segunda-feira, abril 27, 2009
Há quem pense que sabe como deve ser o poema. Ferreira Gullar confessa que mal sabe como gostaria que ele fosse.
Nasce o poema
há quem pense
que sabe
como deve ser o poema
eu
mal sei
como gostaria que ele fosse
porque eu mudo
o mundo muda
e a poesia irrompe
donde menos se espera
às vezes
cheirando a flor
às vezes
desatada no olor
da fruta podre
que no podre se abisma
(quanto mais perto da noite
mais grita
o aroma)
às vezes
num moer
de silêncio
num pequeno armarinho no Estácio
de tarde:
xícaras empoeiradas
numa caixa de papelão
enquanto os ônibus passam ruidosamente
à porta
e ali
dentro do silêncio
da tarde menor do comércio
do pequeno comércio
do Rio de Janeiro
na loja do Kalil
estaria nascendo o poema?
desabrocharia
o poema
em meio àquelas mercadorias
num invisível caule?
àquela tarde
e próximo ao hospital da Polícia Militar?
Talvez eu não lhe tenha dado tempo
- que o Amilcar estava ansioso
e já se aproximava o ônibus Rio omprido-Leblon.
Assim me fui
e o poema ficou
inaturo
parte no ar da loja
parte como poeira
em meus cabelos.
A verdade porém
é que
onde a poesia sopra
por um átimo de tempo
(de todo o tempo gasto no gás
das galáxias
rugindo)
por um átimo de átimo
que seja
freme o coração acende-se
alguma coisa dourada
na pele
e não importa se é
numa loja
do Estácio de tarde
- numa tarde qualquer perdida na cidade -
enfim
onde ela sopra
(a poesia)
muda-se o tempo
em coisas
eternas
xícaras
prateleiras
carretéis
de linha
que a gente carregará
ou melhor
flutuará
com elas
fora da gravidade
e da morte:
as xí-
caras as
peras podres as
asas do pombo
(o fragor
das asas) as casas
os quintais as aves
os ovos as
flutua o poeta
prenhe do poema.
Tínhamos que tomar aquele maldito ônibus
e voltar para casa
que já quase anoitecera.
Mas
mesmo que eu tivesse ficado ali
(isso foi
em 1955)
nem assim
o poema teria nascido
senão agora neste
hoje nesta
página
pois
a poesia
tem seu próprio tempo e modo
de nascer:
eu de qualquer maneira
teria que ir embora
e nunca mais voltar
à loja do Kalil
para que o poema nascesse
um dia
teria
que viver tardes e noites
de exílio em Santiago
do Chile em Moscou
(mãe
e filha
sob um guarda-sol azul
às três da tarde
na Prospekt Lenina)
longe da loja
o Kalil sentado ao balcão
como numa fotografia
(à margem do pesado tráfego
da Rua Haddock Lobo)
e me deixar levar
para mais e mais longe
para além dos Urais
além de Tcheliábinsk
com seus campos de trigo
verde e a moça
de olhos verdes e a poça
de lodo verde e a praça
de erva verde
erva
verde erva
verde
longe
cada vez mais longe
da loja do Estácio, do barulho
dos ônibus do Estácio
porque o poema
ninguém sabe como nasce como
a vida o engendra
que pétala
entra
em sua composição
que voz
que latido de cão,
ninguém sabe
barulho de avião
por cima da casa
entra no poema?
um bater de asa?
boceta bilha mobotó Inbasa[entram
no poema?
entram
e não entram
que tudo o poema aceita
e rejeita
só não se sabe como
nem onde
nem quando
nem qual é a receita
já que a musa é surda
e muda
e o poema
infenso a toda ajuda.
Por isso mesmo
de nada adiantaria
ter perdido aquele ônibus
para ficar no armarinho
à espera do poema
até que ele explodisse
(a estrofe)
sob meu paletó
feito um pombo
eu
de nada adiantaria
pois um poema
não nasce antes da hora (de sete
meses, de sete
séculos).
A menos que eu ficasse lá
(na loja)
de pé durante trinta e dois anos
(já que estávamos
em 1955)
ou que
todo esse tempo durasse
aquela tarde (de abril
a abril)
e como uma nave
(ou ave)
pousasse agora
na cidade
e ainda asim
não nasceria
porque o tempo não é o mesmo
se dentro ou fora
do armarinho
se pura ideía ou sujo
da matéria dos dias
porque
o que são de fato
os dias?
os anos? os
minutos?
Impossível medir o tempo da vida
a fluir desigual
em cada corpo:
líquido
nos líquidos lento
nos cabelos
sopro
no vento
louro na urina
como medir
o cheiro
da tangerina
que é
clarão
na boca e sonho
na floresta?
como?
Não,
não havia por que
deixar de tomar o ônibus Rio Comprido-Leblon
naquele fim de tarde.
Ferreira Gullar
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