RIO: ONTEM, HOJE, AMANHÃ
Pão De Açúcar
O grande pão de mel suspenso entre mar e céu
insinua os prazeres da cidade.
A boca, o paladar,
a trama dos sentidos
serpenteia lá embaixo. O sol nascente
e o sol cadente vestem de púrpura
a forma rígida. Nuvens ciganas
brincam de subtraí-la.
A cada hora, desintegra-se, recompõe-se,
assume formas inéditas de transparência.
Tem as cores da vida e o sigilo da sombra,
É montanha ou aparição crepuscular.
Praia
A céu aberto reúnem-se em congresso
os corpos que a manhã torna esculpidos,
ao entardecer envoltos de doçura.
Aqui pousam moradas redondezas
entregues à delícia de existir
ao calor da onda glauca, sem problemas.
Existir, simplesmente – a vida é cor
é curva adolescente, é surfe e papo.
O mar, irmão. O cão namora o peixe?
A barraca levada pelo vento?
A obrigação tediosa postergada?
Deixa fluir o tempo! O tempo é nada.
Zona Sul
A onda mais alta
no colar da praia;
a areia mais cálida
no beijo dos corpos;
morros em coroa
no verde-azul-verde.
Zona Sul, por que me tentas
a ser o átomo na luz?
Por que me levas ao instinto
de primeiro homem nascido
na concha da natureza?
Zona Sul, me perco em sol.
Outros Bairros
O Rio não é simples. (Haverá
cidade simples, de uniforme rosto?)
Seu dernier cri vizinha o primitivo.
Sua opulência casa-se ao espontâneo.
O presépio dos morros entrelaça-se
com signos de riqueza e de fulgor.
Um cão – há sempre um cão – cheira a paisagem.
Uma ave – há sempre uma ave – singra a aurora.
Gente
O trabalho e o lazer, suas linhas se cruzam
pelas ruas do Rio, em tácito concerto.
O religioso gesto de juntar pedrinhas
de calçamento é o mesmo de lançar as cartas
no cassino montado em banco de cimento.
Come fogo, este aqui, e a inveja que me causa...
(Quisera eu imitá-lo, e falta-me a ciência.)
Outro doma o carro, subjugado dragão
por seu frágil poder mecânico prostrado.
Assim o povo mostra a sua dupla face:
labutar é destino? Há que sobrar astúcia
para fazer de tudo uma espécie de sonho.
Crianças
Não há que de desesperar do homem.
Temos ainda – arca de surpresa – os meninos,
e é proibido antecipar a sorte.
Degustam bem-aventuradamente um naco de melancia,
acomodam-se na caixa de biscoitos, aderem ao carnaval.
Seus olhos profundos te indagam:
- Que fazes por mim?
Não sabemos responder – mas os meninos continuam,
esperança de todos os dias, promessa de humanidade.
Carnaval
Liberto de estatutos e limites,
o corpo encontra a sua festa.
Solto (e ritmado), não caminha,
salta,
ginga,
rodopia,
dança.
Dança em torno da História e da Legenda,
a glória de ser corpo, a súbita invenção
de uma ou outra ordem, onírica e terrestre.
Sobre as cabeças paira o antigo deus da música,
do vinho e da euforia,
no golpe eternizante do minuto.
Futebol
Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra
para craques e pernas-de-pau.
Mesma a volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São vôos de estátuas súbitas,
Desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
- afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.
Umbanda
Yemanjá, filha de Oxalá,
Mãe de Xangô e de todos os orixás,
saravá!
Neste barquinho carregado de braceletes e colares,
entre flores e luzes,
vai o nosso rogo: protegei
o bom povo do Rio de Janeiro.
Dai-lhe confiança, fortaleza e paz.
Que as falanges de vossa linha
desmanchem os negros trabalhos negativos,
adversos à cidade e à sua gente
e façam a alegria reinar
à beira dessas ondas dedicadas
a vosso poder e encanto
Yemanjá, branco-azul-prateada
sereia rainha do mar!
Flora e Fauna
Insiste o pássaro no ramo
em proclamar o seu direito
à vida livre e ao verde pouso.
Insiste a flor em colorir-se
com as tintas todas matinais,
à revelia do alumínio
e do fumé e do ray-ban.
Troncos vetustos e plumagens
rubras, imperiais palmeiras
- a natureza se requinta
em ofertar a olhos cansados
a perene renovação
da vida acima das catástrofes.
Por Aí Além
Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.
Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.
Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.
E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.
Rio: Ontem, Hoje, Amanhã
Sumiram, no pélago da História,
os índios,
os franceses invasores,
os capitães-mores, os engenhos de açúcar,
os amores de Domitila e Capitu.
Ficou – ficará sempre –
a magia do Rio de Janeiro.
Violentada embora (que importa?),
perdura, renitente,
a caprichosa geometria carioca.
Desdobra-se a paisagem
diferente de todas as paisagens,
com a água e a terra em conjunção sensual.
E permanece a embriagadora essência
da palavra RIO
- tudo que no Rio é flama implícita.
Amanhã virão outros moradores
sensíveis à escultura da cidade
e à sua voluptuosa formação,
e um amor mais lúcido e operante
que o nosso pobre amor desordenado
defenderá o sortilégio do Rio,
a perenidade atlântica do Rio,
a graça de viver e amar o Rio.
Deus, Brasileiro?
Somos pecadores, porém Cristo
perdoa, lá do alto da montanha,
a escuridão de nossos pecados.
Somos pecadores, mas prostamo-nos
ante a infinita benevolência
de Deus, nosso criador e responsável.
E quando o sol de ouro irrompe
na ressurreição do dia e da carne,
sentimo-nos puros, pecadores,
privilegiados por Deus, que é brasileiro
ou talvez carioca.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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