quarta-feira, fevereiro 04, 2009
- Sou a Cobra Norato, vou me amasiar com a filha da rainha Luzia. Assim, o modernista Raul Bopp escreveu um dos mais importantes poemas brasileiros.
Cobra Norato
(trechos)
I
Um dia
eu hei de morar nas terras do Sem-Fim
Vou andando caminhando caminhando
Me misturo no ventre do mato mordendo raíses
Depois
faço puçanga de flor de tajá de lagoa
e mando chamar a Cobra Norato
- Quero contar-te uma história
Vamos passear naquelas ilhas decotadas?
Faz de conta que há luar
A noite chega mansinho
Estrelas conversam em voz baixa
Brinco então de amarrar uma fita no pescoço
e estrangulo a Cobra.
Agora sim
me enfio nessa pele de seda elástica
e saio a correr mundo
Vou visitar a Rainha Luzia
Quero me casar com sua filha
- Então você tem que apagar os olhos primeiro
O sono escorregou nas pálpebras pesadas
Um chão de lama rouba a força dos meus passos
II
Começa agora a floresta cifrada
A sombra escondeu as árvores
Sapos beiçudos espiam no escuro
Aqui um pedaço de mato está de castigo
Arvorezinhas acocoram-se no charco
Um fio de água atrasada lambe a lama
- Eu quero é ver a filha da rainha Luzia!
Agora são os rios afogados
bebendo o caminho
A água resvala pelos atoleiros
afundando afundando
Lá adiante
a areia guardou os rastos da filha da rainha Luzia
- Agora sim
vou ver a filha da rainha Luzia
Mas antes tem que passar por sete portas
Ver sete mulheres brancas de ventre despovoados
guardadas por um jacaré
- Eu só quero a filha da rainha Luzia
Tem que entregar a sombra para o Bicho do Fundo
Tem que fazer mirongas na lua nova
Tem que beber três gotas de sangue
Ah só se for da filha da rainha Luzia!
A selva intensa está com insônia
Bocejam árvores sonolentas
Ai que a noite secou. A água do rio se quebrou
Tenho que ir-me embora
Me sumo sem rumo no fundo do mato
onde as velhas árvores grávidas cochilam
De todos os lados me chamam
- Onde vais Cobra Norato?
Tenho aqui três arvorezinhas jovens à tua espera
- Não posso
Eu hoje vou dormir com a filha da rainha Luzia
III
Sigo depressa machucando a areia
Erva-picão me arranhou
Caules gordos brincam de afundar na lama
Galhinhos fazem psiu
Deixa eu passar que vou pra longe
Moitas de tiririca entopem o caminho
- Ai Pai-do-mato!
quem me quebrou com mau-olhado
e virou meu rasto no chão?
Ando já com os olhos murchos
de tanto procurar a filha da rainha Luzia
O resto da noite me engole
Onde irei eu
que já estou com o sangue doendo
das mirongas da filha da rainha Luiza?
IV
Esta é a floresta de hálito podre
parindo cobras
Rios magros obrigados a trabalhar
A correnteza se arrepia
descascando as margens gosmentas
Raízes desdentadas mastigam lodo
Num estirão alagado
o charco engole a água do igarapé
Fede
O vento mudou de lugar
Um assobio assusta as árvores
Silêncio se machucou
Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum
Um berro atravessa s floresta
Chegam outras vozes
O rio se engasgou num barranco
Espia-me um sapo sapo
Aqui tem cheiro de gente
- Quem é você?
- Sou a Cobra Norato
Vou me amasiar com a filha da rainha Luzia
V
Aqui é a escola das árvores
Estão estudando geometria
- Vocês são cegos de nascença. Têm que obedecer ao rio
- Ai ai! Nós somos escravas do rio
- Vocês estão condenadas a trabalhar sempre sempre
Têm a obrigação de fazer folhas para cobrir a floresta
- Ai ai! Nós somos escravas do rio
- Vocês tem que afogar o homem na sombra
A floresta é inimiga do homem
- Ai ai! Nós somos escravas do rio
Atravesso paredes espessas
Ouço gritos miúdos de ai-me-acuda:
Estão castigando os pássaros
- Se não sabem a lição vocês têm que ser árvores
- Ai ai ai ai...
- O que é que você vai fazer lá em cima?
- Tenho que anunciar a lua
quando ela se levanta atrás do mato
- E você?
- Tenho que acordar as estrelas
em noites de São João
- E você?
- Tenho que marcar as horas no fundo da selva
Tuúg...Tiúg...Tiúg...
Twi. Twi-Twi.
XXXII
- E agora compadre
vou de volta pro Sem-fim
Vou lá para as terras altas
onde a serra se amontoa
onde correm os rios de águas claras
entre moitas de molungu
Quero levar minha noiva
Quero estarzinho com ela
numa casa de morar
uma porta azul piquininha
pintada a lápis de cor
Quero sentir a quentura
do seu corpo de vaivém
Querzinho de ficar junto
quando a gente quer bem bem
Ficar à sombra do mato
ouvir a jurucutu
águas que passam cantando
pra gente se espreguiçar
E quando estivermos à espera
que a noite volte outra vez
hei de lhe contar histórias
escrever nomes na areia
pro vento brincar de apagar
XXXIII
Pois é, compadre
Siga agora o seu caminho
Procure minha madrinha Maleita
diga que eu vou me casar
que eu vou vestir minha noiva
com um vestidinho de flor
Quero uma rede bordada
com ervas de espalhar cheiroso
e um tapetinho titinho
de penas de irapuru
No caminho
vá convidando gente pro Caxiri grande
Haverá muita festa
durante sete luas sete sóis
Traga a Joaninha Vintém o Pajé-pato Boi-Queixume
Não se esqueça dos Xicos Maria-Pitanga o João Ternura
O Augusto Meyer Tarsila Tatizinha
Quero povo de Belém de Porto Alegre de São Paulo
- Pois então até breve, compadre
Fico lá esperando
atrás das serras do Sem-fim
Raul Bopp
(1898-1984)
Mais sobre Raul Bopp em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Raul_Bopp
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário