirada
y hacia donde camines llevarás mi dolor.
Fui tuyo, fuiste mía. Qué más? Juntos hicimos
un recodo en la ruta donde el amor pasó.
Fui tuyo, fuiste mía. Tu serás del que te ame,
del que corte en tu huerto lo que he sembrado yo.
Yo me voy. Estoy triste: pero siempre estoy triste.
Vengo desde tus brazos. No sé hacia dónde voy.
...Desde tu corazón me dice adiós un niño.....
Y yo le digo adiós.
Pablo Neruda
(1904-1973)
Mais sobre Pablo Neruda em
(/code)
(code)
Marcadores:
Pablo Neruda
quarta-feira, novembro 23, 2011
O anteontem de Murilo Mendes sorri sem jeito. E fica nos arredores do que vai acontecer, como menino que pela primeira vez põe calça comprida.
Pós-Poema
O anteontem - não do tempo mas de mim -
Sorri sem jeito
E fica nos arredores do que vai acontecer
Como menino que pela primeira vez põe calça comprida.
Não se trata de ilusão, queixa ou lamento,
Trata-se de substituir o lado pelo centro.
O que é da pedra também pode ser do ar.
O que é da caveira pertence ao corpo;
Não se trata de ser ou não ser,
Trata-se de ser e não ser.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
(/code)
(code)
Marcadores:
Murilo Mendes
terça-feira, novembro 22, 2011
Para te encontrar foi que eu nasci e tem sido vida fora o meu desejo. E agora que te falo, que te vejo, não sei se te encontrei, se te perdi, diz a realidade de Flobela Espanca.
Realidade
Em ti o meu olhar fez-se alvorada
E a minha voz fez-se gorjeio de ninho...
E a minha rubra boca apaixonada
Teve a frescura pálida do linho...
Embriagou-me o teu beijo como um vinho
Fulvo de Espanha, em taça cinzelada...
E a minha cabeleira desatada
Pôs a teus pés a sombra dum caminho...
Minhas pálpebras são de verbena,
Eu tenho os olhos garços, sou morena,
E para te encontrar foi que eu nasci...
Tem sido vida fora o meu desejo
E agora que te falo, que te vejo,
Não sei se te encontrei...se te perdi...
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
(/code)
(code)
Marcadores:
Florbela Espanca
segunda-feira, novembro 21, 2011
A cidade surda de rock não sabe ainda que a garça voltou. E está lá agora na lagoa, real e implausível, como o poema que o Gullar não consegue escrever.
Na Lagoa
A cidade
debruçada sobre
seus afazeres surda
de rock
não sabe ainda
que a garça
voltou.
Faz pouco, longe
daqui entre aves
lacustres a notícia
correu: a lagoa
rodrigo de freitas
está assim de tainhas!
- oba, vamos lá
dar o ar
de nossa graça
disse a garça
e veio:
desceu
do céu azul
sobre uma pedra
do aterro
a branca filha das lagoas
e está lá agora
real e implausível
como o poema
que o gullar não consegue escrever
Ferreira Gullar
(1930)
Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
(/code)
(code)
Marcadores:
Ferreira Gullar
sábado, novembro 19, 2011
Acabaram-se os tempos e morreram as árvores e os homens. Mas no poema de Ismael Nery para ela, um anjo encontrou dois corpos fortemente enlaçados.
Poema para Ela
Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.
(/code)
(code)
Marcadores:
Ismael Nery
sexta-feira, novembro 18, 2011
Um Bertolt Brecht quase que desconhecido. Por ele mesmo.
Do pobre B.B.
1.
Eu, Bertolt Brecht, venho da floresta negra.
Para a cidade minha mãe me carrregou
Quando ainda vivia no seu ventre. O frio da floresta
Estará em mim até o dia em que eu me for.
2.
Na cidade de asfalto, estou em casa. Recebi
Desde o início todos os sacramentos finais:
Jornais, muito fumo e aguardente. Desconfiado
Preguiçoso e contente - não posso querer mais!
3.
Sou amável com as pessoas. Uso
Um chapéu cartola segundo seu costume.
Digo: São animais de cheiro bem peculiar
E digo: Não faz mal, também tenho esse perfume.
4.
Pelas manhãs, em minha cadeira de balanço
De vez em quando uma mulher faço sentar
E observando-a calmamente lhe digo:
Em mim você tem alguém em quem não pode confiar.
5.
À noite, alguns homens se reúnem à minha volta
E entre nós, "gentleman" é o tratamento vigente.
Colocam os pés sobre a minha mesa
Dizem: As coisas vão melhorar. E eu não pergunto: Realmente?
6.
Na luz cinzenta da aurora os pinheiros urinam
E seus parasitas, os pássaros, começam o gorjeio.
Por essa hora eu na cidade entorno a bebida
Jogo fora o charuto e vou dormir com receio.
7.
Habitamos uma geração fácil
Em casas que acreditávamos eternas
(Assim construímos aquelas imensas caixas na ilha de Manhattan
E as antenas cujos sinais cruzam o mar como invisíveis lanternas).
8.
Destas cidades ficará: o vento que por elas passa!
A casa faz alegre o conviva: ele a esvazia.
Sabemos que somos fugazes
E depois nada virá, somente poesia.
9.
Nos terremotos que virão tenho esperança
De não deixar meu "Virginia" apagar com amargura
Eu, Bertolt Brecht, chegado há tempo na selva de asfalto
No ventre de minha mãe, vinda da floresta escura.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
(/code)
(code)
Marcadores:
Bertolt Brecht
quinta-feira, novembro 17, 2011
Mas, pergunta Mario Quintana, haverá maior poesia do que este meu desesperar-me eterno da poesia? E ela só queria que o poeta falasse de "poesia" um pouco mais...
Querias que eu falasse de "poesia"
Querias que eu falasse de "poesia" um pouco
mais...e desprezasse o quotidiano atroz...
querias...era ouvir o som da minha voz
e não um eco - apenas - deste mundo louco!
Mas quê te dar, pobre criança, em troco
de tudo que esperavas, ai de nós:
é que eu sou oco...oco...oco...
como o Homem de Lata do "Mágico de Oz"!
Tu o lembras, bem sei...ah! o seu horror
imenso às lágrimas...Porque decerto se enferrujaria...
E tu...Como um lírio do pântano tu me querias,
como uma chuva de ouro a te cobrir devagarinho,
um pássaro de luz...Mas haverá maior poesia
do que este meu desesperar-me eterno da poesia?!
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
(/code)
(code)
Marcadores:
Mario Quintana
quarta-feira, novembro 16, 2011
Manuel Bandeira sente saudades do seu querido Recife. Um Recife morto, bom, brasileiro, como a casa do seu avô.
Evocação do Recife
Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
- Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada com cadeiras,
mexericos, namoros, risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
À distância as vozes macias das meninas politonavam:
Roseira dá-me uma rosa
Craveiro dá-me um botão
(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)
De repente
nos longos da noite
um sino
Uma pessoa grande dizia:
Fogo em Santo Antônio!
Outra contrariava: São José!
Totônio Rodrigues achava sempre que era são José.
Os homens punham o chapéu saíam fumando
E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir ver o fogo.
Rua da União...
Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância
Rua do Sol
(Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal)
Atrás de casa ficava a Rua da Saudade...
......onde se ia fumar escondido
Do lado de lá era o cais da Rua da Aurora
......onde se ia pescar escondido
Capiberibe
- Capiberibe
Lá longe o sertãozinho de Caxangá
Banheiros de palha
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei parado o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento
Cheia! As cheias! Barro boi morto árvores destroços redemoinho sumiu
E nos pegões da ponte do trem de ferro
os caboclos destemidos em jangadas de bananeiras
Novenas
Cavalhadas
Eu me deitei no colo da menina e ela começou a passar a mão nos meus cabelos
Capiberibe
- Capiberibe
Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas
Com o xale vistoso de pano da Costa
E o vendedor de roletes de cana
O de amendoim
que se chamava midubim e não era torrado era cozido
Me lembro de todos os pregões:
Ovos frescos e baratos
Dez ovos por uma pataca
Foi há muito tempo...
