quinta-feira, setembro 25, 2008

Como a prostituta ama a estrada. Assim eu amo este país que me desama, confessa Afonso Romano de Sant'Anna.


Como amo meu país


Fragmento 1

Com aquela melancolia que ao entardecer
em Teresina
eu olhava do outro lado do sujo rio
a vilazinha de Timon,
com a fúria da multidão endomingada martelando
caranguejos entre farofa e cerveja
numa praia em Aracaju,

com a penintência de quem amssa o barro
que depois vira anjo nas mãos das mulheres de
Tracunhaém, com a solidez marinha do jangadeiro
em Cabedelo
empurrando a esperança mar adentro
e a repartir a espinha do dia morto sobre a areia,
com a cadência magoada do vaqueiro tangido nos
seus cornos a recolher o sal e a solidão
nos currais de Minas, em Curvelo, assim
eu amo este país que me desama.

Fragmento 2

Deveria deixar de amá-lo como sub ser vivo
e amá-lo ostensivo
num tropel de bandeiras
num estádio de urros
e canções guerreiras?

Amo este país
como o hortelão cuida e corta
a praga de sua horta
e parte com seu cesto a bater de porta em
porta
com a resignação do operário
abraçado à neblina da marmita,
quando larga os panos e a mulher na madrugada
e sai do café quente de sua casa
e desce nos vagões de medo ao fundo da espúria
mina.

Fragmento 3

Deve haver quem ame o seu país
como quem escarra em casa própria,
coça o saco na calçada,
arrota e palita os dentes,
entorna cachaça ao santo
suando a alma e o corpo
no ébrio espasmo do gol.

Uns amam seu país
como o mendigo o seu muro,
como o agiota o seu juro. Outros
como o domador às suas feras:
- distância e precisão -
para evitar que o povo
- lhe arranque o poder da mão.

Outros amam seu país
como o carcereiro a prisão,
o lenhador a floresta
e o carvoeiro o carvão.

Há quem o ame no palco e pista
sem máscaras, expondo as vísceras,
e há quem o ame sonolento
num camarote ou nas frisas
enquanto o catnro, o cavalo e o jogador
se atropelam numa ópera surrealista.

Há quem o ame com o cáutico e sádico amor
com que o gigolô deprava e surra a cansada
mulher das madrugadas ou quem o ame
como a própria mulher
furando seus cartões ao som do sexo
aviltado no metal da orquestra.

Fragmento 4

Eu, quando posso,
ponho minha alma num carro de bebê
e vou levá-la ao sol da praça. Praça
que ninguém mais conheceu
que Felipe dos Santos atado
à cauda do cavalo, cimentando o chão
com o repasto de seu sangue.

Fora isto
com a passividade estrangulada do índio
carregando as armas do invasor
tenho a ingenuidade e o desperdiçado amor
dos Kreen-Akarores em suas matas
quando viram os berloques e espelhos
trazidos
pelos irmãos Vilas-Boas
do outro lado do rio,

Desde então
eu amo este país
- como a prostituta ama a estrada.

Afonso Romano de Sant'Anna

Mais sobre Afonso Romano de Sant'Anna

http://pt.wikipedia.org/wiki/Affonso_Romano_de_Sant%27Anna


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