quinta-feira, fevereiro 05, 2009

Em sua balada, Paulo Mendes Campos diz que na alma dos outros há searas de poesia. Na dele, poeiras de prosa, humilhação, vilania.


Balada do homem de fora


Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.

O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.

No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.

O trato dos outros tem
despreendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.

O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.

Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
no amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.

A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.

Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.

Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.

Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.

Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.

Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.

O terno dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.

Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.

Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus ne deu os meus e os teus
para a dor de dar-te adeus.

Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.

Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.

Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neurose?

Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".

Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".

Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.

Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.

Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.

Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...

A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.

Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.

O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

Um comentário:

Anônimo disse...

Incrível como ele usa as palavras tal qual feiticeiro, fiquei impressionada, um amigo meu acabou de me emprestar um livro dele. É demais. Não o conhecia.