sexta-feira, fevereiro 27, 2009
Ferreira Gullar sabe que a vida é bela, mas não para todos. E sofre porque amanhã ainda não será outro dia.
Voltas para casa
Depois de um dia inteiro de trabalho
voltas para casa, cansado.
Já é noite em teu bairro e as mocinhas
de calças compridas desceram para a porta
após o jantar.
Os namorados vão ao cinema.
As empregadas surgem das entradas de serviço.
Caminhas na calçada escura.
Consumiste o dia numa sala fechada,
lidando com papéis e números.
Telefonasre, escreveste,
irritações e simpatias surgiram e desapareceram
no fluir dessas horas. E caminhas,
agora, vazio,
como se nada acontecera.
De fato, nada te acontece, exceto
talvez o estranho que te pisa o pé no elevador
e se desculpa.
Desde quando
tua vida parou? Falas dos desastres,
dos crimes, dos adultérios,
mas são leituras de jornal. Fremes
ao pensar em certo filme que viste: a vida,
a vida é bela!
A vida é bela
mas não a tua. Não a de Pedro,
de Antônio, de Jorge, de Júlio,
de Lúcia, de Míriam, de Luísa...
Às vezes pensas
com nostalgia
nos anos de guerra,
o horizonte de pólvora,
o cabrito. Mas a guerra
agora é outra. Caminhas.
Tua casa está ali. A janela
acesa no terceiro andar. As crianças
ainda não dormiram.
Terá o mundo de ser para elas
este logro? Não será
teu dever mudá-lo?
Apertas o botão da cigarra.
Amanhã ainda não será outra dia.
Ferreira Gullar
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