sábado, fevereiro 07, 2009

Longe dela, Vinicius de Moraes escreveu um dos seus mais belos poemas de amor. Um amor que, de tão grande, tornou tudo frágil, extremamente frágil.


Carta do ausente


Meus amigos, se durante o meu recesso virem por acaso passar a minha amada
Peçam silêncio geral. Depois
Apontem para o infinito. Ela deve ir
Como uma sonâmbula, envolta numa aura
De tristeza, pois seus olhos
Só verão a minha ausência. Ela deve
Estar cega a tudo o que não seja o meu amor (esse indizível
Amor que vive trancado em mim como num cárcere
Mirando empós seu rastro)
Se for à tarde, comprem e desfolhem rosas
À sua melancólica passagem, e se puderem
Entoem cantus-primus. Que cesse totalmente o tráfego
E silenciem as buzinas de moda que se ouça longamente
O ruído de seus passos. Ah, meus amigos
Ponham as mãos em prece e roguem, não importa a que ser ou divindade
Por que bem-haja a minha grande amada
Durante o meu recesso, pois sua vida
É minha vida, sua morte a minha morte. Sendo possível
Soltem pombas brancas em quantidade suficiente para que se faça em torno
A suave penumbra que lhe apraz. Se houver por perto
Uma hi-fi, coloquem o "Noturno em si bemol" de Chopin; e se porventura
Ela se puser a chorar, oh recolham-lhe as lágrimas em pequenos frascos de opalina
A me serem mandados regularmente pela mala diplomática.
Meus amigos, meus irmãos (e todos
Os que amam a minha poesia)
Se por acaso virem passar a minha amada
Salmodiem versos meus. Ela estará sobre uma nuvem
Envolta numa área de tristeza
O coração em luz transverberado. Ela é aquela
Que eu não pensava mais possível, nascida
Do meu desespero de não encontrá-la. Ela é aquela
Por quem caminham as minhas pernas e para quem foram feitos os meus braços
Ela é aquela que eu amo no meu tempo
E que amarei na minha eternidade - a amada
Una e impretérita. Por isso
Procedam com discrição mas eficiência - que ela
Não sinta o seu caminho, e que este, ademais
Ofereça a maior segurança. Seria sem dúvida de grande acerto
Não se locomovesse ela de todo, de maneira
A evitar os perigos inerentes às leis da gravidade
E do momentum dos corpos, e principalmente aqueles devidos
À falibilidade dos reflexos humanos. Sim, seria extremamente preferível
Se mantivesse ela reclusa em andar térreo e intramuros
Num ambiente azul de paz e música. Ó, que ela evite
Sobretudo dirigir à noite e estar sujeita aos imprevistos
Da loucura dos tempos. Que ela se proteja, a minha amada
Contra os males terríveis dessa ausência
Com música e equanil. Que ela pense, agora e sempre
Em mim que longe dela ando vagando
Pelos jardins noturnos da paixão
E da melancolia. Que ela se defenda, a minha amiga
Contra tudo o que anda, voa, corre e nada. e que se lembre
Que devemos nos encontrar, e para tanto
É preciso que estejamos íntegros, e acontece
Que os perigos são máximos, e o amor de repente, de tão grande
Tornou tudo frágil, extremamente, extremamente frágil.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

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