Crise lamentável
Gostava tanto de mexer na vida,
De ser quem sou - mas de poder tocar-lhe...
E não há forma: cada vez perdida
Mais a destreza de saber pegar-lhe.
Viver em casa como toda a gente
Não ter juízo nos meus livros - mas
Chegar ao fim do mês sempre com as
Despesas pagas religiosamente.
Não ter receio de seguir pequenas
E convidá-las para me pôr nelas
- À minha Torre ebúrnea abrir janelas,
Numa palavra, e não fazer mais cenas.
Ter força um dia pra quebrar as roscas
Desta engrenagem que empenando vai.
- Não mandar telegramas ao meu Pai,
- Não andar por Paris, como ando, às moscas.
Levantar-me e sair - não precisar
De hora e meia antes de vir prà rua.
- Pôr termo a isto de viver na lua,
- Perder a frousse das correntes de ar.
Não estar sempre a bulir, a quebrar coisas
Por casa dos amigos que frequento
-Não me embrenhar por histórias melindrosas
Que em fantasia apenas argumento
Que tudo em é fantasia alada,
Um crime ou bem que nunca se comete:
E sempre o oiro em chumbo se derrete
Por meu Azar ou minha Zoina suada...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
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