quinta-feira, abril 30, 2009

Para Fernando Pessoa, se tudo o que há é mentira, é mentira tudo o que há. Porque de nada nada se tira, a nada nada se dá.


Se tudo


Se tudo o que há é mentira.
É mentira tudo o que há.
De nada nada se tira,
A nada nada se dá.

Se tanto faz que eu suponha
Uma coisa ou não com fé,
Suponho-a se ela é risonha,
Se não é, suponho que é.

Que o grande jeito da vida
É pôr a vida com jeito.
Fana a rosa não colhida
Como a rosa posta ao peito.

Mais vale é o mais valer,
Que o resto urtigas o cobrem
E só se cumpra o dever
Para que as palavras sobrem.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Na fogueira do que faço por amor me queimo inteiro e do tempo que me devora me nasce a fome de ser. Na memória da esperança, muito de Thiago de Mello.


Memória da esperança


Na fogueira do que faço
por amor me queimo inteiro.
Mas simultâneo renasço
para ser barro do sonho
e artesão do que serei.
Do tempo que me devora
me nasce a fome de ser.
Minha força vem da frágil
flor ferida que se entreabre
resgatada pelo orvalho
da vida que já vivi.
Qual a flama que darei
para acender o caminho
da criança que vai chegar?
Não sei. Mas sei que já dança,
canção de luz e de sombra,
na memória da esperança.

Dia dos meus 55 anos,
30 de março de 1981.

Thiago de Mello

Mais sobre Thaigo de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

quarta-feira, abril 29, 2009

Murilo Mendes publicou este poema no seu livro "História do Brasil", em 1932. Nos últimos 77 anos parece que muita coisa mudou, sempre para pior.


Hino do deputado


Chora, meu filho, chora.
Ai, quem não chora não mama,
Quem não mama fica fraco,
Fica sem força pra vida,
A vida é luta renhida,
Não é sopa, é um buraco.
Se eu não tivesse chorado
Nunca teria mamado,
Não estava agora cantando,
Não teria um automóvel,
Estaria caceteado,
Assinando promissória,
Quem sabe vendendo imóvel
A prestação ou sem ela,
Ou esperando algum tigre
Que talvez desse amanhã,
Ou dando um tiro no ouvido,
Ou sem olho, sem ouvido,
Sem perna, braço, nariz.

Chora, meu filho, chora,
Ante-ontem, ontem, hoje,
Depois de amanhã, amanhã.
Não dorme, filho, não dorme,
Se você toca a dormir
Outro passa na tua frente
Carrega com a mamadeira.
Abre o olho bem aberto,
Abre a boca bem aberta,
Chore até não poder mais.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

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Adalgisa Nery abre o olhos, não vê nada; fecha os olhos, já viu tudo. O seu mundo é muito grande e tudo que ela pensa acontece.


Poema natural


Abro os olhos, não vi nada
Fecho os olhos, já vi tudo.
O meu mundo é muito grande
E tudo que penso acontece.
Aquela nuvem lá em cima?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Ontem com aquele calor
Eu subi, me condensei
E, se o calor aumentar, choverá e cairei.
Abro os olhos, vejo um mar,
Fecho os olhos e já sei.
Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?
Eu estou lá,
Ela sou eu.
Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.
Quando a maré baixar, na areia secarei,
Mais tarde em pó tomarei.
Abro os olhos novamente
E vejo a grande montanha,
Fecho os olhos e comento:
Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,
Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?
Eu estou lá,
Ela sou eu.

Adalgisa Nery
(1905-1980)

Mais sobre Adalgisa Nery em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Adalgisa_Nery

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terça-feira, abril 28, 2009

Em três movimentos, um belíssimo poema de amor de Mario Quintana. Agora, o olhar intensamente verde dela ilumina o seu quarto.


Poema em três movimentos


I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
- como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.

II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu - sem saionara nem nada -
por uma porta diferente.

III

E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.


Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

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Ver na morte o sonho e no ocaso um triste ouro. Assim é a poesia, que é imortal e pobre, para Jorge Luis Borges.



Arte poética


Mirar el río hecho de tiempo y agua
y recordar que el tiempo es otro río,
saber que nos perdemos como el río
y que los rostros pasan como el agua.

Sentir que la vigilia es otro sueño
que sueña no soñar y que la muerte
que teme nuestra carne es esa muerte
de cada noche, que se llama sueño.

Ver en el día o en el año un símbolo
de los días del hombre y de sus años,
convertir el ultraje de los años
en una música, un rumor y un símbolo,

ver en la muerte el sueño, en el ocaso
un triste oro, tal es la poesía
que es inmortal y pobre. La poesía
vuelve como la aurora y el ocaso.

A veces en las tardes una cara
nos mira desde el fondo de un espejo;
el arte debe ser como ese espejo
que nos revela nuestra propia cara.

Cuentan que Ulises, harto de prodigios,
lloró de amor al divisar su Itaca
verde y humilde. El arte es esa Itaca
de verde eternidad, no de prodigios.

También es como el río interminable
que pasa y queda y es cristal de un mismo
Heráclito inconstante, que es el mismo
y es otro, como el río interminable.


Jorge Luiz Borges
(1899-1986)

Mais sobre Jorge Luis Borges em
http://en.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges

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segunda-feira, abril 27, 2009

Há quem pense que sabe como deve ser o poema. Ferreira Gullar confessa que mal sabe como gostaria que ele fosse.


Nasce o poema


há quem pense
que sabe
como deve ser o poema
eu
mal sei
como gostaria que ele fosse

porque eu mudo
o mundo muda
e a poesia irrompe
donde menos se espera
às vezes
cheirando a flor

às vezes
desatada no olor
da fruta podre
que no podre se abisma
(quanto mais perto da noite
mais grita
o aroma)
às vezes
num moer
de silêncio
num pequeno armarinho no Estácio
de tarde:
xícaras empoeiradas
numa caixa de papelão
enquanto os ônibus passam ruidosamente
à porta
e ali
dentro do silêncio
da tarde menor do comércio
do pequeno comércio
do Rio de Janeiro
na loja do Kalil
estaria nascendo o poema?
desabrocharia
o poema
em meio àquelas mercadorias
num invisível caule?
àquela tarde
e próximo ao hospital da Polícia Militar?

Talvez eu não lhe tenha dado tempo
- que o Amilcar estava ansioso
e já se aproximava o ônibus Rio omprido-Leblon.

Assim me fui
e o poema ficou
inaturo
parte no ar da loja
parte como poeira
em meus cabelos.
A verdade porém
é que
onde a poesia sopra
por um átimo de tempo
(de todo o tempo gasto no gás
das galáxias
rugindo)
por um átimo de átimo
que seja
freme o coração acende-se
alguma coisa dourada
na pele
e não importa se é
numa loja
do Estácio de tarde
- numa tarde qualquer perdida na cidade -
enfim
onde ela sopra
(a poesia)

muda-se o tempo
em coisas
eternas
xícaras
prateleiras
carretéis
de linha
que a gente carregará
ou melhor
flutuará
com elas
fora da gravidade
e da morte:
as xí-
caras as
peras podres as
asas do pombo
(o fragor
das asas) as casas
os quintais as aves
os ovos as

flutua o poeta
prenhe do poema.

Tínhamos que tomar aquele maldito ônibus
e voltar para casa
que já quase anoitecera.

