quarta-feira, junho 10, 2009
Ariano Suassuna considera a poesia como o melhor de sua obra literária. Depois de ler seu belo canto armorial, fica fácil entender o porquê.
Canto armorial do Recife, capital do Reino do Nordeste
I
Eram sete as Coroas deste Reino,
sete as Torres sagradas da Cidade,
sete Arcanjos de bronze, fogo e cobre,
sete Clarins de calcedônia e jade,
e o meu Reino-sagrado do Nordeste
luzia, do Recife à claridade.
Eu velava na pedra do Arrecife
e vi, nesse repente, uma Visagem:
a esmeralda do Mar se alumiava
e o Sertão lhe infundiu sua coragem.
O rubi resplandece na turqueza:
Mar e sol, água e pedras da Pastagem.
A Coroa-de-Ferro de Canudos
resplende sobre a Torre-quadrejada.
O Sertão de Acauhan, da casa-forte,
na do Engenho Pombal, limpa e sagrada.
Os clarins de Princesa e Piancó
reluzem na da torre-ameaçada.
E a colina-sagrada da Batalha
brilha na Conceição-dos-Militares:
as quilhas afundadas dos navios
são púlpitos, Cariátides e altares.
Estalam tiros secos de mosquetes,
as Espadas rebrilham pelos ares.
Duas torres iguais de Santo-Antônio
são as pedras do Reino, as Encantadas,
incrustradas de prata e diamantes,
ungidas pelo Sangue e consagradas:
torres da Catedral dos Sertanejos,
proibida, luzente e soterrada.
O Castelo-roqueiro, em Cinco-Pontas,
é a Casa da Pólvora também:
os Fortes do meu Reino, reluzindo,
pelas pontas da estrela se detêm,
como, na esfera-de-ouro do Brasil
as moedas de ourique e Santarém.
Sim! Porque na Colina-consagrada
onde o Leão do Coelho pôs a pata
(Ouro-Velho, Ouro-Preto, Pombo-Verde
do Salvador, das águas e das arcas)
se funde todo o Império do Brasil,
o ouro das Minas e o torçal-de-prata.
Por isso aqui, brilham também, fundidos,
o clarim do Sertão e o dos Engenhos,
a Lua-moura, a Estrela-da-Judéia,
a Onça-negra, a Parda, 0 rubro Lenho,
- a corneta das Quinas e padrões
encravados de estrelas e desenhos.
E por isso o Recife era a Esmeralda
e a Muralha-de-pedra, a Vastidão:
Pedra-Angular do Reino-esverdeado.
Rosa-vermelha-e-bruna do Brasão,
Porta-azul dos Engenhos e do Mar,
Porta-rubra-e-castanha do Sertão.
II
Lá vem a frota-ibérica das Naus:
brancas velas, tosões, cruzes, bandeiras!
São Cavalos-marinhos, Bois-azuis,
Hipocampos-vermelhos de madeira
ferrados com a Cruz-de-Leopardo,
do Cachorro-de-Deus-e-da-Roseira!
Vem nelas o Assassino, o Mau-Poeta,
o Fidalgo-judeu blasfemador:
canta o Leão e as quinas-da-nobreza,
os castelos e o preço do Senhor,
- Voz dos Autos, das trovas e sonetos
que, para nós, é o Sol-começador!
Pois o Recife é um Cisne sacro e branco,
um Búzio desigual e retorcido
que se sentou na Pedra-cavernosa,
de pérolas e aljôfar guarnecido,
de Coral fino, crespo e marchetado,
depois de o Mar azul ter dividido.
III
E a Voz forja a Sereia-nordestina,
a Anfitrite de penas-coloradas:
as casas são Guaràzes-escarlates,
são penas de Saíra recamadas;
estrelas e topázios das Jandaias
são cachos-de-ouro em Campo de esmeralda.
E as heráldicas Flores do meu Reino:
o flamejante, o cravo, o girassol,
a acácia-de-ouro, e a rainha, a Rosa,
e a rosa da Paixão-do-Rouxinol
o emblema, a cruz-de-cristo, as chagas roxas,
a lança, o sangue e espinhos do meu Sol!
E assim moldou-se o sangue da Cidade,
esta fêmea e pantera dos Bruxedos.
Ela entreabre seu Manto e nos revela
seus encantos musgosos e secretos,
seu sangue macho-e-fêmea, seus contrastes,
seus embruxos, e filtros, e segredos.
Sua tigre-bravura se admira,
seus encantos de Fêmea se deseja,
a finura da Faca e da coragem,
a nobreza e a Faminta-malfazeja,
essa Gata de graça-florentina
e o Sol dessa muralha-sertaneja.
IV
Canta, ó clarim do Teuto-sergipano,
a onça-da-nobreza, a Desumana.
Não te enganes: o cheiro desse Mel
(mesmo de prata, mesmo em Massangana)
é forjado no sangue que bebeu
a leoa-dos-nobres, a Tirana!
Vai! Chama teu irmão desabusado,
teu irmão sertanejo e brasileiro,
Lagarto alumiado pelo sol,
escorpião da Raça e do braseiro,
gila-do-sangue, Povo-coroado.
Arauto-inicial do Romanceiro.
Que o Nordeste é uma Onça e estão seus ombros
queimados pelo Sol e pelo sal:
as garras de arrecifes, os Lajedos,
são seus dentes-de-pedra e ossos-de-cal.
A Liberdade e o sangue da Inumana
precisam de teu Gládio e do Punhal!
V
Quanto a ti, canta o Sol nosso e Castanho,
que esse Golfim de corpo bronzeado
que sai da espuma branca-e-azul do Mar
(esse sangue-estanhoso do Sagrado)
é o mesmo da Batalha, ali gravada
nesse painel castanho e esbraseado!
Canta as Flechas no campo de Ouro-verde,
as bandeiras, a espada do Latino.
Não cantaste a Onça-negra veludosa,
nem a Parda-castanha (meu destino),
mas o urucu-vermelho, as áureas-penas,
como escudos, brasões e Paladinos!
Tu viste teus fidalgos em Castelos,
e Peri com a cor de sua Dama.
Viste a Loura-fidalga (azul e ouro)
e a Morena-bastarda em sua cama.
Teu Gato-pardo é nosso Cavaleiro,
a corneta-de-tíbia é nossa Fama.
Passa o Capitão-mor das Oiticicas
com seu Gibão dourado de fidalgo.
É falso? É sertanejo o Cavaleiro:
vem outro e mostra a fome, o Gibão-pardo!
Que é preciso, também, nesta Insensata,
cantar a prata e o Sonho do sonhado!
VI
Tu, Clarim-sertanejo do meu sangue,
canta os Campos, de sangue já laivados,
a arena-rubra, a terra-bem-fadada,
sol dos pulsos-de-ferro venerados,
que, em perpétua Aliança, reluziram
o Reino, o território-consagrado.
E a Rota da cruzada-sertaneja,
teu Reino de Acauhan, o gado-crioulo
com seus tipos de Raça e de nobreza,
na Malhada-da-Onça, cor de ouro,
onde o Sol e o brasido das Estrelas
são esporas-do-céu - Gibão de couro!
VII
Soa o quinto Clarim, Cunha de fogo,
e a pedra, o Espinho, ruge em sua Fala.
A faca. A lazarina de Canudos,
no Pajeú-da-raiva, cresce e estala.
O foto é um tabocal se incendiando
ao som das Ladainhas e das balas.
E a Catedral - o antro, o doido templo,
reduto, fortaleza e Santuário,
de fachada sem módulos e regras,
vasto, retangular, desafrontado,
cortado e esburacado de troneiras,
o brutal Hipogeu desenterrado!
VIII
Junto a ti (cunha, fogo, pedra e ferro),
junto a ti (que és mortal e ensolarado),
sopra o Clarim-augusto-dos-engenhos,
o noturno Duende enferrujado:
canta as asas do Corvo e canta a Morte,
o Sangue e as coisas podres do Paudarco.
As canas, o homem-sem-conchego-nobre,
o musgo-verde, os Bois, o lodo-insonte,
as lagartixas-dos-esconderijos,
o doido Sol-ignívomo da Ponte...
E a Máquina-do-mundo queima tudo
na sua pele-de-rinoceronte!
Se ele cantou o mel de seus Engenhos,
pressentiu meu Sertão com seus segredos:
os Rifles pipocando o som das quedas
de mil lajedos sobre mil lajedos
e os Capitães-de-couro se matando
nas pontas escarpadas dos Rochedos!
Ouço na Voz-noturna desse Engenho
os jambeiros verdosos do Paudarco
chovendo rosa-púrpura no chão
do Recife do signo-estrelado,
e o Dono dos escudos-da-bandeira
no Cais-da-aurora canta seu passado.
IX
Ó paudarco, flor-de-ouro! O Corredor,
com seu búzio-de-sonho, sonha e passa:
no açafrão, nos vestidos das meninas,
no cheiro de jasmins que ali perpassa,
na argamassa do Tempo impiedoso,
pedra e cal dos bueiros sem fumaça!
Salvou, assim, o verde de seu Reino
e o Pajeú-de-pedra do Sertão:
gemem os Catolés, estrala a bala,
e passa, doido, El-Rei-Sebastião,
sujo de sangue e pó a real Fronte,
mas vivo no chapéu do Capitão!
E o búzio-decadente troa a Raça
e forja o Cavaleiro-destroçado,
o de esporas-quebradas, mas sem freio
na Burra que é castanha e que é sem rabo!
E eu bebo o Mel cheiroso dos Engenhos
no Pombal que é meu Reino-conquistado!
X
E todo o Reino canta nesse nome,
pela Dama-de-sangue-coroado:
o Sínople, os Pescoços-de-serpente,
a Banda-sanguinosa do Enforcado;
quatro Laivos-de-sangue que meu Sangue
tinha visto nos campos do Sagrado!
Ela era leve, e tinha os olhos
como o paudarco-âmbar da Acauhan,
e os ouros das acácias do Recife
nos cabelos de sol-pela-manhã:
olhos-andrades, crespos, cor-de-ouro,
boca, vermelha flor de flamboiã!
E, misturando tudo, o mel do Engenho
mais o mel das abelhas do Sertão.
Cana-caiana doce, olhos-estranjas,
tão bonita, tão boa e tão do-chão!
Era, mesmo, a Leoa-coroada,
flecha em meu sangue, anel da solidão!
E eu vi que minha Dama era o Recife,
o engenho e o sertão do meu Sagrado.
Os clarins já se calam e as Coroas
fulgiam pelo Reino-do-Encampado.
O Sol comia o cobre do horizonte:
terminava a viagem do sonhado!
Soltou-se a Onça-Negra da estrelada
e o meu Recife, ali, na escuridão,
era, agora, o Fortim-iluminado,
o baluarte, a Nau, o bastião,
colocado entre o Reino-azul do Mar
e o meu Reino-castanho do Sertão!
Ariano Suassuna
(1927)
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