quarta-feira, julho 11, 2007

No olhar do tempo de Manuel Bandeira, o Mangue era mais Veneza americana que o Recife. Simplesinho, gente que vive porque é teimosa, Meriti meritriz.


Mangue


Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Cargueiros atracados nas docas do Canal Grande
O Morro do Pinto morre de espanto
Passam estivadores de torso nu suando facas de ponta
Café baixo
Trapiches alfandegados
Catraias de abacaxis e de bananas
A Light fazendo cruzvaldina com resíduos de coque
Há macumbas no piche
Eh cagira mia pai
Eh cagira
E o luar é uma coisa só

Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio do que todas as Meritis da Baixada
Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições públicas
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas nas tabuletas avulsivas
O Senador Eusébio e o Visconde de Itaúna já se olhavam com rancor
(Por isso
Entre os dois
Dom João VI plantou quatro renques de palmeiras imperiais)

Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus foi funcionário público casado com mulher feia e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num píncaro azulado.
Era aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais cariocas.
Sambas da tia Ciata
Cadê mais tia Ciata
Talvez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças para o Natal.
O menino Jesus - Quem sois tu?
O preto - Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?
O menino Jesus - Eu sou o fio da Virge Maria.
O preto - Entonces como é fio dessa senhora, obedeço
O menino Jesus - Entonces como é fio dessa senhora, obedeço.
O menino Jesus - Entonces cuma você obedece,
reza aqui um terceto pr'esse exerço vê.

O Mangue era simplesinho

Mas as inundações dos solstícios de verão
Trouxeram para Mata-Porcos todas as uiaras da serra da Carioca
Uiaras do Trapicheiro
Do Maracanã
Do rio Joana
E vieram também sereias de além-mar jogadas pela ressaca nos aterrados da Gamboa
Hoje há transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
O Senador e o Visconde arranjaram capangas
Hoje se fala numa porção de ruas em que dantes ninguém acreditava
E há partidas para o Mangue
Com choros de cavaquinho, pandeiro e reco-reco
És mulher
És mulher e nada mais

Oferta

Mangue mais Veneza americana do que o Recife
Meriti meretriz
Mangue enfim verdadeiramente Cidade Nova
Com transatlânticos atracados nas docas do Canal Grande
Lindas como Juiz de Fora

Manuel Bandeira
( 1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Um comentário:

Claudia F. disse...

adoro poesias e sempre passeio pelos campos da net colhendo-as para plantar em meus canteirinhos
todas as boas coisas
cordiais abraços