Mas
mesmo que eu tivesse ficado ali
(isso foi
em 1955)
nem assim
o poema teria nascido
senão agora neste
hoje nesta
página
pois
a poesia
tem seu próprio tempo e modo
de nascer:
eu de qualquer maneira
teria que ir embora
e nunca mais voltar
à loja do Kalil
para que o poema nascesse
um dia

teria
que viver tardes e noites
de exílio em Santiago
do Chile em Moscou
(mãe
e filha
sob um guarda-sol azul
às três da tarde
na Prospekt Lenina)
longe da loja
o Kalil sentado ao balcão
como numa fotografia
(à margem do pesado tráfego
da Rua Haddock Lobo)
e me deixar levar
para mais e mais longe
para além dos Urais
além de Tcheliábinsk
com seus campos de trigo
verde e a moça
de olhos verdes e a poça
de lodo verde e a praça
de erva verde
erva
verde erva
verde

longe
cada vez mais longe
da loja do Estácio, do barulho
dos ônibus do Estácio

porque o poema
ninguém sabe como nasce como
a vida o engendra
que pétala
entra
em sua composição
que voz
que latido de cão,
ninguém sabe

barulho de avião
por cima da casa
entra no poema?
um bater de asa?
boceta bilha mobotó Inbasa[entram
no poema?

entram
e não entram
que tudo o poema aceita
e rejeita
só não se sabe como
nem onde
nem quando
nem qual é a receita
já que a musa é surda
e muda
e o poema
infenso a toda ajuda.

Por isso mesmo
de nada adiantaria
ter perdido aquele ônibus
para ficar no armarinho
à espera do poema

até que ele explodisse
(a estrofe)
sob meu paletó
feito um pombo
eu

de nada adiantaria
pois um poema
não nasce antes da hora (de sete
meses, de sete
séculos).

A menos que eu ficasse lá
(na loja)
de pé durante trinta e dois anos
(já que estávamos
em 1955)

ou que
todo esse tempo durasse
aquela tarde (de abril
a abril)

e como uma nave
(ou ave)
pousasse agora
na cidade

e ainda asim
não nasceria
porque o tempo não é o mesmo
se dentro ou fora
do armarinho

se pura ideía ou sujo
da matéria dos dias

porque
o que são de fato
os dias?
os anos? os
minutos?

Impossível medir o tempo da vida
a fluir desigual
em cada corpo:
líquido
nos líquidos lento
nos cabelos
sopro
no vento
louro na urina
como medir
o cheiro
da tangerina
que é
clarão
na boca e sonho
na floresta?
como?

Não,
não havia por que
deixar de tomar o ônibus Rio Comprido-Leblon
naquele fim de tarde.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

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O assassinato de Chico Mendes emocionou Eugénio de Andrade em Portugal. E o poeta disse que um dia o universo ficará mais limpo, em todos os sentidos.


Em memória de Chico Mendes


Chegam notícias do Brasil, o Chico
Mendes foi assassinado, a morte
enrola-se agora nos primeiros frios,
nem sequer a tristeza tem sentido,
a bola continua em órbita, um dia
estoira, o universo ficará mais limpo.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

domingo, abril 26, 2009

Meu Deus, que fiz eu da vida? Pelo amor de Deus, parem com isso dentro da minha cabeça, implora Álvaro de Campos em uma noite serena.


Que noite


Que noite serena!
Que lindo luar!
Que linda barquinha
Bailando ao mar!

Suave todo o passado - o que foi aqui de Lisboa - me surge...
O terceiro andar das tias, o sossego de outrora,
Sossego de várias espécies,
A infância sem futuro pensado,
O ruído aparentemente contínuo da máquina de costura delas,
E tudo bom e a horas,
De um bem e de um a-horas próprio, hoje morto.

Meu Deus, que fiz eu da vida?

Que noite serena etc...

Quem é que cantava isso?
Isso estava lá.
Lembro-me mas esqueço.
E dói, dói, dói...

Por amor de Deus, parem com isso dentro de minha cabeça.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1889-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

No belo poema de Vicente de Carvalho, tudo se arranca do seio. Só não se arranca a lembrança de quando se foi feliz.


Saudade


Belos amores perdidos,
Muito fiz eu com perder-vos;
Deixar-vos sim; esquecer-vos
Fora demais, não o fiz.

Tudo se arranca do seio,
- Amor, desejo, esperança...
Só não se arranca a lembrança
De quando se foi feliz.

Vicente de Carvalho
(1866-1964)

Mais sobre Vicente de Carvalho
(1866-1924)

Mais sobre Vicente de Carvalho em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vicente_de_Carvalho

Robert Browning dedicou inúmeros poemas à sua mulher Elizabeth, que é autora de um dos mais belos poemas de amor da língua inglesa. Que casal!


A pretty woman


I

That fawn-skin-dappled hair of hers,
And the blue eye
Dewar and dewy
And that infantine fresh air of hers.

II

To think men cannot take you, Sweet,
And enfold you,
Ay, and hold you,
And so keep you what they make you, Sweet!

III

You look us for a glance, you know -
For a word's sake
Or a sword's sake,
All's the same, whate' er the chance, you know.

IV

And in turn we make you ours, we say -
You and youth too,
Eyes and mouth too,
All the face composed of flowers, we say.

V

All 's our own, to make the most of it, Sweet -
Sing and say for,
Watch and pray for,
Keep a secret or go boast of, Sweet!

VI

But for loving, why, you would not, Sweet,
Though we prayed you,
Paid you, brayed you,
In a mortar - for you could not, Sweet!

VII

So, we leave the sweet face fondly there:
Be its beauty
Its sole duty!
Lets all hope of grace beyond, lie there!

VIII

And while the face lies quiet there,
Who shall wonder
That I ponder
A conclusion? I will try it there.

IX

As, - why must one, for the love foregone,
Scout mere liking?
Thunder-striking
Earth - the heaven, we looked above for, gone!

X

Why, with beauty, needs there money be,
Love with liking?
Crush the fly-king
In his gauze, because no honey-bee?

XI

May not liking be so simply-sweet,
If love grew there
"Twould undo there
All that breaks the cheek to dimples sweet?

XII

Is the creature too imperfect,
Would you mend it
And so end it?
Since not all addition perfects aye!

XIII

Or is it of its kind, perhaps,
Just perfection -
Whence, rejection
Of a grace not to its mind, perhaps?

XIV

Shall we burn up, tread that face at once
Into tinder,
And so hinder
Sparks from kindling all the place at once?

XV

Or else kiss away one's soul on her,
Your love-fancies!
- A sick man sees
Truer, when his hot eyes roll on her!

XVI

Thus the craftsman thinks to grace the rose, -
Plucks a mould-flower
For his gold flower,
Uses fine things that efface the rose.

XVII

Rosy rubies make its cup more rose,
Precious metals
Ape the petals, -
Last, some old king locks it up, morose!

XVIII

Then how grace a rose? I know a way!
Leave it, rather.
Must you gather?
Smell, kiss, wear it - at last, throw away!

Robert Browning
(1812-1889)

Mais sobre Robert Browning em
http://en.wikipedia.org/wiki/Robert_Browning

sábado, abril 25, 2009

No crespo jardim, anêmonas castanhas detêm a mão ansiosa de Drummond. Antes do beijo ritual, na flora pubescente, amor.


Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas


Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
detêm a mão ansiosa: Devagar.
Cada pétala ou sépala seja lentamente
acariciada, céu; e a vista pouse,
beijo abstrato, antes do beijo ritual,
na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Em seu mundo interior, Machado de Assis vê a luz de outro sol, outro abismo. E sente que existe um segredo que atrai, que desafia - e dorme.


Mundo interior


Ouço que a natureza é uma lauda eterna
De pompa, de fulgor, de movimento e lida,
Uma escala de luz, uma escala de vida
De sol à infima luzerna.

Ouço que a natureza, - a natureza externa, -
Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida
Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna
Entre as flores da bela Armida.

E contudo, se fecho os olhos, e mergulho
Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo
Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,

Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,
E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,
Um segredo que atrai, que desafia - e dorme.

Machado de Assis
(1839-1908)

Mais sobre Machado de Assis em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Machado_de_Assis

Nuno Júdice sabe que é preciso viver cada domingo como se fosse o primeiro. Para que o toque dos sinos não dobre por quem não sabe que é domingo.