A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros
Vinha da boca do povo na língua errada do povo
Língua certa do povo
Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil
Ao passo que nós
O que fazemos
É macaquear
A sintaxe lusíada
A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem
Terras que não sabia onde ficavam
Recife...
Rua da União...
A casa de meu avô...
Nunca pensei que ela acabasse!
Tudo lá parecia impregnado de eternidade
Recife...
Meu avô morto.
Recife morto, Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô.
Manoel Bandeira
(1886-1968)
Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira
(/code)
(code)
Marcadores:
Manuel Bandeira
domingo, novembro 13, 2011
Fernando Pessoa sente o peso de haver o mundo. E a tristeza de estar o sonho triste que há rente entre sonhar e sonhar.
O peso de haver o mundo
Passa no sopro da aragem
Que um momento o levantou
Um vago anseio de viagem
Que o coração me toldou.
Será que em seu movimento
A brisa lembre a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembre o ar livre da ida?
Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O sonho triste que há rente
Entre sonhar e sonhar...
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Fernando Pessoa
sábado, novembro 12, 2011
Adélia Prado não queria palavras para rezar. Para ela, bastava ser um quadro bem na frente de Deus pra Ele olhar.
A pintora
Hoje de tarde
pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas
e comecei a chorar,
até me lembrar de que podia
falar sem mediação com o próprio Deus
daquela coisa
vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.
Me agarrei aos seus pés:
Vós sabeis, Vós sabeis,
só Vós sabeis, só Vós.
O bagaço da laranja, suas sementes
me olhavam da casca em concha
na mão seca.
Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.
O bagaço da laranja, suas sementes
me olhavam da casca em concha
na mão seca.
Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.
Adélia
Prado
(1935)
Mais sobre Adélia Prado em
(/code)
(code)
Marcadores:
Adélia Prado
sexta-feira, novembro 11, 2011
Por quê? Drummond e os porquês do seu amor maior.
Porque
Amor meu, minhas penas, meu delírio,
aonde quer que vás, irá contigo
meu corpo, mais que um corpo, irá uma alma,
sabendo embora ser perdido intento
o de cingir-se forte de tal modo
que, desde então se misturando as partes,
resultaria o mais perfeito andrógino
nunca citado em lendas e cimélios.
Amor meu, punhal meu, fera miragem
consubstanciada em vulto feminino,
por que não me libertas de teu jugo,
por que não me convertes em rochedo,
por que não me eliminas do sistema
dos humanos prostrados, miseráveis,
por que preferes doer-me como chaga
e fazer dessa chaga meu prazer?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
quinta-feira, novembro 10, 2011
Carlos Nejar tem a crença de que ainda será eterno. Só não sabe quando.
Crença
Ainda serei eterno.
Não sei quando.
Sei que a sombra se alonga
e eu me alongo,
bólide na erva.
Ainda serei eterno.
Tenho ânsias cativas
no caderno. Cortejo
de símbolos, navios
e nunca mais me encerro
no meu fio.
Ainda serei eterno.
O mês finda, o ano,
o recomeço.
E o fraterno em mim
quer campo, monte, algibe.
Mas sou pequeno
para tanto aceno.
Metáforas me prendem
o eterno
que se pretende isento.
Numa dobra me escondo;
Noutra, deito.
Os nomes me percorrem no poente.
Sou sobrevivente
de alguma alta esfera
que saía de si mesma
e é primavera.
O eterno ainda será viável
como o sol, o dia,
o vento,
misturado ao que me entende
e transborda.
Misturado ao permanente
que me sobra.
Carlos Nejar
(1939)
Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Nejar
quarta-feira, novembro 09, 2011
Augusto Frederico Schmidt sabe que está morta a estrela que foi para o seu coração como o pecado para os santos. E como a ausência de Deus para os condenados.
Estrela morta
Morta a Estrela que um dia, solitária,
Nasceu em céu sem termo.
Morta a Estrela que floriu nos meus olhos.
Morta a Estrela que olhei na noite erma.
Morta a Estrela que dançou diante dos nossos olhos,
A Estrela que descendo acendeu este amor
Morta a Estrela que foi para o meu coração,
Como a neve para os ninhos
Como o pecado para os santos
Como a ausência de Deus para os condenados.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt
(/code)
(code)
Marcadores:
Augusto Frederico Schmidt
terça-feira, novembro 08, 2011
O homem de lata de Manoel de Barros é muitos. E se faz um corte na boca para escorrer todo o silêncio dele.
O homem de lata
O homem de lata
arboriza por dois buracos
no rosto
O homem de lata
é armado de pregos
e tem natureza de enguia
O homem de lata
está na boca de espera
de enferrujar
O homem de lata
se relva nos cantos
e morre de não ter um pássaro
em seus joelhos
O homem de lata
traz para a terra
o que seu avô
era de lagarto
o que sua mãe
era de pedra
e o que sua casa
estava debaixo de uma pedra
O homem de lata
é uma condição de luta
e morre de lata
O homem de lata
tem beirais de rosa
e está todo remendado de sol
O homem de lata
é um iniciado em abrolhos
e usa desvio de pássaro
nos olhos
No homem de lata
amurou-se uma lesma
fria
que incide em luar
Para ouvir o sussurro
do mar
o homem de lata
se increve no mar
O homem de lata
se devora de pedra
e de árvore
O homem de lata
é um passarinho
de viseira:
não gorjeia
Caído na beira
do mar
é um tronco rugoso
e cria limo
na boca
O homem de lata
sofre de cactos
no quarto
O homem de lata
se alga
no Parque
O homem de lata
foi atacado de ter folhas
e se arrasta
em seus ruídos de relva
A rã prega sua boca
irrigada
no homem de lata
O homem de lata
infringe a lata
para poder colear
e ser viscoso
O homem de lata
empedra em si mesmo
o caramujo
O hoemm de lata
anda fardado de camaleão
O homem de lata
se faz um corte
na boca
para escorrer
todo o silêncio dele
O homem de lata
esta a fim
de árvore
O homem de lata
é uma caso
de lagartixa
O homem de lata
é rosto amoroso
de pessoa
O homem de lata
está todo estragado
de borboleta
O homem de lata
foi marcado a ferro e fogo
pela água.
Manoel de Barros
(1916)
Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
(/code)
(code)
Marcadores:
Manoel de Barros
segunda-feira, novembro 07, 2011
Se me amasses eu me transformaria no que sou. É o que tem a dizer Murilo Mendes ao anjo que precisa de outro anjo e ao espírito que vai anunciar e ao mesmo tempo espera ser anunciado.
Fantasia
1
Anjo que precisa de outro anjo,
Espírito que vai anunciar
E ao mesmo tempo espera ser anunciado.
Anjo que segura a palma de seus braços
E se contempla, desdobrando-se ao espelho.
Anjo felino que desconcerto entre sua forma e sua fôrma!
Regressa com as órbitas vazias
Até que possa conhecer-se um dia.
2.
És de espuma e seda,
És ao mesmo tempo centelha,
Forma futura do que advinhei em sonho.
Observo eternamente
O Horizonte convexo
Espiando chegares desdobrada em asa.
Se me amasses
Eu me transformaria no que sou.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
(/code)
(code)
Marcadores:
Murilo Mendes
domingo, novembro 06, 2011
O coração de Saramago não é de ferro. O dele, fizeram-no de carne e sangra todo dia.
Coração de ferro
Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.
José Saramago
(1922-2010)
Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(/code)
(code)
Marcadores:
José Saramago
sábado, novembro 05, 2011
Para António Gedeão, cada um é seus caminhos. Onde Sancho vê moinhos, Don Quixote vê gigantes.
Os meus olhos
Os meus olhos são uns olhos.
E é com esses olhos uns
Que eu vejo no mundo escolhos
Onde outros com outros olhos,
Não vêem escolhos nenhuns.
Quem diz escolhos diz flores.
De tudo o mesmo se diz.
Onde uns vêem luto e dores
Uns outros descobrem cores
Do mais formoso matiz.
Nas ruas ou nas estradas
Onde passa tanta gente,
Uns vêem pedras pisadas,
Mas outros, gnomos e fadas
Num halo resplandecente.
Inútil seguir vizinhos,
Querer ser depois ou ser antes.
Cada um é seus caminhos.
Onde Sancho vê moinhos
D. Quixote vê gigantes.
Vê moinhos? São moinhos.
Vê gigantes? São gigantes.
António Gedeão
(1906-1997)
Mais sobre António Gedeão em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gede%C3%A3o
(/code)
(code)
Marcadores:
António Gedeão
sexta-feira, novembro 04, 2011
Ana Cristina Cesar em um encontro de assombrar na Catedral. Frente a frente, com os olhos, dizendo, com os olhos, do silêncio que não é mudez.
Encontro de assombrar na Catedral
Frente a frente, derramando enfim todas as
palavras , dizemos, com os olhos, do silêncio
que não é mudez.
E não toma medo desta alta compadecida
passional, desta crueldade intensa que te
toma as mãos.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
Mais sobre Ana Cristina Cesar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_Cesar
(/code)
(code)
Marcadores:
Ana Cristina Cesar
quinta-feira, novembro 03, 2011
Não te fies do tempo nem da eternidade. Apressa-te, amor, que amanhã eu morro e não te digo, pede Cecília em uma de suas canções.
Canção
Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime, o lábio,
limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Ceília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
(/code)
(code)
Marcadores:
Cecília Meireles
quarta-feira, novembro 02, 2011
O instante é tudo para Paulo Mendes Campos. Em seus olhos, o tempo é uma cegueira e a eternidade uma bandeira aberta em céu azul de solidões.
Tempo e eternidade
O instante é tudo para mim que ausente
Do segredo que os dias encadeia
Me abismo na canção que pastoreia
As infinitas nuvens do presente.
Pobre do tempo, fico transparente
À luz desta canção que me rodeia
Como se a carne se fizesse alheia
À nossa opacidade descontente.
Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
E a minha eternidade uma bandeira
Aberta em céu azul de solidões.
Sem margens, sem destino, sem história
O tempo que se esvai é minha glória
E o susto de minh'alma sem razões.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Mendes Campos
terça-feira, novembro 01, 2011
Mia Couto não se acha velho, não. Estardecido, talvez, antigo, sim.
A adiada enchente
Velho, não.
Entartecido, talvez.
Antigo, sim.
Me tornei antigo
porque a vida,
tantas vezes, se demorou
E eu a esperei
como um rio agurda a cheia.
Mia Couto
(1955)
Mais sobre Mia Couto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mia_Couto
(/code)
(code)
Marcadores:
Mia Couto
segunda-feira, outubro 31, 2011
Por muito tempo, Drummond achou que ausência é falta. E que falta nós sempre vamos sentir de Drummond.
Ausência
Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, esta ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
Alexander Search teve uma revelação não do alto mas de baixo, quando a saia dela por um momento levantou. E não teve palavras para bem descrever a vista.
Em um tornozelo
Tive uma revelação não do alto
Mas de baixo, quando a vossa saia por um momento levantou
Traiu tal promessa que não tenho
Palavras para bem descrever a vista.
E mesmo se o meu verso tal coisa pudesse tentar,
Difícil seria, se a minha tarefa fosse contemplada.
Para encontrar uma palavra que não fosse mudada
Pela mão fria da Moralidade
Olhar é o bastante: o mero olhar jamais destruiu qualquer mente,
Mas oh, doce senhora, além do que foi visto
Que coisas podem ser adivinhadas ou sugerir desrespeito!
Sagrada não é a beleza de uma rainha.
Pelo vosso tornozelo cheguei a suspeitar
Do mesmo jeito que vós podeis suspeitar do que eu quis dizer.
Alexander Search, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Alexander Search
domingo, outubro 30, 2011
A família do burrinho, segundo Oswald de Andrade.
A família do burrinho
- Vamos Joseph fugir
- Para onde Maria ir
Joseph (jocoso) – shall go to Jundi-aí ai!
- Depressa! Sela o Mangarito
Vamos com o vento Sul
Onde serei cesariada?
- Não presepe
- Tenho medo da vaca
- Não chores darling (terno) Sweepstake de Deus!
Maria – Caí na ilegalidade
Porque modéstia à parte
Trago uma trindade no ventre
Nesse tempo não havia ainda as irmãs Dione
Algumas palavras de inglês conhecendo
A família sagrada partiu
Sem saudades levar
Para as bandas do mar
Vermelho
Na poeira da madrugada
Cruzou um olival
O escaravelho
- Quantas dracmas serão precisas?
Exclamou o castiço esposo
Para esta viagem em torno da lei do mundo
Estamos no século III ou IV da fundação
De Roma
E só tenho “argent de poche”
- Não vá faltar Joseph
- Na verdade Deus ajuda…
(os ricos)
- Sonhei que os serafins
Estão bordando uma estrela surda
Para Herodes não ver
Quero reis magos
Trenzinho e monjolo
E o retrato de Shirley Temple
Porque o menino vem
Este mundo salvar
O vento distribuía algodão pelos açudes
Joseph espancou o burrinho
E riu
- Belo mundo ele vem salvar!
(Já havia naquele tempo
Pouco leite para os bebês)
- Se faltar numerário
Eu carrego na centena do Mangarito
E dou um viva ao faraó Hitler…
(Antes que ele faça comigo
O Progrom que fez com Moisés)
- Oportunista! gritou uma nuvem
Joseph fingiu que não ouvia
- A vida é um buraco
Enquanto não vier Maria
A socialização
Dos meios de produção
- Besta! gritou um anjo
São José seguiu pensando
Que os anjos geralmente são reacionários
Oswald de Andrade
(1890-1954)
Mais sobre Oswald de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oswald_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Oswald de Andrade
sexta-feira, outubro 28, 2011
O reflexivo Affonso Romano de Sant'Anna adiou. Adeu-se.
Reflexivo
O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.
Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)
Mais sobre Affonso Romano de Sant'Anna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant'Anna
(/code)
(code)
Marcadores:
Affonso Romano de Sant'Anna
quinta-feira, outubro 27, 2011
Este é o post # 3.000 do Poemblog. Espaço deixado em branco para você lembrar sempre dos poemas nossos de todos os dias.
(/code)
(code)
Marcadores:
O Editor
quarta-feira, outubro 26, 2011
Quem é que semeia o vento e colhe a tempestade? Para Vinicius de Moraes, só a mulher amada, o princípio e o fim de todas as coisas.
A brusca poesia da mulher amada (II)
A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos
astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher
amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
(/code)
(code)
Marcadores:
Vinicius de Moraes
terça-feira, outubro 25, 2011
Dorme, dorme o que não foste, o que nunca serás. Dorme, que pena não poder me ver - puro - dormindo, diz a dor de Murilo Mendes.
Dorme
Dorme.
Dorme o tempo em que não podias dormir.
Dorme não só tu,
Prepara-te para dormir teu corpo e teu amor contigo.
Dorme o que não foste, o que nunca serás.
Dorme o incêndio dos atos esquecidos,
A qualidade a distância o rumo do pensamento.
O pássaro magnético volta-se,
As árvores trocam os braços,
O castelo parou de andar.
Dorme.
Que pena não poder me ver - puro - dormindo.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
(/code)
(code)
Marcadores:
Murilo Mendes
segunda-feira, outubro 24, 2011
Dói-me quem sou, diz Alberto Caeiro. Para ele, é como se na imensa solidão de uma alma a sós consigo, o coração tivesse cérebro e conhecimento.
Dói-me
Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer idéia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
que quis pedir esmola e não ousou.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
(/code)
(code)
Marcadores:
Alberto Caeiro
domingo, outubro 23, 2011
Nela, Drummond gravou o seu epitáfio. E agora que se separaram, sua morte já não lhe pertence.
No mármore de tua bunda
No mármore de tua bunda gravei o meu epitáfio.
Agora que nos separamos, minha morte já não me pertence.
Tu a levaste contigo.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
sábado, outubro 22, 2011
E agora Maria?
Drumundana
e agora Maria?
o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia
e agora Maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria
Alice Ruiz
(1946 )
Mais sobre Alice Ruiz em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz
(/code)
(code)
Marcadores:
Alice Ruiz
sexta-feira, outubro 21, 2011
Mortal e navegável. Assim é o amor para Eugénio de Andrade.
O amor
Estou a amar-te como o frio
corta os lábios.
A arrancar a raiz
ao mais diminuto dos rios.
A inundar-te de facas,
de saliva esperma lume.
Estou a rodear de agulhas
a boca mais vulnerável.
A marcar sobre os teus flancos
itinerários da espuma.
Assim é o amor: mortal e navegável.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Eugénio de Andrade
quinta-feira, outubro 20, 2011
Saramago lembra que os deuses, noutros tempos, eram nossos porque entre nós amavam. Quando castos se tornaram, os homens não souberam e pecaram.
Mitologia
Ou deuses, noutros tempos, eram nossos
Porque entre nós amavam. Afrodite
Ao pastor se entregava sob os ramos
Que os ciúmes de Hefesto iludiam.
Da plumagem do cisne as mãos de Leda,
O seu peito mortal, o seu regaço,
A semente de Zeus, dóceis, colhiam.
Entre o céu e a terra, presidindo
Aos amores de humanos e divinos,
O sorriso de Apolo refulgia.
Quando castos os deuses se tornaram,
O grande Pã morreu, e órfãos dele,
Os homens não souberam e pecaram.
José Saramago
(1922-2010)
Mais sobre José Saramago em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Saramago
(/code)
(code)
Marcadores:
José Saramago
quarta-feira, outubro 19, 2011
Para ti foi tudo e toquei no nada. Para ti, de Mia Couto.
Para ti
Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo
Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre
Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida
Mia Couto
(1955)
Mais sobre Mia Couto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Mia_Couto
(/code)
(code)
Marcadores:
Mia Couto
terça-feira, outubro 18, 2011
Em seu poema perto do fim, Thiago de Mello diz que a morte é indolor. E que o que dói nela é o nada que a vida faz do amor.
Poema perto do fim
A morte é indolor.
O que dói nela é o nada
que a vida faz do amor.
Sopro a flauta encantada
e não dá nenhum som.
Levo uma pena leve
de não ter sido bom.
E no coração, neve.
Thiago de Mello
(1926)
Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
(/code)
(code)
Marcadores:
Thiago de Mello
segunda-feira, outubro 17, 2011
Para Brecht, aquele despedida foi difícil. Falaram do tempo e da permanente amizade, todo o resto seria amargo demais.
A despedida
Nós nos abraçamos.
Eu toco em tecido rico
Você em tecido pobre.
O abraço é ligeiro
Você vai para um almoço
Atrás de mim estão os carrascos.
Falamos de tempo e de nossa
Permanente amizade. Todo o resto
Seria amargo demais.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
Mais sobre Bertolt Brechet em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
(/code)
(code)
Marcadores:
Bertolt Brecht
domingo, outubro 16, 2011
Que é que vou dizer a você, será que você não entende, será que você é burra? Eu te amo, grita Drummond como o menino diante da mulher que não percebe nada.
Enleio
Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código
de amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos ( só isso)
então eu diria:
Eu te amo.
Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende, será que você é burra?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade
(/code)
(code)
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
sábado, outubro 15, 2011
Ismael Nery não quer ser Deus por orgulho, mas por necessidade, por vocação. Esta a grande diferença que ele tem de Satã.
Confissão
Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável,
Crescente,
Eterna,
- De mim que me desprezo e me acredito um nada.
Ismael Nery
(1900-1934)
Mais sobre Ismael Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ismael_Nery
(/code)
(code)
Marcadores:
Ismael Nery
sexta-feira, outubro 14, 2011
Florbela Espanca bebe a Vida, a Vida, a longos tragos. E canta: a Vida, meu Amor, quero vivê-la!
O nosso mundo
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todos fantasmas tristes e pressagos!
A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!...
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
(/code)
(code)
Marcadores:
Florbela Espanca
quinta-feira, outubro 13, 2011
Já começo a ficar cheio de não saber quando eu falto. De ser, mim, sujeito indireto, desabafa Leminski.
Sujeito indireto
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feita a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
(/code)
(code)
Marcadores:
Paulo Leminski
Assinar:
Postagens (Atom)