Domingo no campo


Aos domingos, quando os sinos tocam
de manhã, o que neles se toca é a manhã,
e todas as manhãs que nessa manhã
se juntam, com os dias da infância que
nunca mais acabavam, as casas da aldeia
de portas abertas para quem passava,
as ruas de terra batida onde as carroças
traziam as coisas do campo, os cães que
corriam atrás delas, uma crença no sol
que parecia ter expulso todas as nuvens
do céu, e a eternidade desses domingos
que ficaram na memória, com o ressoar
dos sinos pelos campos para que todos
soubessem que era domingo, e não havia
domingo sem os sinos tocarem a lembrar,
a cada badalada, que os domingos não
são eternos, e que é preciso viver cada
domingo como se fosse o primeiro, para
que o toque dos sinos não dobre por
quem não sabe que é domingo.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

sexta-feira, abril 24, 2009

Para alegrar esta gente, Augusto dos Anjos abre a válvula dos risos. E em seu estilo todo próprio, nos brinda com um poema sobre o Carnaval...


Versos carnavalescos


Digno, como um presidente
- CLOWNESCO, tangendo guisos
Abro a válvula dos risos
Para alegrar esta gente.

Meu povo, não seja leso!
Reparem Manoel Hipólito
Das brincadeiras acólito
E peru de roda obesa.
Vejam como ele está todo teso!
O seu olho não balança.
Mas o que nele a esperança
Estrangula, e o põe de molho,
Não é, meus senhores, o olho
É o promontório da pança.

Boas-noites, seu Mesquita,
Deixe de fazer esgares,
Olhe a seta dos olhares
Daquela moça bonita!
Para que se precipita?!
Coma presuntos e engorde,
Mesquita, não durma, acorde,
V. é lá criancinha?
Agora uma perguntinha:
Seu Mesquita, V. morde?

Que fenomenais arranjos,
Que impulsos de bode esperto,
Será aquele de certo
Dr. Odilon dos Anjos?
Em matéria de marmanjos
Ninguém o excede, em verdade,
Possui tudo: - a exiguidade
Dos seus bigodes de gato;
E aqui não há nenhum rato
Que o vença em sagacidade.

Olha o Benjamim Fernandes,
Sujeito de mãos gorduchas
Que é fabricante de buchas
E tenta transpor os Andes,
Usa umas pernas tão grandes,
Que até me causam receio,
É forte no bamboleio,
Tem pestanas de estopim,
Toma figa, Benjamim,
Vá de retro, bicho feio!

Possuo a harpa de David,
E embora, senhores, peque
Eu faço um salamaleque
À elegância de Nini.
Ninguém me expulsa daqui,
Não há ninguém que me expulse,
Faltam-me as rimas em ulce,
Que sorte aziaga e mesquinha,
Bravos de D. Donzinha
E da elegância de Dulce!

D. Áurea aceite deveras
Meus parabéns, olhe, aceite,
Eu peço que não enjeite
Estas palavras sinceras.
Rasgue as máscaras austeras,
Isto lhe não dá trabalho.
Dr. Nevinha Carvalho,
Responda, não vá embora,
Diga, por que é que a senhora
Não faz versos para O Malho?

Vamos fazer da Folia
Um alegórico mastro!
É D. Eurídice Castro
Quem no-lo fazer devia,
Mas fica para outro dia
Esta exótica incumbência,
A absurda resplandecência
Do carnaval continue
Que o povo, quando se influi
Não interrompe a alegria.

Como um soberbo paxá
Aqui termino. Aqui fico
(Entre parênteses) Chico
Solon ou Chico de Sá.
Como ele, talvez não há,
Raspou noutro dia o andó,
Às vezes, resmunga só
Premeditando atitudes
De elegância, come grudes
E escreve Dulce com O.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Lia Luft aprendeu com a vida que amar é lidar com os espinhos de quem ama por inteiro. Com força, não com fraqueza.


Auto-retrato


Alguém diz que sou bondosa: está tão enganado que dá pena.
Alguém diz que sou severa, e acho graça.
Não sou áspera nem amena: estou na vida como o jardineiro
se entrega em cada rosa: corte, sangue, dor e aroma
para que a beleza fique na memória
quando a flor passa.

(Amar é lidar com os espinhos de quem ama por inteiro: com força, não com fraqueza.)


Lya Luft

Mais sobre Lyz Luft em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

quinta-feira, abril 23, 2009

O amor disse adeus a Manuel Bandeira. E seus amigos o felicitam.


Adeus, amor


O amor disse-me adeus, e eu disse: "Adeus,
Amor! Tu fazes bem: a mocidade
Quer a mocidade." Os meus amigos
Me felicitam: "Como estás bem conservado!"

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Thiago de Mello aprendeu que chega um dia em que o amor, que era infinito, de repente se acaba. De repente, na eternidade amarga de um instante.


A aprendizagem amarga


Chega um dia em que o dia se termina
antes que a noite caia inteiramente.
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
de repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que a lenha já não chega
para acender o fogo da lareira.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
de repente se acaba, de repente.

Força é saber amar, perto e distante,
com o encanto rosa livre na haste,
para que o amor ferido não se acabe
na eternidade amarga de um instante.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

quarta-feira, abril 22, 2009

Cecília Meireles diz que no perfume dos seus dedos há um gosto de sofrimento. E pergunta: por onde é que vou?


Viagem


No perfume dos meus dedos,
há um gosto de sofrimento,
como o sangue dos segredos
no gume do pensamento.

Por onde é que vou?

Fechei as portas sozinha.
Custaram tanto a rodar!
Se chamasse, ninguém vinha.
Para que se há de chamar?

Que caminho estranho!

Eras coisa tão sem forma,
tão sem tempo, tão sem nada...
- arco-íris do meu dilúvio! -
que nem podias ser vista
nem quase mesmo pensada.

Ninguém mais caminha?

A noite bebeu-te as cores
para pintar as estrelas.
Desde então, que é dos meus olhos?
Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.

Quem te alcançará?

Dentro da noite mais densa,
navegarei sem rumores,
seguindo por onde fores
como um sonho que se pensa.

Para onde é que vou?

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Que vale a natureza sem teus Olhos, ó Aquela por quem meu Sangue pulsa? Ó meu amor, por que te ligo à morte? Para ela, perguntas de Ariano Suassuna.


Noturno


Tem para mim Chamados de outro mundo
as Noites perigosas e queimadas,
quando a Lua aparece mais vermelha.
São turvos sonhos, Mágoas proibidas,
são Ouropéis antigos e fantasmas
que, nesse Mundo vivo e mais ardente
consumam tudo o que desejo Aqui.

Será que mais Alguém vê e escuta?

Sinto o roçar das asas Amarelas
e escuto essas Canções encantatórias
que tento, em vão, em mim desapossar.

Diluídos na velha Luz da lua,
a Quem dirigem seus terríveis cantos?

Pressinto um murmuroso esvoejar:
passaram-me por cima da cabeça
e, como um Halo escuso, te envolveram.
Eis-te no fogo, como um Fruto ardente,
a ventania me agitando em torno
esse cheiro que sai de teus cabelos.

Que vale a natureza sem teus Olhos,
ó Aquela por quem meu Sangue pulsa?

Da terra sai um cheiro bom de vida
e nossos pés a Ela estão ligados.
Deixa que teu cabelo, solto ao vento,
abrase fundamente as minhas mãos...

Mas não: a luz Escura inda te envolve,
o vento encrespa as Àguas dos dois rios
e continua a ronda, o Som do fogo.

Ó meu amor, por que te ligo à Morte?

Ariano Suassuna
(1927)

Mais sobre Ariano Suassuna em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ariano_Suassuna

A esperança obriga Cassiano Ricardo a caminhar em círculo, em torno do globo, em torno dele mesmo, em torno de uma mesa de jogo. Amanhã, ele recomeça.


Viagem em círculo

(Repetição)

A esperança me o-
briga a caminhar
em círculo em tor-
no do globo em tor-
no de mim mesmo em
torno de uma mesa
de jogO

até que o zodíaco
pára e a noite cos-
tura-me a boca a
retrós preto/mas
eu fico impresso
no olho do dia o-
bsoletO

viagem em círculo
sem ida nem venida
sem nenhuma aveni-
da/adeus com a mão
esquerda/amanhã
recomeçO

entre e um e outro
julho entre um e
outro crepúsculo a
cidade que busco
como hei de encon-
trá-la/ouço-lhe a
fala mas estou na
outra sala/amanhã
recomeçO

a esperança é um
círculo no zodía-
co na ciranda na
roleta na rosa do
circo na roda do
moinho
amanhã recomeçO

em que lado do glo-
bo terá cessado o
diálogo da ovelha
e do lobO
?

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

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segunda-feira, abril 20, 2009

Em sua ode, Ricardo Reis diz que pouco lhe importa amor ou glória. Para ele, a riqueza é um metal, a glória é um eco e o amor uma sombra.


Tirem-me os deuses


Tirem-me os deuses
Em seu arbítrio
Superior e urdido às escondidas
O Amor, glória e riqueza.

Tirem-me, mas deixem-me,
Deixem-me apenas
A consciência lúcida e solene
Das coisas e dos seres.

Pouco me importa
Amor ou glória,
A riqueza é um metal, a glória é um eco
E o amor uma sombra.

Mas a concisa
Atenção dada
Às formas e às maneiras dos objetos
Tem abrigo seguro.

Seus fundamentos
São todo o mundo,
Seu amor é o plácido Universo,
Sua riqueza a vida.

A sua glória
É a suprema
Certeza da solene e clara posse
Das formas dos objetos.

O resto passa,
E teme a morte.
Só nada teme ou sofre a visão clara
E inútil do Universo.

Essa a si basta,
Nada deseja
Salvo o orgulho de ver sempre claro
Até deixar de ver.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Numa tarde de inverno, Guimarães Rosa lia uma crônica do tempo merovíngio. Até um rádio gritante trazer todo o banzo e o azougue de um samba sensual.


Sonho de uma tarde de inverno


Fiquei, longamente, a ler, no frio
da tarde quieta,
uma crônica do tempo merovíngio,
dos monges da Abadia de Cluny.
E um rádio gritante trouxe pela janela,
todo o banzo e o azougue de um samba sensual:
vôo de cantáridas tontas
no hálito de incenso de uma nave,
fenestrada de ogivas e ventanas
e toda colorida de vitrais...

E no vago torpor do meu subsonho,
vi como trabalhava,
extasiado, na penumbra
parda de um meio inverno,
um monge
rendilhador de jóias de ouro,
discípulo, talvez, de Santo Elói:
depois de modelar um cimo de coroa,
com Virtudes de auréola
em meio de anjos louros,
e de cinzelar,
na pasta de sol frio do rebordo
de um anel real,
uma rosácea, um gládio e um globo,
deixou errar seus dedos e seus sonhos,
e fez crescer, no jalde de um cibório,
o relevo de uma Vênus
com um Cupido ao solo...

E era tão bela a sua idéia de ouro,
e foi tão casto e cristão o beijo longo
que ele pôs na deusa,
que a tênue poeira flava do seu êxtase
de pronto se esvaiu.

E então, febril,
murmurando, constante, um exorcismo,
santificando traços, disfarçandos os nus,
fez depressa da Vênus uma Virgem,
e do pagãozinho alado um menino Jesus.
Depois, sorrindo, o santo joalheiro
rezou, com outro beijo, a sua contrição...

E mil diabinhos crepitaram nas chamas,
rubros, rindo,
porque agora o seu beijo
fora ardente e pagão.

Guimarães Rosa
(1908-1967)

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sábado, abril 18, 2009

Em sua paixão pela estudante, Neruda saíu a caminhar de beijo em beijo. Faminto entre os lábios da terra, devorando com lábios devorados.


La estudiante


Oh tú, más dulce, más interminable
que la dulzura, carnal enamorada
entre las sombras: de otros días
surges llenando de pesado polen
tu copa, en la delicia.

Desde la noche llena
de ultrajes, noche como el vino
desbocado, noche de oxidada púrpura
a ti caí como una torre herida,
y entre las pobres sábanas tu estrella
palpitó contra mí quemando el cielo.

Oh, redes del jasmín, oh fuego físico
alimentado en esta nueva sombra,
tinieblas que tocamos apretando
la cintura central, golpeando el tiempo
com sanguinartias ráfagas de espigas.

Amor sin nada más, en el vacío
de una burbuja, amor con calles muertas,
amor, cuando murió toda la vida
y nos dejó encendiendo los rincones.

Mordí mujer, me hundí desvaneciéndome
desde mi fuerza, atesoré racimos,
y sali a caminar de beso en beso,
atado a las caricias, amarrado
a esta gruta de fría cabellera,
a estas piernas por labios recorridas:
hambriento entre los labios de la tierra,
devorando con labios devorados.


Pablo Neruda
(1904-1973)

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Na criação de Manoel de Barros, a turma caçoou e falou que o menino zoroava. Mas ele continuou a apertar parafuso no vento.


O vidente


Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas
pétalas da noite
E foi contar para a turma.
A turma falou que o menino zoroava.
Logo o menino contou que viu o dia parado em cima
de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: Dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.
A turma falou: Mas como você pode apertar parafuso
no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.


Manoel de Barros

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sexta-feira, abril 17, 2009

João Cabral de Melo caminhava as ruas de uma grande cidade. E os acontecimentos nunca o encontravam.


"Eu caminhava as ruas..."


Eu caminhava as ruas de uma grande cidade
os acontecimentos nunca me encontravam.
Em vão dobrava as esquinas
lia os jornais.
Todos os lugares do crime estavam tomados.

Alguém devia receber
mensagens impossiveis
para os telégrafos mecânicos
voando sobre os telhados.
Alguém partia com os pássaros.
Alguém devia perceber
que as pontes conduzem a Marte.

Os cronômetros traziam presos
o tempo e os homens de negócio.
Tu voltavas a cada trem do horário
com regularidade e nenhum imprevisto.

Podiam-se explicar
sem sombra de tempestade
as criações científicas mais evidentemente a magia negra.

João Cabral de Melo
(1920-1999)

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Florbela não quer apenas ser a moça mais linda do povoado. Ela também quer ser pura como a água da cisterna e ter confiança numa vida eterna.


Rústica


Ser a moça mais linda do povoado,
Pisar, sempre contente, o mesmo trilho,
Ver descer sobre o ninho aconchegado
A bênção do Senhor em cada filho.

Um vestido de chita bem lavado,
Cheirando a alfazema e a tomilho...
- Com o luar matar a sede ao gado,
Dar às pombas o sol num grão de milho...

Ser pura como a água da cisterna,
Ter confiança numa vida eterna
Quando descer à "terra da verdade"...

Meu Deus, dai-me esta calma, esta pobreza!
Dou por elas meu trono de Princesa,
E todos os meus Reinos de Ansiedade.

Flobela Espanca
(1894-1930)

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quinta-feira, abril 16, 2009

Quem já ouviu falar das paixões de Vinicius sabe que este poema tem muito dele mesmo. Menos o final é claro, o poeta era só paz e amor.


História passional, Hollywood, Califórnia


Preliminarmente, telegrafar-te-ei uma dúzia de rosas
Depois te levarei a comer um shop-suey
Se a tarde também for loura abriremos a capota
Teus cabelos ao vento marcarão oitenta milhas.

Dar-me-às um beijo com batom marca indelével
E eu pegarei tua coxa rija como a madeira
Sorrirás para mim e eu porei óculos escuros
Ante o brilho de teus dois mil dentes de esmalte.

Mascaremos cada um uma caixa de goma
E iremos ao Chinese cheirando a hortelã-pimenta
A cabeça no meu ombro sonharás duas horas
Enquanto eu me divirto no teu seio de arame.

De novo no automóvel perguntarei se queres
Me dirás que tem tempo e me darás um abraço
Tua fome reclama uma salada mista
Verei teu rosto através do suco de tomate.

Te ajudarei cavalheiro com o abrigo de chinchila
Na saída constatarei tuas nylon 57
Ao andares, algo em ti range em dó sustenido
Pelo andar em que vais sei que queres dançar rumba.

Beberás vinte uísques e ficarás mais terna
Dançando sentirei tuas pernas entre as minhas
Cheirarás levemente a cachorro lavado
Possuis cem rotações de quadris por minuto.

De novo no automóvel perguntarei se queres
Me dirás que hoje não, amanhã tens filmagem
Fazes a cigarreira num clube de má fama
E há uma cena em que vendes um maço a George Raft.

Telegrafar-te-ei então uma orquídea sexuada
No escritório esperarei que tomes sal de frutas
Vem-te um súbito desejo de comida italiana
Mas queres deitar cedo, tens uma dor de cabeça!

À porta de tua casa perguntarei se queres
Me dirás que hoje não, vais ficar dodói mais tarde
De longe acenarás um adeus sutilíssimo
Ao constatares que estou com a bateria gasta.

Dia seguinte esperarei com o rádio do carro aberto
Te chamando mentalmente de galinha e outros nomes
Virás então dizer que tens comida em casa
De avental abrirei latas e enxugarei pratos.

Tua mãe perguntará se há muito que sou casado
Direi que há cinco anos e ela fica calada
Mas como somos moços, precisamos divertir-nos
Sairemos de automóvel para uma volta rápida.

No alto de uma colina perguntar-te-ei se queres
Me dirás que nada feito, estás com uma dor do lado
Nervoso meus cigarros se fumarão sozinhos
E acabo machucando os dedos na tua cinta.

Dis seguinte vens com um suéter elástico
Sapatos mocassim e meia curta vermelha
Te levo pra dançar um ligeiro jitterbug
Teus vinte deixam os meus trinta e pouco cansados.

Na saída te vem um desejo de boliche
Jogas na perfeição, flertando o moço ao lado
Dás o telefone a ele e perguntas se me importo
Finjo que não me importo e dou saída no carro.

Estás louca para tomar uma coca gelada
Debruças-te sobre mim e me mordes o pescoço
Passo de leve a mão no teu joelho ossudo
Perdido de repente numa grande piedade.

Depois pergunto se queres ir ao meu apartamento
Me matas a pergunta com um beijo apaixonado
Dou um soco na perna e aperto o acelerador
Finges-te de assustada e falas que dirijo bem.

Que é daquele perfume que eu te tinha prometido?
Compro o Chanel 5 e acrescento um bilhete gentil
"Hoje vou lhe pagar um jantar de vinte dólares"
E se ela não quiser, juro que não me responsabilizo..."

Vens cheirando a lilás e com saltos, meu Deus, tão altos
Que eu fico lá embaixo e com um ar avacalhado
Dás ordens ao garçom de caviar e champanha
Depois arrotas de leve me dizendo I beg your pardon.

No carro distraído deixo a mão na tua perna
Depois vou te levando para o alto de um morro
Em cima tiro o anel, quero casar contigo
Dizes que só acedes depois do meu divórcio.

Balbucio palavras desconexas e esdrúxulas
Quero romper-te a blusa e mastigar-te a cara
Não tens medo nenhum dos meus loucos arroubos
E me destroncas o dedo com um golpe de jiu-jitsu.

Depois tiras da bolsa uma caixa de goma
E mascas furiosamente dizendo barbaridades
Que é que eu penso que és, se não tenho vergonha
De fazer tais propostas a uma moça solteira.

Balbucio uma desculpa e digo que estava pensando...
Falas que eu pense menos e me fazes um agrado
Me pedes um cigarro e riscas o fósforo com a unha
E eu fico boquiaberto diante de tanta habilidade.

Me pedes para te levar a comer uma salada
Mas de súbito me vem uma consciência estranha
Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim
E odeio-te de ruminares assim a minha carne.

Então fico possesso, dou-te um murro na cara
Destruo-te a carótida a violentas dentadas
Ordenho-te até o sangue escorrer entre meus dedos
E te possuo assim, morta e desfigurada.

Depois arrependido choro sobre o teu corpo
E te enterro numa vala, minha pobre namorada...
Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo
E seis meses depois morro na câmara de gás.


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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As mãos que escrevem isto, um dia iam ser de sacerdote, confessa Leminski. Hoje transformam palavras, num misto entre o óbvio e o nunca visto.


Sacro lavoro


as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

hoje tranformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto


Paulo Leminski
(1944-1989)

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Ana Cristina Cesar sabe que não é mentira. É outra a dor que dói nela.


Fisionomia


Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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quarta-feira, abril 15, 2009

Alberto Caeiro diz que nunca guardou rebanhos, mas é como se os guardasse. E que ser poeta não é uma ambição sua, mas a sua maneira de estar sozinho.


Eu nunca guardei rebanhos


Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pelas mãos das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da Natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.

Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.

Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.

Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.

Não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.

E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.

Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
No cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,
Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.

Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me vêem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural -
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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"Se", de Paulo Mendes Campos para seu filho. E para todos nós.


"If"



Meu filho, se acaso chegares, como eu cheguei a uma campina de horizontes
arqueados, não te intimidem o uivo do lobo, o bramido do tigre;
enfrenta-os nas esquinas da selva, olhos nos olhos, dedo firme no
gatilho.

Meu filho, se acaso chegares a um mundo injusto e triste como este em
que vivo, faze um filho; para que ele alcance um tempo mais longe
e mais puro, e ajude a redimi-lo.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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Coisas, coisas, vos amei por excesso. E a despeito do amor, as coisas todas se fizeram ao mar, lamenta Carlos Nejar em seus versos.


Coisas, coisas


A despeito do amor,
as coisas todas
de fizeram ao mar.
Não quis retê-las.
Não conheci regresso.
Coisas, coisas
vos amei por excesso.
E o universo
me foi alto preço.

Todos os bens
vendidos em leilão.
O ar vendido.
Os rios.
As estações.

Comprei arrobas de chuva
ao meu pomar.
Trouxe neblina
de arrasto
pela morte.

Comprei a noite
e dei o menor lance
ao horizonte.

Coisas, coisas,
vos amei por excesso.

Carlos Nejar

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segunda-feira, abril 13, 2009

Drummond diz que se procurar bem, você acaba encontrando. Palavra de quem entende (e muito) do assunto.


Lembrete


Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Para Sophia de Mello Breyner, o poema é a liberdade. Sílaba por sílaba ele emerge, e como se os deuses o dessem, o fazemos.


Liberdade


O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
- Sílaba por sílaba -
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
- Como se os deuses o dessem
O fazemos.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

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sábado, abril 11, 2009

Cadáveres boiaram, o padre esqueceu de fazer o sinal da cruz, o marido fez um grande esforço para ressuscitar no terceira dia. Por causa de Jandira.


Jandira


O mundo começava nos seios de Jandira.

Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados,
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...

Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés.
Todas as partes do mecanismo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira,
Deixavam noivas, esposas, mães, irmãs
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andou tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.

E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva,
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.

E o marido de Jandira
Morreu de epidemia de gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

E as filhas de Jandira
Inda parecem mais velhas do que ela.
E Jandira não morre,
Espera que os clarins do juízo final
Venham chamar seu corpo,
Mas eles não vêm.
E mesmo que venham, o corpo de Jandira
Ressuscitará ainda mais belo, ágil e transparente.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Quem sente o meu sentimento, quem sofre o meu sofrimento, quem estremece o meu estremecimento, sou eu só. De António Gedeão, só, em seu belo poema.


Poema do homem só


Sós,
irremediavelmente sós,
como um astro perdido que arrefece.
Todos passam por nós
e ninguém nos conhece.

Os que passam e os que ficam.
Todos se desconhecem.
Os astros nada explicam:
Arrefecem.

Nesta envolvente solidão compacta,
quer se grite ou não se grite,
nenhum dar-se de outro se refracta,
nenhum ser nós se transmite.

Quem sente o meu sentimento
sou eu só, e mais ninguém.
Quem sofre o meu sofrimento,
sou eu só, e mais ninguém.
Quem estremece este meu estremecimento
sou eu só, e mais ninguém.

Dão-se os lábios, dão-se os braços
dão-se os olhos, dão-se os dedos,
bocetas de mil segredos
dão-se em pasmados compassos;
dão-se as noites, e dão-se os dias,
dão-se aflitivas esmolas,
abrem-se e dão-se as corolas
breves das carnes macias;
dão-se os nervos, dá-se a vida,
dá-se o sangue gota a gota,
como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto
que no silêncio concreto,
este oferecer-se de dentro
num esgotamento completo,
este ser-se sem disfarçe,
virgem de mal e de bem,
este dar-se, este entregar-se,
descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso, de mais ninguém.

António Gedeão
(1906-1997)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/R%C3%B3mulo_de_Carvalho

Somos o par mais poético e perfeito dos últimos românticos. Ah! pudessem fundir-se nossas vidas, no sonho de amor de Guilherme de Almeida.


Os últimos românticos


Deixas, enquanto o luar branqueia o espaço,
pela escada de seda, o parapeito...
E vens, leve e ainda quente do teu leito,
como um sono de tule, por meu braço...

Somos o par mais poético e perfeito
dos últimos românticos...Teu passo,
cantando no jardim, marca o compasso
do coração que bate no meu peito.

Depois partes e eu fico. E às escondidas,
sobre a volúpia verde das alfombras,
minha sombra confunde-se na tua...

Ah! pudessem fundir-se nossas vidas
como se fundem nossas duas sombras,
sob o mistério pálido da luz!

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida

quinta-feira, abril 09, 2009

Minha terra não tem palmeiras e em vez de um mero sabiá, cantam aves invisíveis nas palmeiras que não há. A Canção do Exílio, por Mario Quintana.


Uma canção


Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.

Minha terra tem relógios,
Cada qual com sua hora
Nos mais diversos instantes...
Mas onde o instante de agora?

Mas onde a palavra "onde"?
Terra ingrata, ingrato filho,
Sob os céus da minha terra
Eu canto a Canção do Exílio!


Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida. No verso de Camões, toda a bela história do amor de Jacó por Raquel.


Sete anos de pastor


Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
mas não servia ao pai, servia a ela,
e a ela só por prêmio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
passava, contentando-se com vê-la;
porém o pai, usando de cautela,
em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
lhe fora assim negada a sua pastora,
como se a não tivera merecida;

começa de servir outros sete anos,
dizendo: Mais servira, se não fora
para tão longo amor tão curta a vida.

Luíz Vaz de Camões
(1524-1580)

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Neste lindo poema, o pranto de Alphonsus de Guimaraens pela morte daquela que foi o único amor de sua vida. Por que não vieram juntos?


Hão de chorar por ela os cinamomos


Hão de chorar por ela os cinamomos,
murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão: "Ai - nada somos
Pois ela se morreu silente e fria..."
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?"

Alphonsus de Guimaraens
(1870-1891)

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quarta-feira, abril 08, 2009

Em seu improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa, Ferreira Gullar ensina que os homens se amparam em retratos. Ou no coração dos outros homens.


Improviso ordinário sobre a Cidade Maravilhosa


Comove-me pensar
que nas porcelanas e cristais da Casa Maillet
na Rua dos Ourives
num dia qualquer do ano de 1847, nesta cidade do Rio de Janeiro,
(na borda de um cálice)
cintilava a uma luz da tarde
e lá fora
onde a tarde nada tinha do bom-tom parisiense
entre carroças puxadas a burro e homens suados
negros no ganho
o vento levantava a poeira do dia e do século
(entranhado na carne das pessoas
e que com elas
haveria de morrer).

Sem sacanagem,
me comove pensar na tranquilidade da loja
fundada em 1843
com suas estantes de vidro
cheias de preciosidades
- vasos, taças, jarros -
que tocaram o coração de algumas poucas
senhoras cariocas
de gosto requintado e vida vã.

E se penso na loja penso na cidade
desdobrando-se em ruelas, becos e ladeiras,
em sobrados e igrejas,
fervilhando no mercado da Rua do Valongo
onde se leiloavam escravos
enquanto no porto
os navios rangiam o madeirame
sobre as águas dessa mesma baía que ora vemos
atual e azul.
E que
ainda mais azul já a tinham visto
outros olhos humanos
que se apagaram
antes muito antes que houvesse este cais
entre igrejas e praças
o pelourinho
o Mosteiro de São Bento
muito antes que alguma voz de branco ecoasse neste cenário
onde tudo são serranias e rochedos espantosos
com a baía dançando na atualidade do paraíso.

Possivelmente de luvas
(que já então se usavam luvas
na cidade de pouco asseio
e muitas putas)
madame aponta
para uma porcelana de Sévres
e lhe pergunta o preço.

A tarde é quente
na cidade de S.Sebastião do Rio de Janeiro
com suas cadeias apinhadas de presos
respirando o fedor de seus próprios dejetos
arrastando correntes
para ir mendigar no meio da rua,
que o governo não alimenta criminosos.
O governo alimenta nobres
e ladrões finos
ministros, ouvidores, provedores
que empoam a cabeleira
e se cumprimentam com trejeitos importados
se se cruzam nas ruas, no Fórum, nos salões.

Já ninguém anda nu neste cenário
que os brancos
há séculos nos trouxeram a moral e os bons costumes
além da sífilis.
Não obstante, àquela altura
já a cidade transbordava de bastardos e amásias
amores noturnos
que aconteciam por todas as partes
e especialmente nos conventos.
De nada (ou muito?) valeu
a recomendação de Manuel Nóbrega, pedindo ao Rei
que à nova terra mandasse meretrizes
para evitar pecados e aumentar a população a serviço de Deus.
E a população cresceu
a serviço de Deus e de tantos outros
senhores de tez clara
donos de escravos e de terras
que se foram sucedendo
a serviço de Deus e das empresas
agora multinacionais.

Sem sacanagem,
na cidade onde havia mais leprosos que cães vagando pelas ruas,
comove-me saber que
em 1788
estava na moda o guarda-sol branco
em 1789
o verde
e que em 1904 o desbunde eram
os guarda-sóis azuis
de sarja ou tafetá.

Ah, cidade maliciosa
de olhos de ressaca
que das índias guardou a vontade de andar nua
e que, apesar do Toque do Aragão,
do Recolhimento do Parto
e do Prefeito Amaro Cavalcanti
- impondo em 1917 a moralidade rigorosa
nos banhos de mar -
despe-se novamente hoje nas areias de Ipanema.

De pouco valeu manter analfabetas
as mulheres da cidade,
proibi-las de ir à rua,
dopá-las com emulsões de castidade.
Não houve jeito senão criar a Roda
e mais tarde
os hotéis de alta rotatividade.
A população cresceu.
Cresceu talvez não bem como o queriam
o padre Cepeda
e o poeta Bilac.

Cresceu festiva e arruaceira,
mais chegada ao batuque que à novena,
convencida de que só vale a pena
viver se é
pra assistir ao Fla-Flu e arriscar na centena.
Sem falar, claro está, no seu "bacano"
que só pensa na Bolsa e no carro do ano.

Uma cidade é
um amontoado de gente sem terra.
Antes não, nem tanto, antes
havia quintal e no Campo de Santana
as negras lavadeiras
estendiam na grama a roupa enxaguada.
Ah, que saudade de ver roupas na grama!
Já não,
já não que a lira tenho desatinada
e a voz enrouquecida
e não do canto
mas de ver que venho
falar de uma cidade endurecida,
falar de uma cidade poluída
falar de uma cidade
onde a vida é
cada dia menos do que a vida:
asfalto asfalto asfalto
e mais assalto
na Tijuca, na Penha, na Avenida
Nossa Senhora de Copacabana
em pleno dia.
Uma cidade
é um amontoado de gente que não planta
e que come o que compra
e pra comprar se vende.
Uma cidade, como a nossa, é
um labirinto de arranha-céus e transações financeiras,
um mercado de brancos
(de negros, de mulatos,
de malucos)
uma multiplicada Rua do Valongo.
Vendem-se frutas, carnes congeladas,
vendem-se couves, conas, inspiradas
canções de amor, poemas, vendem-se jornadas
inteiras de vida,
noites de sono,
vende-se até o futuro
e a morte
às companhias de seguro.

A tarde se apagou.
As porcelanas
não brilham mais na Rua dos Ourives.
A Casa Maillet fechou as portas
e seu dono fechou o paletó.
De paletó fechado, de camisa
ou sem camisa,
ricos e negros, brancos e pobres,
mulatos, mamelucos,
todos os que passavam pela rua
àquela hora
(quando a mulher de luvas perguntou
pelo preço do vaso)
se foram
com o sol, o pó e os guarda-sóis da época.
A noite
que ardeu nos lampiões de óleo
(depois de gás)
aquela noite e as muitas outras noites
passaram recendendo a carbureto e esperma
voando lentas sobre o Mangue
os nas asas dos aviões
que descem de entre as constelações do céu.
E vem a manhã.
A cidade dá curso à sua história
(de féretros verões e diarréias)
em frente ao mar.
Carregados de dívidas, CPF, relógio de pulso,
entre desastres ecológicos, sob os temporais
de janeiro,
viajamos com ela
pelos espaços estelares,
velozmente.

Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Lá vem o acendedor de lampiões da rua, canta Jorge de Lima. Ele que doura a noite e ilumina a cidade, talvez não tenha luz na choupana em que habita.


O acendedor de lampiões


Lá vem o acendedor de lampiões da rua!
Este mesmo que vem infatigavelmente,
Parodiar o sol e associar-se à lua
Quando a sombra da noite enegrece o poente!

Um, dois, três lampiões, acende e continua
Outros mais a acender imperturbavelmente,
À medida que a noite aos poucos se acentua
E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita: -
Ele que doura a noite e ilumina a cidade,
Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua
Crenças, religiões, amor, felicidade,
Como este acendedor de lampiões da rua!

Jorge de Lima
(1893-1953)

Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima

No belo poema de Maria Teresa Horta, o amor de que ela se cala e não diz. Amor já saudade, amor já instinto.


Saudade


Saudade já saudade
antes saudade
amor de te não ver
porque pressinto

se sinto que te ter
é não saber
distância já agora
e que não minto

Amor de que me calo
e te não digo

amor já saudade
já instinto

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

segunda-feira, abril 06, 2009

Em versos de amor e paixão, Vinicius diz que faz tudo que ela quiser. Se ela deixar, até um gurizinho...


Amor nos três pavimentos


Eu não sei tocar, mas se você pedir
Eu toco violino fagote trombone saxofone.
Eu não sei cantar, mas se você pedir
Dou um beijo na lua, bebo mel himeto
Pra cantar melhor.
Se você pedir eu mato o papa, eu tomo cicuta
Eu faço tudo que você quiser.

Você querendo, você me pede, um brinco, um namorado
Que eu te arranjo logo.
Você quer fazer verso? É tão simples!...você assina
Ninguém vai saber.
Se você me pedir, eu trabalho dobrado
Só pra te agradar.

Se você quisesse!...até na morte eu ia
Descobrir poesia.
Te recitava as Pombas, tirava modinhas
Pra te adormecer.
Até um gurizinho, se você deixar
Eu dou pra você...

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Mores em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes

Cora Coralina conta em versos porque todos gostam de Maria. São estas coisas dos Reinos da Cidade de Goiás.


Coisas de Goiás: Maria


Maria, das muitas que rolam pelo mundo.
Maria pobre. Não tem casa nem morada.
Vive como quer.
Tem seu mundo e suas vaidades. Suas trouxas e seus botões.
Seus haveres. Trouxa de pano na cabeça.
Pedaços, sobras, retalhada.
Centenas de botões, desusados, coloridos, madre-pérola, louça,
vidro, plástico, variados, pregados em tiras pendentes.
Enfeitando. Mostruário.
Tem mais, uns caídos, bambinelas, enfeites, argolas, coisas dela.
Seus figurinos, figurações, arte decorativa,
criação, inventos de Maria.
Maria grampinho, diz a gente da cidade.
Maria sete saias, diz a gente impiedosa da cidade.
Maria. Companheira certa e compulsada.
Inquilina da Casa Velha da Ponte...
Digo mal. Usucapião tem ela, só de meu tempo,
vinte e seis anos.
Tão grande a Casa Velha da Ponte...
Tão vazia de gente, tão cheia de sonhos, fantasmas e papelada,
tradicionais papéis de circunstância.
Seus fantasmas, enterro de ouro. Lendas e legendas.
Cabem todas as Marias desvalidas do mundo e da minha cidade.
Quem foi o pai, e a mãe e a avó de Maria?
Quantos anos tem Maria? Como foi que nasceu? De que jeito sobreviveu?
Estacou no tempo, procura sempre no quintal seus grampinhos
repassados na densa e penteada camada capilar,
onde acomoda em equilíbrio singular seus misterios...
Teres e mordomias e seus botões alegres, coloridos, seriados,
chapeando a veste, que por ser pobre não deixa de ser nobre,
resguarda sua nudez casta, inviolada.
Sete blusas, sete saias, remendos, cento de botões
cem números de grampinhos. Muito séria, não dá confiança.
Garrafa de plástico inseparável. Água, leite, mezinha, será...
Entre Maria, a casa é sua.
Nem precisa mandar. Seus direitos sem deveres,
vai pela manhã e volta pela tarde.
Suas saias, seus botões, seus grampinhos, seu sério,
muda e certa.
Maria é feliz. Não sabe dessas coisas sutis e tem quem a ame.
Uma família distinta da cidade, que a conheceu em tempos
dá referência: Maria tinha até leitura e fazia croché,
ponto de marca, costurava.
Tem a moça Salma, humana e linda, flor da cidade,
luz da sociedade goiana, ela preza Maria e fala
como fala a generosidade das jovens: Maria me contava estórias
quando eu era pequena.
Fui carregada nos braços da Maria.

Meus filhos e netos quando chegam perguntam:
"E Maria, ainda dorme aqui?"
Todos gostam de Maria, e eu também.

Estas coisas dos Reinos
da
Cidade de Goiás.

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

O estoque de amor que Mário Faustino acumulou, ninguém veio comprar a preço justo. Sozinho, ele agora vai por seus infernos.


Soneto antigo


Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

Mário Faustino
(1930-1962)

Mais sobre Mário Faustino em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Faustino

sábado, abril 04, 2009

Símbolos, tudo símbolos, se calhar tudo é símbolos, diz Álvaro de Campos. E pergunta: serás tu um símbolo também?


Psiquetipia (ou Psicotipia)


Símbolos. Tudo símbolos...
Se calhar, tudo é símbolos...
Serás tu um símbolo também?

Olho, desterrado de ti, as tuas mãos brancas
Postas, com boas maneiras inglesas, sobre a toalha da mesa.
Pessoas independentes de ti...
Olho-as: também serão símbolos?
Então todo o mundo é símbolo e magia?
Se calhar é...
E por que não há de ser?

Símbolos...
Estou cansado de pensar...
Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham.
Sorris, sabendo bem em que eu estava pensando...

Meu Deus! e não sabes...
Eu pensava nos símbolos...
Respondo fielmente à tua conversa por cima da mesa...
"It was very strange, wasn't it?"
"Awfully strange. And how did it end?"
"Well, it didn't end. It never does, you know."
Sim, you know...Eu sei...
Sim, eu sei...
É o mal dos símbolos, you know.
Yes, I know.
Conversa perfeitamente natural...Mas os símbolos?
Não tiro os olhos de tuas mãos...Quem são elas?
Meu Deus! Os símbolos...Os símbolos...

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Pouco antes do horror da guerra, Brecht dedicou este lindo poema aos que iam nascer. Para quando chegasse o momento do homem ser parceiro do homem.


Aos que vão nascer


1

É verdade, eu vivo em tempos negros.
Palavra inocente é tolice. Uma testa sem rugas
Indica insensibilidade. Aquele que ri
Apenas não recebeu ainda
A terrível notícia.

Que tempos são esses, em que
Falar de árvores é quase um crime
Pois implica silenciar sobre tantas barbaridades?
Aquele que atravessa a rua tranquilo
Não está mais ao alcance de seus amigos
Necessitados?

Sim, ainda ganho meu sustento
Mas acreditem: é puro acaso. Nada do que faço
Me dá direito a comer a fartar
Por acaso fui poupado (Se minha sorte acaba, estou perdido!)

As pessoas me dizem: Coma e beba! Alegre-se porque tem!
Mas como posso beber e comer, se
Tiro o que como ao que tem fome
E meu copo d'água falta ao que tem sede?
E no entanto eu como e bebo.

Eu bem gostaria de ser sábio
Nos velhos livros se encontra o que é sabedoria:
Manter-se afastado da luta do mundo e a vida breve
Levar sem medo
E passar sem violência
Pagar o mal com o bem
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los
Isto é sábio.
Nada disso sei fazer:
É verdade, eu vivo em tempos negros.

2

À cidade cheguei em tempo de desordem
Quando reinava a fome.
Entre os homens cheguei em tempo de tumulto
E me revoltei junto com eles.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

A comida comi entre as batalhas
Deitei-me para dormir entre os assassinos
Do amor cuidei displicente
E impaciente contemplei a natureza.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As ruas de meu tempo conduziam ao pântano.
A linguagem denunciou-me ao carrasco.
Eu pouco podia fazer. Mas os que estavam por cima
Estariam melhor sem mim, disso tive esperança.
Assim passou o tempo
Que sobre a terra me foi dado.

As forças eram mínimas. A meta
Estava bem distante.
Era bem visível, embora para mim
Quase inatingível.
Assim passou o tempo
Que nesta terra me foi dado.

3

Vocês, que emergirão do dilúvio
Em que afundamos
Pensem
Quando falarem de nossas fraquezas
Também nos tempos negros
De que escaparam.
Andávamos então, trocando de países como de sandálias
Através das lutas de classes, desesperados
Quando havia só injustiça e nenhuma revolta.

Entretanto sabemos:
Também o ódio à baixeza
Deforma as feições.
Também a ira pela injustiça
Torna a voz rouca. Ah, e nós
Que queríamos preparar o chão para o amor
Não pudemos nós mesmos ser amigos.

Mas vocês, quando chegar o momento
Do homem ser parceiro do homem
Pemsem em nós
Com simpatia.

Bertolt Brecht
(1898-1956)

Mais sobre Bertolt Brecht em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Adélia Prado diz que não quer mais amar Jonathan. Está cansada desse amor sem mimos, destinado a tornar-se um amor de velhos.


Mais uma vez


Não quero mais amar Jonathan.
Estou cansada desse amor sem mimos,
destinado a tornar-se um amor de velhos.
Oh! nunca falei assim -
um amor de velhos.
Ainda bem que é mentira.
Mesmo que Jonathan me olvide
e esta canção desafine
como um bolero ruim,
permaneço querendo a bicicleta holandesa
e mais tarde a cripta gótica
pra nossos olhos dormirem.
Ó Jonathan,
não depende de você
que a cornucópia invisível jorre ouro.
Nem de mim.
Quero enfear o poema
pra te lançar meu desprezo,
em vão.
Escreve-o quem me dita as palavras,
escreve-o por minha mão.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

quinta-feira, abril 02, 2009

Carlos Drummond de Andrade diz que o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Não é igual a nada, todo ser humano é um estranho ímpar.


Igual-Desigual


Eu desconfiava:
todas as histórias em quadrinho são iguais.
Todos os filmes norte-americanos são iguais.
Todos os filmes de todos os países são iguais.
Todos os best-sellers são iguais.
Todos os campeonatos nacionais e internacionais de futebol são
iguais.
Todos os partidos políticos
são iguais.
Todas as mulheres que andam na moda
são iguais.
Todas as experiências de sexo
são iguais.
Todos os sonetos, gazéis, virelais, sextinas e rondós são iguais
e todos, todos
os poemas em verso livre são enfadonhamente iguais.

Todas as guerras do mundo são iguais.
Todas as fomes são iguais.
Todos os amores, iguais iguais iguais.
Iguais todos os rompimentos.
A morte é igualíssima.
Todas as criações da natureza são iguais.
Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferentes, são iguais.
Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa.
Não é igual a nada.
Todo ser humano é um estranho
ímpar.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Meu coração lá de longe faz sinal que quer voltar, diz Paulo Leminski. E pergunta: pra que me serve um negócio que não cessa de bater?


Além-alma

(uma grama depois)

Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
Já no peito trago em bronze:
NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.
Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
Mais parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Para Eugénio de Andrade, no ardor do verão todo o rumor é ave. Voa coração, ou então arde.


Epitáfio


Barcos ou não
ardem na tarde.

No ardor do verão
todo o rumor é ave.

Voa coração.
Ou então arde.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quarta-feira, abril 01, 2009

Manuel Bandeira tem tudo quanto quer. Mas também quer a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


Belo Belo


Belo Belo Belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de contelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tento tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Com este lindo poema, Sophia de Mello Breyner comemora a Revolução dos Cravos. A madrugada que ela esperava para ver Portugal livre do salazarismo.


25 de Abril


Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emrgimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Para Affonso Romano de Sant'Anna, um corpo só, é como fruto na pirâmide: - não vinga. Um corpo só, é quando amadurece a própria morte.


A solidão do corpo


Na solidão,
o corpo pode gritar
ou fincar-se como um mastro,
que nem a dor e o alíseo vento
lhe trarão de volta a chave.

Nada há de pélagos e escarpas
no senho do que se esculpiu de trevas,
antes,
é liso e verde como um fruto inteiro.

Parece que dorme.
Há desalinho nos braços e cabelos.
As partes
despojadas sobre o branco pasto do lençol.

Parece de pedra
com sua andadura móvel nas calçadas
e um senho opaco em meio às roupas.

Um corpo só,
é como fruto na pirâmide:
- não vinga.

Se queima em seus desertos
e arde suas dormências,
mas não conhece reflexo.

É opaco
como se alheio às artimanhas nos telhados,
aos veludos na calçada
e alheio à luva sobre a chave.

Um corpo só,
é duro como a rocha
que não se penetra de espadas,
que não se penetra de falas,
que não se penetra de asas.

A um corpo só,
nem raios lhe abrem o riso,
nem seus cabelos dão ninhos.

Um corpo só,
é quando amadurece a própria morte.

Affonso Romano de Sant'Anna

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna