quarta-feira, março 31, 2010
As coisas jogadas fora por motivo de traste são alvo de minha estima. Agora eu queria que os verbos e os trastes iluminassem, diz Manoel de Barros.
Teologia do traste
As coisas jogadas fora por motivo de traste
são alvo de minha estima.
Prediletamente latas.
Latas são pessoas léxicas pobres porém concretas.
Se você jogar na terra uma lata por motivo de
traste: mendigos, cozinheiras ou poetas podem pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes, por
exemplo, do que as idéias.
Porque as idéias, sendo objetos concebidos pelo
espírito, elas são abstratas.
E, se você jogar um objeto abstrato na terra por
motivo de traste, ninguém quer pegar.
Por isso eu acho as latas mais suficientes.
A gente pega uma lata, enche de areia e sai
puxando pelas ruas moda um caminhão de areia.
E as idéias, por ser um objeto abstrato concebido
pelo espírito, não dá para encher de areia.
Por isso eu acho a lata mais suficiente.
Idéias são a luz do espírito - a gente sabe.
Há idéias luminosas - a gente sabe.
Mas elas inventaram a bomba atômica, a bomba
atômica, a bomba atôm...........................................
........................................................................ Agora
eu queria que os verbos iluminassem.
Que os trastes iluminassem.
Manoel de Barros
Mais sobre Manoel de Barros em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
Aqui nesta praia não há nenhum vestígio de impureza. Aqui o tempo apaixonadamente encontra a própria liberdade, nos versos de Sophia de Mello Breyner.
Liberdade
Aqui nesta praia onde
Não há nenhum vestígio de impureza,
Aqui onde há somente
Ondas tombando ininterruptamente,
Puro espaço e lúcida unidade,
Aqui o tempo apaixonadamente
Encontra a própria liberdade.
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sofia_de_Melo_Breyner
terça-feira, março 30, 2010
Leminski quer achar um jeito de fazer tudo perfeito. Mas já começa a ficar cheio de não saber quando ele falta de ser sujeito indireto.
Sujeito indireto
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
Para Almeida Garrettt, o excesso de gozo é dor. E sente que nele exaure-se a vida ou a razão.
Gozo e dor
Se estou contente, querida,
Com esta imensa ternura
De que me enche o teu amor?
Não. Ai não; falta-me a vida;
Sucumbe-me a alma à ventura:
O excesso de gozo é dor.
Dói-me alma, sim; e a tristeza
Vaga, inerte e sem motivo,
No coração me poisou.
Absorto em tua beleza,
Não sei se morro ou se vivo,
Porque a vida me parou.
É que não há ser bastante
Para este gozar sem fim
Que me inunda o coração.
Tremo dele, e delirante
Sinto que se exaure em mim
Ou a vida ou a razão.
Almeida Garrett
(1799-1854)
http://pt.wikipedia.org/wiki/Almeida_Garrett
segunda-feira, março 29, 2010
O Livro do Desassossego, de Bernardo Soares, o menos conhecido dos heterônimos de Fernando Pessoa. Para comemorar os 4 anos de publicação do Poemblog.
Livro do Desassossego
(Fragmentos)
"Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior."
"Prefiro o Vasques homem meu patrão, que é mais tratável, nas horas difíceis, que todos os patrões abstractos do mundo.""Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar - ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas."
"Vejo-o [o patrão Vasques], vejo os seus gestos de vagar enérgico, os seus olhos a pensar para dentro coisas de fora, recebo a perturbação da sua ocasião em que lhe não agrado, e a minha alma alegra-se com o seu sorriso, um sorriso amplo e humano, como o aplauso de uma multidão."
"Ah, compreendo! O patrão Vasques é a Vida. A Vida, monótona e necessária, mandante e desconhecida. Este homem banal representa a banalidade da Vida. Ele é tudo para mim, por fora, porque a Vida é tudo para mim por fora. E, se o escritório da Rua dos Douradores representa para mim a vida, este meu segundo andar, onde moro, na mesma Rua dos Douradores, representa para mim a Arte. Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente. Sim, esta Rua dos Douradores compreende para mim todo o sentido das coisas, a solução de todos os enigmas, salvo o existirem enigmas, que é o que não pode ter solução."
"Tudo me interessa e nada me prende. Atendo a tudo sonhando sempre; fixo os mínimos gestos faciais de com quem falo, recolho as entoações milimétricas dos seus dizeres expressos; mas ao ouvi-lo, não o escuto, estou pensando noutra coisa, e o que menos colhi da conversa foi a noção do que nela se disse, da minha parte ou da parte de com quem falei. Assim, muitas vezes, repito a alguém o que já lhe repeti, pergunto-lhe de novo aquilo a que ele já me respondeu; mas posso descrever, em quatro palavras fotográficas, o semblante muscular com que ele disse o que me não lembra, ou a inclinação de ouvir com os olhos com que recebeu a narrativa que me não recordava ter-lhe feito. Sou dois, e ambos têm a distância - irmãos siameses que não estão pegados."
"Se escrevo o que sinto é porque assim diminuo a febre de sentir. O que confesso não tem importância, pois nada tem importância. Faço paisagens com o que sinto."
"Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições."
"Uns governam o mundo, outros são o mundo."
* * *
"Tinha-me levantado cedo e tardava em preparar-me para existir.""Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E quanto me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos húmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancham lentamentamente."
"São as pessoas que habitualmente me cercam, são as almas que, desconhecendo-me, todos os dias me conhecem com o convívio e a fala, que me põem na garganta do espírito o nó salivar do desgosto físico. É a sordidez monótona da sua vida, paralela à exterioridade da minha, é a sua consciência íntima de serem meus semelhantes, que me veste o traje de forçado, me dá a cela de penitenciário, me faz apócrifo e mendigo."
"Pesa-me, realmente me pesa, como uma condenação a conhecer, esta noção repentina da minha individualidade verdadeira, dessa que andou sempre viajando sonolentamente entre o que sente e o que vê.""E, por fim, tenho sono, porque, não sei porquê, acho que o sentido é dormir."
"A humanidade tem medo da morte, mas incertamente."
"E não sei o que sinto, não sei o que quero sentir, não sei o que penso nem o que sou."
"Verifico que, tantas vezes alegre, tantas vezes contente, estou sempre triste.""Não vejo, sem pensar.""Não há sossego - e, ai de mim!, nem sequer há desejo de o ter."
* * *
"Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa - não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio. Há muitos em quem o desasseio não é uma disposição da vontade, mas um encolher de ombros da inteligência. E há muitos em quem o apagado e o mesmo da vida não é uma forma de a quererem, ou uma natural conformação com o não tê-la querido, mas um apagamento da inteligência de si mesmos, uma ironia automática do conhecimento. Há porcos que repugnam a sua própria porcaria, mas se não afastam dela, por aquele mesmo extremo de um sentimento, pelo qual o apavorado se não afasta do perigo. Há porcos de destino, como eu, que se não afastam da banalidade quotidiana por essa mesma atracção da própria impotência. São aves fascinadas pela ausência de serpente; moscas que pairam nos troncos sem ver nada, até chegarem ao alcance viscoso da língua do camaleão.
Assim passeio lentamente a minha inconsciência consciente, no meu tronco de árvore do usual. Assim passei o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo."
"Releio passivamente, recebendo o que sinto como uma inspiração e um livramento, aquelas frases simples de Caeiro, na referência natural do que resulta do pequeno tamanho de sua aldeia. Dali, diz ele, porque é pequena, pode ver-se mais do mundo do que da cidade; e por isso a aldeia é maior que a cidade... "Porque eu sou do tamanho do que vejo. E não do tamanho da minha altura."Frases como estas, que parecem crescer sem vontade que as houvesse dito, limpam-me de toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida. Depois de as ler, chego à minha janela sobre a rua estreita, olho o grande céu e os muitos astros, e sou livre com um esplendor alado cuja vibração me estremece no corpo todo."Sou do tamanho do que vejo!"Cada vez que penso esta frase com toda a atenção dos meus nervos, ela me parece mais destinada a reconstruir consteladamente o universo. "Sou do tamanho do que vejo!" Que grande posse mental vai desde o poço das emoções profundas até às altas estrelas que se reflectem nele e, assim, em certo modo, ali estão. E já agora, consciente de saber ver, olho a vasta metafísica objectiva dos céus todos com uma segurança que me dá vontade de morrer cantando. "Sou do tamanho do que vejo!" E o vago luar, inteiramente meu, começa a estragar de vago o azul meio-negro do horizonte.
"A solidão desola-me; a companhia oprime-me. A presença de outra pessoa descaminha-me os pensamentos; sonho a sua presença com uma distracção especial, que toda a minha atenção analítica não consegue definir."
"O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pesoa - de uma só pessoa que seja - atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo." "Os meus hábitos são da solidão, que não dos homens"; não sei se foi Rousseau, se Senancour, o que disse isto. Mas foi qualquer espírito da minha espécie - não poderia talvez dizer da minha raça."
"O vento levantou-se...Primeiro era como a voz de um vácuo...um soprar no espaço para dentro de um buraco, uma falta no silêncio do ar. Depois ergueu-se um soluço, um soluço do fundo do mundo, o sentir-se que tremiam vidraças e que era realmente vento. Depois soou mais alto, urro surdo, um chocar sem ser ante o aumentar nocturno, um ranger de coisas, um cair de bocados, um átomo de fim do mundo."
* * *
"Os Deuses, se são justos em sua injustiça, nos conservem os sonhos ainda quando sejam impossíveis, e nos dêem bons sonhos, ainda que sejam baixos."
* * *
"Cada um tem a sua vaidade, e a vaidade de cada um é o seu esquecimento de que há outros com alma igual. A minha vaidade são algumas páginas, uns trechos, certas dúvidas...Releio? Menti! Não ouso reler. Não posso reler. De que me serve reler? O que está ali é outro. Já não compreendo nada..."
"Ah, mas como eu desejaria lançar ao menos numa alma alguma coisa de veneno, de desassossego e de inquietação. Isso consolar-me-ia um pouco da nulidade de acção em que vivo. Perverter seria o fim da minha vida. Mas vibra alguma alma com as minhas palavras? Ouve-as alguém que não só eu?
"Dói-me qualquer sentimento que desconheço; falta-me qualquer argumento não sei sobre o quê; não tenho vontade nos nervos. Estou triste abaixo da consciência. E escrevo estas linhas, realmente mal-notadas, não para dizer isto, nem para dizer qualquer coisa, mas para dar um trabalho à minha desatenção. Vou enchendo lentamente, a traços moles de lápis rombo - que não tenho sentimentalidade para aparar - , o papel branco de embrulho de sanduíches, que me forneceram no café, porque eu não precisava de melhor e qualquer servia, desde que fosse branco. E dou-me por satisfeito."
"A consciência da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à inteligência."
"Aquilo que, creio, produz em mim o sentimento profundo, em que vivo, de incongruência com os outros, é que a maioria pensa com a sensibilidade, e eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar."
"Correr riscos reais, além de me apavorar, não é por medo que eu sinta excessivamente - perturba-me a perfeita atenção às minhas sensações, o que me incomoda e despersonaliza. Nunca vou para onde há risco. Tenho medo a tédio dos perigos."
"Leve, como uma coisa que começasse, a maresia da brisa pairou sobre o Tejo e espalhou-se sujamente pelos princípios da Baixa. Nauseava frescamente, num torpor frio de mar morto. Senti a vida no estômago, e o olfacto tornou-se-me uma coisa por detrás dos olhos. Altas, pousavam em nada nuvens ralas, rolos, num cinzento a desmoronar-se para branco falso. A atmosfera era de uma ameaça de céu cobarde, como a de uma trovoada inaudível, feita de ar somente. Havia estagnação no próprio voo das gaivotas; pareciam coisas mais leves que o ar, deixadasnele por alguém. Nada abafava. A tarde caía num desassossego nosso; o ar refrescava intermitentemente. Pobres das esperanças que tenho tido, saídas da vida que tenho tido de ter! São como esta hora e este ar, névoas sem névoa, alinhavos rotos de tormenta falsa. Tenho vontade de gritar, para acabar com a paisagem e a meditação. Mas há maresia no meu propósito, e a baixa-mar em mim deixou descoberto o negrume lodoso que está ali fora e não vejo senão pelo cheiro.Tanta inconsequência em querer bastar-me! Tanta consciência sarcástica das sensações supostas! Tanto enredo da alma com as sensações, dos pensamentos com o ar e o rio, para dizer que me dói a vida no olfacto e na consciência, para não saber dizer, como na frase simples e ampla do livro de Job, "Minha alma está cansada de minha vida!"
Intervalo Doloroso
"Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor. Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água. Entre mim e a vida há um vidro ténue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso lhe tocar. Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço? e quem é triste não pode esforçar-se. Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me. Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal. Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia! Eu não teria o horror à vida como a uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento. Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda chuva contra um raio. Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e actos. Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.Mesmo eu , o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de quem me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhêce-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma dentro. A minha vida é como se me batessem com ela."
"Meditei hoje, num intervalo de sentir, na forma de prosa de que uso. Em verdade, como escrevo? Tive, como muitos têm tido, a vontade pervertida de querer ter um sistema e uma norma. É certo que escrevi antes da norma e do sistema; nisso, porém, não sou diferente dos outros. Analisando-me à tarde, descubro que o meu sistema de estilo assenta em dois princípios, e imediatamente, e à boa maneira dos bons clássicos, erijo esses dois princípios em fundamentos gerais de todo estilo: dizer o que se sente exactamente como se sente - claramente, se é claro; obscuramente, se é obscuro; confusamente, se é confuso - ; compreender que a gramática é um instrumento, e não uma lei."
"Fazer qualquer coisa completa, inteira, seja boa ou seja má - e, se nunca é inteiramente boa, muitas vezes não é inteiramente má - , sim, fazer uma coisa completa causa-me, talvez, mais inveja do que outro qualquer sentimento. É como um filho: é imperfeita como todo o ente humano, mas é nossa como os filhos são. E eu, cujo espírito de crítica própria me não permite senão que veja os defeitos, as falhas, eu, que não ouso escrever mais que trechos, bocados, excertos do inexistente, eu mesmo, no pouco que escrevo, sou imperfeito também. Mais valeram pois, ou a obra completa, ainda que má, que em todo o caso é obra; ou a ausência de palavras, o silêncio inteiro da alma que se reconhece incapaz de agir."
"Sumir-me-ei entre a a névoa, como um estrangeiro a tudo, ilha humana desprendida do sonho
"Na falta de saber, escrevo; e uso os grandes termos da Verdade alheios conforme as exigências da emoção. Se a emoção é clara e fatal, falo, naturalmente, dos deuses e assim a enquadro numa consciência do mundo múltiplo. Se a emoção é profunda, falo, naturalmente, de Deus, e assim a engasto numa consciência una. Se a emoção é um pensamento, falo, naturalmente, do Destino, e assim a encosto à parede."
"Quando ponho de parte os meus artifícios e arrumo a um canto, com um cuidado cheio de carinho - com vontade de lhes dar beijos - os meus brinquedos, as palavras, as imagens, as frases - fico tão pequeno e inofensivo, tão só num quarto tão grande e tão triste, tão profundamente triste!... Afinal eu quem sou, quando não brinco? Um pobre órfão abandonado nas ruas das sensações, tiritando de frio às esquinas da Realidade, tendo que dormir nos degraus da Tristeza e comer o pão dado da Fantasia. De meu pai sei o nome; disseram-me que se chamava Deus, mas o nome não me dá idéia de nada. Ás vezes, na noite, quando me sinto só, chamo por ele e choro, e faço-me uma idéia dele a que possa amar...Mas depois penso que o não conheço, que talvez ele não seja assim, que talvez seja nunca esse o pai da minha alma...Quando acabará isso tudo, estas ruas onde arrasto a minha miséria, e estes degraus onde encolho o meu frio e sinto as mãos da noite por entre os meus farrapos? Se um dia Deus me viesse buscar e me levasse para a sua casa e me desse calor e afeição...Ás vezes penso isto e choro com alegria a pensar que o posso pensar...Mas o vento arrasta-se pela rua fora e as folhas caem no passeio...Ergo os olhos e vejo as estrelas que não têm sentido nenhum...E de tudo isto fico apenas eu, uma pobre criança abandonada, que nenhum Amor quis para seu filho adoptivo, nem nehuma Amizade para seu companheiro de brinquedos. Tenho frio de mais. Estou tão cansado no meu abandono. Vai buscar, ó Vento, a minha Mãe. Leva-me na Noite para a casa que não conheci...Torna a dar-me, ó Silêncio imenso, a minha ama e o meu berço e a minha canção com que eu dormia..."
"O sonhador não é superior ao homem activo porque o sonho seja superior à realidade. A superioridade do sonhador consiste em que sonhar é muito mais prático que viver, e em que o sonhador extrai da vida um prazer muito mais vasto e muito mais variado do que o homem de acção. Em melhores e muito mais directas palavras, o sonhador é que é o homem de acção.
Sendo a vida essencialmente um estado mental, e tudo, quanto fazemos ou pensamos, válido para nós na proporção em que o pensamos válido, depende de nós a valorização. O sonhador é um emissor de notas, e as notas que emite correm na cidade do seu espírito do mesmo modo que as da realidade."
"Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!"
* * *
"Em mim foi sempre menor a intensidade das sensações que a intensidade da consciência delas. Sofri sempre mais com a consciência de estar sofrendo que com o sofrimento de quetinha consciência. A vida das minhas emoções mudou-se, de origem, para as salas do pensamento, e ali vivi sempre mais amplamente o conhecimento emotivo da vida. E como o pensamento, quando alberga a emoção, se torna mais exigente que ela, o regime de consciência, em que passei a vivee o que sentia, tornava-se mais quotidiana, mais epidérmica, tornava-se mais titilante a maneira como sentia."
"Somos quem não somos e a vida é pronta e triste.""Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso nocturno do meu passeio à beira-mar ...Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo?"
"Tão supérfluo tudo! Nós e o mundo e o mistério de ambos."
* * *
" O pensamento colectivo é estupído porque é colectivo: nada passa as barreiras do colectivo sem deixar nelas, como real de água, a maior parte da inteligência que traga consigo. Na mocidade somos dois: há em nós a coexistência da nossa inteligência própria, que pode ser grande, e a da estupidez da nossa inexperiência, que forma uma segunda inteligência inferior. Só quando chegamos a outra idade se dá em nós a unificação. Daí a acção sempre fruste da juventude - devida, não à sua inexperiência, mas à sua não-unidade."
" Sou daquelas almas que as mulheres dizem que amam, e nunca reconhecem quando encontram, daquelas que, se elas as reconhecessem, mesmo assim não as reconheceriam. Sofro a delicadeza dos meus sentimentos com uma atenção desdenhosa. Tenho todas as qualidades, pelas quais são admirados os poeta românticos, mesmo aquela falta dessas qualidades, pela qual se é realmente poeta romântico. Encontro-me descrito (em parte) em vários romances como protagonista de vários enredos; mas o essencial da minha vida, como da minha alma, é
" Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio
" Nunca amamos alguém. Amamos, tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso - em suma, é a nós mesmos - que amamos. Isto é verdade em toda a escala do amor. No amor sexual buscamos um prazer nosso por intermédio de um corpo estranho. No amor diferente do sexual, buscamos um prazer nossodado por intermédio de uma idéia nossa. O onanista é objecto, mas, em exacta verdade, o onanista é a perfeita expressão lógica do amoroso. É o único que não disfarça nem se engana. As relações entre uma alma e outra, através de coisas tão incertas e divergentes como as palavras comuns e os gestos que se empreendem, são matéria de estranha complexidade. No próprio ato em que nos conhecemos, nos desconhecemos. Dizem os dois «amo-te» ou pensam-no e sentem-no por troca, e cada um quer dizer uma idéia diferente, uma vida diferente, até, porventura, uma cor ou um aroma diferente, na soma abstracta de impressões que constitui a actividade da alma.""É de compreender que sobretudo nos cansamos. Viver é não pensar."
"Para o esteta, as tragédias são coisas interessantes de observar, mas incomodas de sofrer. O próprio cultivo da imaginação é prejudicado pelo da vida. Reina quem não está entre os vulgares. Afinal, isto bem me contentaria se eu conseguisse persuadir-me que esta teoria não é o que é, um complexo barulho que faço aos ouvidos da minha inteligência, quase para ela não perceber que, no fundo, não há senão a minha timidez, a minha incompetência para a vida."
Estética do Artifício
" A vida prejudica a expressão da vida. Se eu tivesse um grande amor nunca o poderia contar.Eu próprio não sei se este eu, que vos exponho, por estas coleantes páginas fora, realmente existe ou é apenas um conceito estético e falso que fiz de mim próprio. Sim, é assim. Vivo-me esteticamente em outro. Esculpi a minha vida como a uma estátua de matéria alheia ao meu ser. Às vezes não me reconheço, tão exterior me pus a mim, e tão de modo puramente artístico empreguei a minha consciência de mim próprio. Quem sou por detrás desta irrealidade? Não sei. Devo ser alguém. E se não busco viver, agir, sentir, é - crede-me bem - para não perturbar as linhas feitas da minha personalidade suposta. Quero ser tal qual quis ser e não sou. Se eu cedesse destruir-me-ia. Quero ser uma obra de arte, da alma pelo menos, já que do corpo não posso ser. Por isso me esculpi em calma e alheamento e me pus em estufa, longe dos ares frescos e das luzes francas - onde a minha artificialidade, flor absurda, floresça em afastada beleza."
"Assim organizar a nossa vida que ela seja para os outros um mistério, que quem melhor nos conheça, apenas nos desconheça de mais perto que os outros. Eu assim talhei a minha vida, quase que sem pensar nisso, mas tanta arte institiva pus em fazê-lo que para mim próprio me tornei uma não de todo clara e nítida individualidade minha."
"A literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida."
* * *
"A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Dizem que não há nada mais difícil do que definir em palavras uma espiral: é preciso, dizem, fazer no ar, com a mão sem literatura, o gesto, ascendemente enrolado em ordem, com que aquela figura abstracta das molas ou de certas escadas se manifesta aos olhos. Mas, desde que nos lembremos que dizer é renovar, definiremos sem dificuldade uma espiral: é um círculo que sobe sem nunca conseguir acabar-se. A maioria da gente, sei bem, não ousaria definir assim, porque supõe que definir é dizer o que os outros querem que se diga, que não o que é preciso dizer para definir. Direi melhor: uma espiral é um circulo virtual que se desdobra a subir sem nunca se realizar: Mas não, a definição ainda é abstracta. Buscarei o concreto, e tudo será visto: uma espiral é uma cobra sem cobra enroscada verticalmente em coisa nenhuma.Toda a literatura consiste num esforço para tornar a vida real. Como todos sabem, ainda quando agem sem saber, a vida é absolutamente irreal, na sua realidade directa; os campos, as cidades, as idéias, são coisas absolutamente fictícias, filhas da nossa complexa sensação de nós mesmos. Sâo intransmissíveis todas as impressões salvo se as tornarmos literárias. As crianças são muito literárias porque dizem como sentem e não como deve sentir quem sente segundo outra pessoa. Uma criança, que uma vez ouvi, disse, querendo dizer que estava à beira de chorar, não «Tenho vontade de chorar», que é como diria um adulto, isto é, um estúpido, senão isto: «Tenho vontade de lágrimas». E esta frase, absolutamente literária, a ponto de que seria afectada num poeta célebre, se ele a pudesse dizer, refere absolutamente a presença quente das lágrimas a romper das pálpebras conscientes da amargura líquida.«Tenho vontade de lágrimas»! Aquela criança pequena definiu bem a sua espiral."
"Sinto perante o rebaixamento dos outros não uma dor, mas um desconforto estético e uma irritação sinuosa. Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado. Mais terrível de que qualquer muro , pus grades altíssimas a demarcar o jardim do meu ser, de modo que, vendo perfeitamente os outros, perfeitissimamente eu os excluo e mantenho outros. Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma açcão qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue. Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar mais o meu espírito e viver mais longe adentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou oestado. Creio que a sorte soube providenciar."
" Tenho da vida uma náusea vaga, e o movimento acentua-ma.""A vida, para mim, é uma sonolência que não chega ao cérebro. Esse conservo eu livre para que nele possa ser triste."
"Que me pode dar a China que a minha alma me não tenha já dado? E, se a minha alma me não pode dar, como me dará a China, se é com a minha alma que verei a China, se a vir? Poderei ir buscar riqueza ao Oriente, mas não riqueza de alma, porque a riqueza de minha alma sou eu, e eu estou onde estou, sem Oriente ou com ele.""Somos todos míopes, excepto para dentro. Só o sonho vê com o olhar.""Transeuntes eternos por nós mesmos, não há paisagem senão o que somos. Nada possuímos, porque nem a nós possuímos. Nada temos porque nada somos. Que mãos estenderei para que universo? O universo não é meu: sou eu."
"A ânsia de compreender, que para tantas almas nobres substitui a de agir, pertence à esfera da sensibilidade. Substitui a Inteligência à energia, quebrar o elo entre a vontade e a emoção, despindo de interesse todos os gestos da vida material, eis o que, conseguido, vale mais que a vida, tão difícil de possuir completa, e tão triste de possuir parcial. Diziam os argonautas que navegar é preciso, mas que viver não é preciso. Argonautas, nós, da sensibilidade doentia, digamos que sentir é preciso, mas que não é preciso viver."
"Arcaram os vossos argonautas com monstros e medos. Também, na viagem do meu pensamento, tive monstros e medos com que arcar. No caminho para o abismo abstracto, que está no fundo das coisas, há horrores, que passar, que os homens do mundo não imaginam e medos que ter que a experiência humana não conhece; é mais humano talvez o cabo para o lugar indefinido do mar comum do que a senda abstracta para o vácuo do mundo."
"Não me indigno, porque a indignação é para os fortes; não me resigno, porque a resignação é para os nobres; não me calo, porque o silêncio é para os grandes. E eu não sou forte, nem nobre, nem grande. Sofro e sonho. Queixo-me porque sou fraco e, porque sou artista, entretenho-me a tecer musicais as minhas queixas e a arranjar meus sonhos conforme me parece melhor a minha ideia de os achar belos. Só lamento o não ser criança, para que pudesse crer nos meus sonhos.""Eu não sou pessimista, sou triste."
"Omnia fui, nihil expedit - fui tudo, nada vale a pena."
"Para mim, se considero, pestes, tormentas, guerras, são produtos da mesma força cega, operando uma vez através de micróbios inconscientes, outra vez através de raios e águas inconscientes, outra vez através de homens inconscientes."
"Há uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e há uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas há também uma erudição da sensibilidade.""Condillac começa o seu livro célebre, «Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca saímos das nossas sensações». Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos criamos, porque assim, sendo deuses delas, as vemos como elas verdadeiramente são, que é como foram criadas. Não é nenhuma das sete
"Há muito tempo que não escrevo. Têm passado meses sem que viva, e vou durando, entre o escritório e a fisiologia, numa estagnação íntima de pensar e de sentir. Isto, infelizmente, não
144.
"É domingo e não tenho que fazer. Nem sonhar me apetece, de tão bem que está o dia. Gozo-o com uma sinceridade de sentidos a que a inteligência se abandona. Passeio como um caixeiro liberto. Sinto-me velho, só para ter o prazer de me sentir rejuvenescer."
"O homem perfeito do pagão era a perfeição do homem que há; o homem perfeito do cristão a perfeição do homem que não há; o homem perfeito do budista a perfeição de não haver homem.""Tudo quanto o homem expõe ou exprime é uma nota à margem de um texto apagado de todo. Mais ou menos, pelo sentido da nota, tiramos o sentido de que havia de ser o do texto; mas fica sempre uma dúvida, e os sentidos possíveis são muitos."
"Não é fácil distinguir o homem dos animais, não há critério seguro para distinguir o homem dos animais. As vidas humanas decorrem da mesma íntima inconsciência que as vidas dos animais. As mesmas leis profundas, que regem de fora os instintos dos animais, regem, também, de fora, a inteligência do homem, que parece não ser mais que um instinto emformação, tão inconsciente como todo instinto, menos perfeito porque ainda não formado.«Tudo vem da sem-razão», diz-se na Antologia Grega.""A Ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse «sei só que nada sei», e o estádio marcado por Sanches, quando disse «nem sei se nada sei». O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido na curta extensão já tão longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superfície da terra."
"Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender. Este livro é a minha cobardia."
"Escrevo demorando-me nas palavras, como por montras onde não vejo, e são meios-sentidos, quase-expressões o que me fica, como cores de estofos que não vi o que são, harmonia se xibidas compostas de não sei que objectos. Escrevo embalando-me, como uma mãe louca a
Bernardo Soares, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
sábado, março 27, 2010
Hoje, o Poemblog está completando 4 anos de existência, com 2368 poemas publicados. E estamos lançando o Concurso de Seleção dos Melhores Poemas.
Concurso "Poemblog, 4 anos do Melhor da Poesia” - Seleção dos 10 melhores poemas publicados.
Os interessados em participar do Concurso, deverão fazer uma seleção dos 10 melhores poemas publicados no Poemblog até 27.03.2010.
As seleções dos participantes deverão ser encaminhadas para o e-mail – poemblog@uol.com.br -, com Concurso Poemblog no Assunto de um endereço de e-mail válido e o nome completo do participante.
As Seleções dos 10 Melhores Poemas dos participantes serão julgadas pelos Editores do Poemblog, cuja decisão será irrevogável e irrecorrível e o resultado do Concurso será divulgado no Poemblog, com a identificação dos autores, no dia 01 de Junho de 2010.
Serão premiadas as 10 Melhores Seleções de Poemas, e a premiação, será a seguinte:
1º Classificado: Antologia Poética de Fernando Pessoa, da Editora Nova Aguilar.
2º Classificado: Antologia Poética de Carlos Drummond de Andrade, da Editora Nova Aguilar.
3º Classificado: Antologia Poética de Vinicius de Moraes, da Editora Nova Aguilar.
Do 4º ao 10º Classificados - Um livro de Poesia de autor nacional, de escolha dos Editores do Poemblog.
Ricardo Reis não quer recordar-se nem conhecer-se. Para ele, melhor vida é a vida que dura sem medir-se
Não quero
Não quero recordar nem conhecer-me,
Somos demais se olhamos em quem somos.
Ignorar que vivemos
Cumpre bastante a vida.
Tanto quanto vivemos, vive a hora
Em que vivemos, igualmente morta
Quando passa conosco,
Que passamos com ela.
Se sabê-lo não serve de sabê-lo
(Pois sem poder que vale conhecermos?)
Melhor vida é a vida
Que dura sem medir-se.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sexta-feira, março 26, 2010
O espanto de Thiago de Mello não foi o de ver o coração coberto pelo medo feroz. Mas de ver que ninguém amar sabia a pátria degradada.
Poema da praça desterrada
Em abril, certa noite estive perto
da esperança do povo erguido em canto.
Antes nunca jamais meu peito certo
esteve da alegria, mas o pranto
foi que desceu lavrando no deserto
da praça desterrada. O meu espanto
não foi de ver o coração coberto
pelo medo feroz, de turvo manto.
Mas de ver que ninguém amar sabia,
como quem ama a rosa namorada,
a pátria de repente degradada.
Ver que ninguém na rua uma canção
cantou de amor chamando à rebeldia
para o trabalho amargo da alegria.
Thiago de Mello
Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello
Um amigo é às vezes o deserto, outras a água. O real é a palavra, lembra Eugénio de Andrade.
Um amigo é às vezes o deserto
Um amigo é às vezes o deserto,
outras a água.
Desprende-te do ínfimo rumor
de agosto, nem sempre
um corpo é o lugar da furtiva
luz despida, de carregados
limoeiros de pássaros
e o verão nos cabelos;
é na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
O real é a palavra.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
Mais sobre Eugénio de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade
quinta-feira, março 25, 2010
Meu povo é meu abismo, meu castigo e meu destino. Nele me perco e a sua tanta dor me deixa surdo e cego, na revolta de Ferreira Gullar.
Meu povo, meu abismo
Meu povo é meu abismo.
Nele me perco:
a sua tanta dor me deixa
surdo e cego.
Meu povo é meu castigo
meu flagelo:
seu desamparo,
meu erro.
Meu povo é meu destino
meu futuro:
se ele não vira em mim
veneno ou canto -
apenas morro.
Ferreira Gullar
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar
Eu posso amar-te como Dante amou. Mas ir contigo à igreja isso não vou, lá essa é que eu não caio, diz Cesário Verde à amada com muita sinceridade.
Impossível
Nós podemos viver alegremente
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.
Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, comtemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos ramudos,
Cor de azeitona escura.
Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha
Ornada de crochet.
Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.
Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.
Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque.
E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola.
Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.
Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.
E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.
Posso ser teu amigo até a morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!
Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá essa é que eu não caio!
Cesário Verde
(1855-1886)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde
quarta-feira, março 24, 2010
Vinicius de Moraes põe-se a pensar que a vida é esta incerteza que nele mora. A vontade tremenda de ir-se embora e a tremenda vontade de ficar.
Natureza humana
Cheguei. Sinto de novo a natureza
Longe do pandemônio da cidade
Aqui tudo tem mais felicidade
Tudo é cheio de santa singeleza
Vagueio pela múrmura leveza
Que deslumbra de verde e claridade
Mas nada. Resta vívida a saudade
Da cidade em bulício e febre acesa
Ante a perspectiva da partida
Sinto que me arranca algo da vida
Mas quero ir. E ponho-me a pensar
Que a vida é esta incerteza que em mim mora
A vontade tremenda de ir-me embora
E a tremenda vontade de ficar.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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Para Miguel Torga, chama-se liberdade o bem que sentes. E chamam-se tiranias os acenos que o mundo cá de baixo faz.
Preservação
Chama-se liberdade o bem que sentes,
Águia que pairas sobre as serranias;
Chamam-se tiranias
Os acenos que o mundo
Cá de baixo faz;
Não desças do teu céu de solidão,
Pomba da verdadeira paz,
Imagem de nenhuma servidão!
Miguel Torga
(1907-1995)
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terça-feira, março 23, 2010
Só pode ser aquela, a jamais esquecida Bem-Amada. É ela sim, uma idéia louca no baú de espantos de Mario Quintana.
O baú
Como estranhas lembranças de outras vidas,
que outros viveram, num estranho mundo,
quantas coisas perdidas e esquecidas
no teu baú de espantos....Bem no fundo,
uma boneca toda estraçalhada!
(Isto não são brinquedos de menino...
alguma coisa deve estar errada)
mas o teu coração em desatino
te traz de súbito uma idéia louca:
é ela, sim! Só pode ser aquela,
a jamais esquecida Bem-Amada.
E em vão tentas lembrar o nome dela...
e em vão ela te fita... e a sua boca
tenta sorrir-te mas está quebrada!
Mario Quintana
(1906 - 1994)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
A virgem morena pedia pecado, mas a morte beijou a virgem. Nos versos de Di Cavalcanti, pintor e poeta.
O beijo
A virgem morena
Pedia pecado.
Na noite do medo,
No lago das cobras,
Os olhos de fogo
Da virgem morena
Queriam desgraças,
Queriam paixão...
O vento açoitava;
As flores dolentes
De espasmo murchavam.
A virgem morena
Pedia pecado.
As pernas molhadas
De água cheirosa
Abriam-se em galho
No negro do céu.
Os seios da virgem,
O' seios da virgem!
Dois lírios de ouro.
A virgem morena
Pedia pecado.
A virgem morena
É a deusa do mal?
Assim contaram-me no barranco
do Rio Grande...
É aquela que mata
Os homens fogosos
Que tentam beijá-la?
É a morta viva dos infernos?
Não tem coração nem alma
Aquela que só deseja o dia
E vive na treva?
É ela a rainha de mil desejos flagelada?
A virgem morena
Pedia pecado.
Caiam dos ramos
Os frutos de sangue
Corujas e bruxas
Dançavam no ar,
As pombas noturnas
Morriam de amor.
A virgem morena
Pedia pecado.
Por que essa angústia
Na incompreendida virgem?
Este céu negro
E o visgo verde das folhas venenosas?
Por que tanta coisa maldita
Cercando o corpo da virgem?
A virgem morena
Pedia pecado.
A morte beijou a virgem.
Gritavam caiporas
Uivavam as antas,
As onças hurlavam,
As cobras mordiam
As ancas das éguas.
O' gritos de corvos!
O' risos de loucos!
A morte beijou a virgem.
Nunca ninguém soube seu nome,
Seu corpo virou terra,
A erva daninha,
Nasceu pela terra
Com espinhos ferindo os pés dos homens.
A virgem morena
Pedia pecado.
Emiliano di Cavalcanti
(1897-1976)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Di_Cavalcanti
segunda-feira, março 22, 2010
Perdoa todo esse amor de mim e me perdoa de ti a indiferença. Em versos, Hilda Hilst dá por encerrados os dez chamamentos ao seu grande amor.
Dez chamamentos ao amigo
Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo.
Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
II
Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.
Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.
III
Se refazer o tempo, a mim, me fosse dado
Faria do meu rosto de parábola
Rede de mel, ofício de magia
E naquela encantada livraria
Onde os raros amigos me sorriam
Onde a meus olhos eras torre e trigo
Meu todo corajoso de Poesia
Te tomava. Aventurança, amigo,
Tão extremada e larga
E amavio contente o amor teria sido.
IV
Minha medida? Amor.
E tua boca na minha
Imerecida.
Minha vergonha? O verso
Ardente. E o meu rosto
Reverso de quem sonha.
Meu chamamento? Sagitário
Ao meu lado
Enlaçado ao Touro.
Minha riqueza? Procura
Obstinada, tua presença
Em tudo: julho, agosto
Zodíaco antevisto, página
Ilustrada de revista
Editorial, jornal
Teia cindida.
Em cada canto da Casa
Evidência veemente
Do teu rosto.
V
Nós dois passamos. E os amigos
E toda minha seiva, meu suplício
De jamais te ver, teu desamor também
Há de passar. Sou apenas poeta
E tu, lúcido, fazedor da palavra,
Inconsentido, nítido
Nós dois passamos porque assim é sempre.
E singular e raro este tempo inventivo
Circundando a palavra. Trevo escuro
Desmemoriado, coincidido e ardente
No meu tempo de vida tão maduro.
VI
Foi Julho sim. E nunca mais esqueço.
O ouro em mim, a palavra
Irisada na minha boca
A urgência de me dizer em amor
Tatuada de memória e confidência.
Setembro em enorme silêncio
Distancia meu rosto. Te pergunto:
De Julho em mim ainda te lembras?
Disseram-me os amigos que Saturno
Se refaz este ano. E é tigre
E é verdugo. E que os amantes
Pensativos, glaciais
Ficarão surdos ao canto comovido.
E em sendo assim, amor,
De que me adianta a mim, te dizer mais?
VII
Sorrio quando penso
Em que lugar da sala
Guardarás o meu verso.
Distanciado
Dos teus livros políticos?
Na primeira gaveta
Mais próxima à janela?
Tu sorris quando lês
Ou te cansas de ver
Tamanha perdição
Amorável centelha
No meu rosto maduro?
E te pareço bela
Ou apenas te pareço
Mais poeta talvez
E menos séria?
O que pensa o homem
Do poeta? Que não há verdade
Na minha embriaguez
E que me preferes
Amiga mais pacífica
E menos aventura?
Que é de todo impossível
Guardar na tua sala
Vestígio passional
Da minha linguagem?
Eu te pareço louca?
Eu te pareço pura?
Eu te pareço moça?
Ou é mesmo verdade
Que nunca me soubeste?
VIII
De luas, desatino e aguaceiro
Todas as noites que não foram tuas.
Amigos e meninos de ternura
Intocado meu rosto-pensamento
Intocado meu corpo e tão mais triste
Sempre à procura do teu corpo exato.
Livra-me de ti. Que eu reconstrua
Meus pequenos amores. A ciência
De me deixar amar
Sem amargura. E que me dêem
Enorme incoerência
De desamar, amando. E te lembrando
- Fazedor de desgosto -
Que eu te esqueça.
IX
Esse poeta em mim sempre morrendo
Se tenta repetir salmodiado:
Como te conhecer, arquiteto do tempo
Como saber de mim, sem te saber?
Algidez do teu gesto, minha cegueira
E o casto incendiado momento
Se ao teu lado me vejo. As tardes
Fiandeiras, as tardes que eu amava,
Matéria de solidão, íntimas, claras
Sofrem a sonolência de umas águas
Como se um barco recusasse sempre
A liquidez. Minhas tardes dilatadas
Sobreexistindo apenas
Porque à noite retomo minha verdade:
teu contorno, teu rosto álgido sim
E por isso, quem sabe, tão amado.
X
Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim
E me perdoa de ti a indiferença.
Hilda Hilst
(1930-1004)
Mais sobre Hilda Hilst em
Eu era um tipo alegre, mas que fazer da alegria quando a dor é um rio sem vau? Eu amei, te sentes mal, pergunta Mayakovsky.
A esperança
Injeta sangue
no meu coração,
enche-me até o bordo das veias!
Mete-me no crânio pensamentos!
Não vivi até o fim o meu bocado terrestre,
sobre a terra
não vivi o meu bocado de amor.
Eu era gigante de porte,
mas para que este tamanho?
Para tal trabalho basta uma polegada.
Com um toco de pena, eu rabiscava papel,
num canto do quarto, encolhido,
como um par de óculos dobrado dentro do estojo.
Mas tudo que quiserdes eu farei de graça:
esfregar,
lavar,
escovar,
flanar,
montar guarda.
Posso, se vos agradar,
servir-vos de porteiro.
Há, entre vós, bastante porteiros?
Eu era um tipo alegre,
mas que fazer da alegria,
quando a dor é um rio sem vau?
Em nossos dias,
se os dentes vos mostrarem
não é senão para vos morder
ou dilacerar.
O que quer que aconteça,
nas aflições,
pesar...
Chamai-me!
Um sujeito engraçado pode ser útil.
Eu vos proporei charadas, hipérboles
e alegorias,
malabares dar-vos-ei
em versos...
Eu amei...
mas é melhor não mexer nisso.
Te sentes mal?
Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)
Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Maiakovski
domingo, março 21, 2010
Álvaro de Campos diz que às vezes tem idéias felizes. E se pergunta: por que escrevi isto, onde fui buscar isto, de onde me veio isto?
Às vezes
Às vezes tenho idéias felizes,
Idéias subitamente felizes, em idéias
E nas palavras em que naturalmente se despegam...
Depois de escrever, leio...
Por que escrevi isto?
Onde fui buscar isto?
De onde me veio isto? Isto é melhor do que eu...
Seremos nós neste mundo apenas canetas com tinta
Com que alguém escreve a valer o que nós aqui traçamos?
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
sábado, março 20, 2010
Florbela Espanca diz que tem a pior velhice. A que é mais triste, aquela onde nem sequer existe lembrança de ter sido nova...outrora.
Pior velhice
Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso são andou na minha boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!
A Vida que ao nascer enfeita e touca
D'alvas rosas,a fronte da mulher,
Na minha fronte mística de louca
Martírios só poisou a emurchecer!
E dizem que sou nova... A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,
Ou está em nós e em nosso peito mora?!...
Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
Aquela onde nem sequer existe
Lembrança de ter sido nova...outrora...
Florbela Espanca
(1894-1930)
Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca
sexta-feira, março 19, 2010
Para umas noites que andam fazendo, Leminski quer ver quem some antes. A nuvem, a estrela ou ninguém.
Para umas noites que andam fazendo
deixe eu abrir a porta
quero ver se a noite vai bem
quem sabe a lua lua
ou nos sonhos crianças
sombras murmuram amém
deixa ver quem some antes
a nuvem a estrela ou ninguém
Paulo Leminski
(1944-1989)
Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski
Puta, puta. Ao longo dos teus gestos sem medida, caluniaste o meu corpo, diz Manuela Amaral em seu grito erótico.
Grito erótico
Caluniaste o meu corpo
ao longo dos teus gestos
sem medida
Desde a palavra exacta
do meu sexo
e soletraste-me puta
Puta
Puta
Angustiosamente erótica
abri-me em coxas
e penetrei-me na minha fauna aquática
Grito marinho
a escorrer nas algas
do meu ventre
Puta
Puta
Manuela Amaral
(1934-1995)
Mais sobre Manuela Amaral em
quinta-feira, março 18, 2010
Para João Cabral, o pior que existe no suicídio é o palavrório que enreda o caixão e o velório. Nos enterros, falam o medo e até mesmo os mudos.
Sujam o suicídio
O pior que existe no suicídio,
por limpo que seja, ou de tiro;
ou o suicídio por barbitúricos,
em que a dormir se cruza o muro;
pior que o incômodo resíduo
que se há de tratar como um vivo,
que há de lavar, barbear, pentear,
para a viagem que empreenderá;
o pior que há nele é o palavrório
que enreda o caixão e o velório
na oral, tropical, floração
que saliva a nossa nação.
Na verdade, onde mais o medo
é falador é nos enterros.
No enterro, falam mesmo os mudos,
e, se de suicida, falam duplo.
Ninguém deixa a mínima brecha
para a morte-Rilke, a da Igreja
e de outros que fazem da Porta
uma celebração deleitosa.
O Padre sabe: não há frestra
onde a transcendência ele meta
no falatório, mato fechado
que nem pode abrir-se a machado
(Enquanto isso, pensa? o cadáver:
maçada! não pude evaporar-me;
enfim: não se vende em balcão,
ainda, o suicidar-se de avião).
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto
Jorge de Lima sente que o século está podre. E pergunta ao Senhor Jesus, onde é que eu vou buscar poesia?
Adeus, poesia
Senhor Jesus, o século está podre.
Onde é que vou buscar poesia?
Devo despir-me de todos os mantos,
os belos mantos que o mundo me deu.
Devo despir o manto da poesia.
Devo despir o manto mais puro.
Senhor Jesus, o século está doente,
o século está rico, o século está gordo.
Devo despir-me do que é belo,
devo despir-me da poesia,
devo despir-me do manto mais puro
que o tempo me deu, que a vida me dá.
Quero leveza no vosso caminho.
Até o que é belo me pesa nos ombros,
até a poesia acima do mundo,
acima do tempo, acima da vida,
me esmaga na terra, me prende nas coisas.
Eu quero uma voz mais forte que o poema,
mais forte que o inferno, mais dura que a morte:
eu quero uma força mais perto de Vós.
Eu quero despir-me da voz e dos olhos,
dos outros sentidos, das outras prisões,
não posso Senhor: o tempo está doente.
Os gritos da terra, dos homens sofrendo
me prendem, me puxam - me dai Vossa mão.
Jorge de Lima
(1893-1953)
Mais sobre Jorge de Lima em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Lima
quarta-feira, março 17, 2010
Depois de ter as mãos beijadas, Mário de Andrade sente que o seu corpo está são. Sua alma foi-se embora, e o deixou.
Momento
Deve haver aqui perto uma roseira florindo,
Não sei... sinto por mim uma harmonia,
Um pouco de imparcialidade que a fadiga traz consigo.
Olho pra minhas mãos. E um ternura perigosa
Me faz passsar a boca sobre elas, roçando,
(De certo é alguma rosa...)
Numa ternura que não é mais perigosa não, é piedade paciente.
As rosas... Os milhões de rosas paulistanas...
Já tanto que enxerguei minhas mãos trabalhando,
E tapearem por brinquedo umas costas de amigo,
Se entregarem pra inimigo, erguerem dinheiro do chão...
Uma feita meus dedos pousaram nuns lábios,
Nesse momento eu quis ser cego!
Ela não quis beijar a ponta dos meus dedos,
Beijou as mãos, apaixonadamente, em submissão...
Ela beijou o pó das minhas mãos...
O mesmo pó que já desce na rosa nem bem ela se abre.
Deve haver por aqui perto uma roseira florindo...
Que harmonia por mim... Que parecença com jardim...
O meu corpo está são... Minha alma foi-se embora...
E me deixou.
Mário de Andrade
(1893-1945)
Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade
Manuel Alegre viu sua pátria pregada nos braços em cruz do povo. Mas sabe que há sempre alguém que resiste, há sempre alguém que diz não.
Trova do vento que passa
Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pro mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos bracos negros da fome.
E o vento não me diz nada
só o silencio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Manuel Alegre
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terça-feira, março 16, 2010
No anúncio da rosa, Drummond anuncia que a burguesia apodrece. E diz mais: aproveitem, a última rosa desfolha-se.
Anúncio da rosa
Imenso trabalho nos custa a flor.
Por menos de oito contos vendê-la? Nunca.
Primavera não há mais doce, rosa tão meiga
onde abrirá? Não, cavalheiros, sede permeáveis.
Uma só pétala resume auroras e pontilhismos,
sugere estâncias, diz que te amam, beijai a rosa,
ela é sete flores, qual mais fragrante, todas exóticas,
todas históricas, todas catárticas, todas patéticas.
Vede o caule,
traço indeciso.
Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
Deus me ajudara, mas ele é neutro, e mesmo duvido
que em outro mundo alguém se curve, filtre a paisagem,
pense uma rosa na pura ausência, no amplo vazio.
Vinde, vinde,
olhai o cálice.
Por preço tão vil mas peça, como direi, aurilavrada,
não, é cruel existir em tempo assim filaucioso.
Injusto padecer exílio, pequenas cólicas cotidianas,
oferecer-vos alta mercância estelar e sofrer vossa irrisão.
Rosa na roda,
rosa na máquina,
apenas rósea.
Selarei, venda murcha, meu comércio incompreendido,
pois jamais virão pedir-me, eu sei, o que de melhor se compôs na noite,
e não há oito contos. Já não vejo amadores de rosa.
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia apodrece.
Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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Enquanto disputam os doutores sobre o bem e o mal, o erro e a verdade, com sabedoria o poeta ensina: faze da tua realidade uma obra de beleza.
Sabedoria
Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!
Faze da tua realidade
uma obra de beleza
Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece...
Ronald de Carvalho
(1893-1935)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_de_Carvalho
segunda-feira, março 15, 2010
Quando perderes o gosto humilde da tristeza, sorri pela última vez. Sorri tristemente a tudo que outrora amaste, na compaixão de Manuel Bandeira.
Quando perderes o gosto humilde da tristeza...
Quando perderes o gosto humilde da tristeza,
Quando, nas horas melancólicas do dia,
Não ouvires mais os lábios da sombra
Murmurarem ao teu ouvido
As palavras de voluptuosa beleza
Ou de casta sabedoria;
Quando a tua tristeza não for mais que amargura,
Quando perderes todo estímulo e toda crença,
- A fé no bem e na virtude,
A confiança nos teus amigos e na tua amante,
Quando o próprio dia se te mudar em noite escura
De desconsolação e malquerença;
Quando, na agonia de tudo o que passa
Ante os olhos imóveis do infinito,
Na dor de ver murcharem as rosas,
E como as rosas tudo o que é belo e frágil,
Não sentires em teu ânimo aflito
Crescer a ânsia de vida como uma divina graça:
Quando tiveres inveja, quando o ciúme
Crestar os últimos lírios de tua alma desvirginada;
Quando em teus olhos áridos
Estancarem-se as fontes das suaves lágrimas
Em que se amorteceu o pecaminoso lume
De tua inquieta mocidade:
Então sorri pela última vez, tristemente,
A tudo que outrora
Amaste. Sorri tristemente...
Sorri mansamente... em um sorriso pálido... pálido
Como o beijo religioso que puseste
Na fronte morta de tua mãe... Sobre a sua fronte morte...
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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Três diferentes mulheres muito especiais. Para cada uma delas, Gomes Leal escreveu um incrível epitáfio.
Epitáfios
De uma cocotte
Como era bom pompear, em carros a Daumont,
sensacionais chapéus!
Mas lá no céu cristão que falta de bom-tom!
Não se usa lá carmim, pó-de-arroz, nem lorgnon,
nem se bebe Bordéus!...
De uma mundana
Rainha dos salões, mais formosas que as lendas
féericas do Erin!
O que te há de afligir nestas horas tremendas
é aparecer a Deus sem peignoir de rendas
e sem pôr o teu carmim.
Da Rigolboche*
Deusa do bacanal, foste a amável Naná,
ruidosa do bom tom.
E se acaso, nos céus, se baila como cá,
decerto já piscaste um olho a Jeová,
dançando o cotillon.
António Gomes Leal
(1848-1921)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gomes_Leal
*Margarida Badel, dançarina francesa muito famosa nos anos 1855/1860.
domingo, março 14, 2010
Manoel de Barros ocupa muito dele mesmo com o seu desconhecer. É um sujeito letrado em dicionários, não tem mais que 100 palavras.
Uma didática da invenção - XXI
Ocupo muito de mim com o meu desconhecer.
Sou um sujeito letrado em dicionários.
Não tenho que 100 palavras.
Pelo menos uma vez por dia me vou no Morais ou
no Viterbo -
A fim de consertar a minha ignorãça,
mas só acrescenta.
Despesas para minha erudição tiro nos almanaques:
- Ser ou não ser, eis a questão.
Ou na porta dos cemitérios:
- Lembra que és pó e que ao pó tu voltarás.
Ou no verso das folhinhas:
- Conhece-te a ti mesmo.
Ou na boca do povinho:
- Coisa que não acaba no mundo é gente besta
e pau seco
Etc
Etc
Etc
Maior que o infinito é a encomenda.
Manoel de Barros
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros
O frade de Álvares de Azevedo amara uma perdida, que loucura, mas tão bela, que seio de Madona. Ele nunca amara tão nívea criatura como aquela mulher.
O poema do frade*
Dorme! Ao colo do amor, pálida amante,
repousa, sonhador, nos lábios dela!
Qual em seio de mãe, febril infante!
No olhar, nos lábios da infantil donzela
inebria teu seio palpitante!
O murmúrio do amor em forma bela
tem doçuras que esmaiam no desejo
dos sonhos ao vapor, na onda de um beijo!
Que importa a perdição manchasse um dia
a altura virginal das roupas santas
e o mundo a esse corpo que tremia
rompese o véu que tímido alevantas?
E à noite lhe pousasse a fronte fria
nesse leito em que trêmulo te encantas
e ao bafejo venal murchasse flores,
flores que abriam a infantis amores?
Que importa? se o amor teu rosto beija,
se a beijas nua e sobre o peito dela
teu peito juvenil ama e lateja!
Se tua langue palidez revela
que tua alma febril sonha e deseja,
desmaiar-lhe de amor, gemer com ela,
ébrio da vida, a soluçar d'enleio,
pálido sonhador morrer-lhe ao seio!
Que importa o mundo além? Teu mundo é esse
onde na vida o coração te alegra!
Teu mundo é o serafim que às noites desce
e que lava no amor a mancha negra!
É a névoa de luz onde não lê-se
escrita à porta vil a infame regra
que assinala o bordel à mão poluta
e diz nas letras fundas - prostituta!
A essa pobre mulher na fronte bela
anátema escreveu a turba fria!
Banhe o remorso o travesseiro dela,
corram-lhe a mil da pálpebra sombria
prantos do coração, não há erguê-la
a eterna maldição. E quem diria
a solitária dor, da noite ao manto
que lavra o seio à cortesã em pranto?
Ah! Madalenas míseras! Ardentes
quantos olhos azuis se não inundam
nos transes do prazer em prantos quentes
quando os seios febris em ais abundam,
que o amante nos ósculos trementes
crê sonhos que do amor no mar se afundam!
Que suspiros no beijo que delira
que são lágrimas só! que são mentira!
E quantas vezes na cheirosa seda
da longa trança desatada, solta,
onde o moço de gozos embebeda
a fronte à febre juvenil revolta;
quando a vida, o frescor, a imagem leda
de esp'rança que morreu ao leito volta;
as lágrimas na dor ferventes correm...
Como em céu de verão estrelas morrem?
Ah! não chores! Que valem perfumadas
do Oriente as manhãs e céus e lua
e a natureza a vir entre alvoradas
e a láurea do porvir que sangue sua,
o val deserto, as noites estreladas
quando lânguida a vida em ais flutua!
Quando um suspiro as lágrimas apaga
e o lábio treme, e em beijos se embriaga?
Amar uma perdida! que loucura!
Mas tão bela! que seio de Madona!
Nunca amara tão nívea criatura
como aquela mulher que ali ressona!
Álvares de Azevedo
(1831-1852)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%81lvares_de_Azevedo
*Fragmento da Canto Segundo
sábado, março 13, 2010
Para Ricardo Reis, a cada hora se muda não só a hora, mas o que se crê nela. E a inglória vida passa entre viver e ser.
Inglória
Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam, não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora
Mas o que se crê nela, e a vida passa
Entre viver e ser.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa
sexta-feira, março 12, 2010
Quasi o amor, quasi o princípio e o fim. Hoje, de mim, só resta o desencanto das coisas que beijei mas não vivi, na paixão de Mário de Sá-Carneiro.
Quasi
Um pouco mais de sol - eu era brasa,
Um pouco mais de azul - eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Assombro ou paz? Em vão...Tudo esvaído
Num baixo mar enganador d'espuma;
E o grande sonho despertado em bruma,
O grande sonho - ó dor! - quasi vivido...
Quasi o amor, quasi o triunfo e a chama,
Quasi o princípio e o fim - quasi a expansão...
Mas na minh'alma tudo se derrama...
Entanto nada foi só ilusão!
De tudo houve um começo...e tudo errou...
- Ai a dor de ser-quasi, dor sem fim...-
Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,
Asa que se elançou mas não voou...
Momentos d'alma que desbaratei...
Templos aonde nunca pus um altar...
Rios que perdi sem os levar ao mar...
Ânsias que foram mas que não fixei...
Se me vagueio, encontro só indícios...
Ogivas para o sol - vejo-as cerradas;
E mãos d'herói, sem fé, acobardadas,
Puseram grades sobre os precipícios...
Num ímpeto difuso de quebranto,
Tudo encetei e nada possuí...
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi...
......................................................................
......................................................................
Um pouco mais de sol - e fora brasa,
Um pouco mais de azul - e fora além.
Para atingir, faltou-me um golpe d'asa...
Se ao menos eu permanecesse aquém...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_S%C3%A1-Carneiro
quinta-feira, março 11, 2010
Todos foram saindo, tão calados, que Guimarães Rosa nem sabe se ficou mesmo só. Ele não quer ir mais longe, porque a sua pátria é a memória.
Revolta
Todos foram saindo, de mansinho,
tão calados,
que eu nem sei
se fiquei mesmo só.
Não trouxe mensagem
e nem me deram senha...
Disseram-se que não iria perder nada,
porque não há mais céu.
E agora, que tenho medo,
e estou cansado,
mandam-me embora...
Mas não quero ir para mais longe,
desterrado,
porque a minha pátria é a memória.
Não, não quero ser desterrado,
que a minha pátria é a memória...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Guimar%C3%A3es_Rosa
Os dois corpos, na paixão de Maria Teresa Horta.
Os dois corpos
O peito - o feltro
a curva da cintura
as mãos - os dedos
a lentidão dos braços
da boca
os gomos
da outra boca
os dentes
A laranja
das coxas
o ventre
que entreabres
O vaso
o visco - o suco
do teu corpo
O surto
o sítio - o véu do teu
palato
os pés - o pénis
no sono dos meus ombros
os seios - as pernas
os pulsos
que entreabres
O vidro do desejo
o vinho dos teus olhos
o vagar da arte
dos teus hábitos
O cedo
a seda da pele
das virilhas
na branca sede
da curva dos teus lábios.
Maria Teresa Horta
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta
quarta-feira, março 10, 2010
Para pensar em ti, todas as horas fogem, tudo são praias onde o mar afoga o amor. Pois bem sei que falar é o mesmo que morrer, na paixão de Cecília.
Para pensar em ti todas as horas fogem
Para pensar em ti todas as horas fogem:
o tempo humano expira em lágrima e cegueira.
Tudo são praias onde o mar afoga o amor.
Quero a insônia, a vigília, uma clarividência
desse instante que habito - ai, meu domínio triste!,
ilha onde eu mesma nada sei fazer por mim.
Vejo a flor, vejo no ar a mensagem das nuvens
- e na minha memória és imortalidade -
vejo as datas, escuto o próprio coração.
E depois o silêncio. E teus olhos abertos
nos meus fechados. E esta ausência em minha boca:
pois bem sei que falar é o mesmo que morrer.
Da vida à Vida, suspensas fugas.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles
A revolta de Mauro Mota com a vida da operária da fábrica de tecidos na beira do Capibaribe. Ela veste o Recife e volta para casa quase nua.
A tecelã
Toca a sereia na fábrica,
e o apito como um chicote
bate na manhã nascente
e bate na tua cama
no sono da madrugada.
Ternuras da áspera lona
pelo corpo adolescente.
É o trabalho que te chama.
Às pressas tomas o banho,
tomas teu café com pão,
tomas teu lugar no bote
no cais do Capibaribe.
Deixas chorando na esteira
teu filho de mão solteira.
Levas ao lado a marmita,
contendo a mesma ração
do meio de todo o dia,
a carne-seca e o feijão.
De tudo quanto ele pede,
dás só bom-dia ao patrão
e recomeças a luta
na engrenagem da fiação.
Ai, tecelã sem memória,
de onde veio ese algodão?
Lembras o avô semeador
com as sementes na mão
e os cultivadores pais?
Perdidos na plantação
ficaram teus ancestrais.
Plantaram muito. O algodão
nasceu também na cabeça,
cresceu no peito e na cara.
Dispersiva tecelã,
esse algodão, quem colheu?
Tuas pequenas irmãs,
deixando a infância colhida
e o suor infantil e o tempo
na roda da bolandeira
para fazer-te fiandeira.
Ai, tecelã perdulária,
esse algodão, quem colheu?
Muito embora nada tenhas,
estás tecendo o que é teu.
Teces tecendo a ti mesma
na imensa maquinaria,
como se entrasses inteira
na boca do tear e desses
a cor do rosto e dos olhos
e o teu sangue à estamparia.
Os fios dos teus cabelos
entrelaças nesses fios,
e outros fios dolorosos
dos nervos de fibra longa.
Ó tecelã perdulária,
enroscas-te em tanta gente
com os ademanes ofídicos
da serpente multifária.
A multidão dos tecidos
exige-te esse tributo.
Para ti, nem sobra ao menos
um pano preto de luto.
Vestes as moças da tua
idade e dos teus anseios,
mas livres da maldição
do teu salário mensal,
com o desconto compulsório,
com os infalíveis cortes
de uma teórica assistência,
que não chega na doença,
nem chega na tua morte.
Com essa policromia
de fazendas, todo dia,
iluminas os passeios,
brilhas nos corpos alheios.
E essas moças desconhecem
o teu sofrimento têxtil,
teu desespero fabril.
Teces os vestidos, teces
agasalhos e camisas,
os lenços especialmente
para adeus, choro e coriza.
Teces toalhas de mesa,
e a tua mesa vazia.
Toca a sereia da fábrica,
e o apito como um chicote
bate neste fim de tarde,
bate no rosto da lua.
Vale de novo para o bote.
Navegam fome e cansaço
nas águas negras do rio.
Há muita gente na rua
parada no meio-fio.
Nem liga importância à tua
blusa rota de operária.
Vestes o Recife, e voltas
para casa quase nua.
Mauro Mota
(1911-1984)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota
terça-feira, março 09, 2010
Murilo Mendes queria possuir cem milhões de bocas e cem milhões de braços. Para gritar por todos eles e deter a roda que tritura corpos e almas.
Desejo
Ao sopro da transfiguração noturna
Distingo os fantasmas de homens
Em busca da liberdade perdida:
Quisera possuir cem milhões de bocas,
Quisera possuir cem milhões de braços
Para gritar por todos eles
E de repente deter a roda descomunal
Que tritura corpos e almas
Com direito ao orvalho da manhã,
À presença do amor, à música dos pássaros
A estas singelas flores, a este pão.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes
A felicidade, na poesia de Abgar Renault.
Felicidade
Felicidade - o título tão comprido deste poema tão pequeno!
Felicidade - substantivo comum, feminino, singular, polissilábico.
Tão polissilábico. Tão singular. Tão feminino. E tão pouco comum.
Substantivo complicado, metafísico
que cabe todo
na beleza clara de alguém que eu sei
e no sorriso sem dentes de meu filho.
Abgar Renault
(1901-1995)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Abgar_Renault
segunda-feira, março 08, 2010
Poema para todas as mulheres, de Vinicius de Moraes.
Poema para todas as mulheres
No teu branco seio eu choro.
Minhas lágrimas descem pelo teu ventre
E se embebedam do perfume do teu sexo.
Mulher, que máquina és, que só me tens desesperado
Confuso, criança para te conter!
Oh, não feches os teus braços sobre a minha tristeza, não!
Ah, não abandones a tua boca à minha inocência, não!
Homem sou belo
Macho sou forte, poeta sou altíssimo
E só a pureza me ama e ela é em mim uma cidade e tem mil e uma portas
Ai! teus cabelos recendem à flor da murta
Melhor seria morrer ou ver-te morta
E nunca, nunca poder te tocar!
Mas, fauno, sinto o vento do mar roçar-me os braços
Anjo, sinto o calor do vento nas espumas
Passarinho, sinto o ninho nos teus pelos...
Correi, correi, ó lágrimas saudosas
Afogai-me, tirai-me deste tempo
Levai-me para o campo das estrelas
Entregai-me depressa à lua cheia
Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos
Que eu não posso mais, ai!
Que esta mulher me devora!
Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha, quero o colo de Nossa Senhora!
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
Mais sobre Vinicius de Moraes em
A minha rua é uma rua como tantas outras. Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo desencontro de noite, diz Vinicius de Moraes sobre a sua rua.
Rua da amargura
E tem casas baixas que ficam me espiando de noite
Quando a minha angústia passa olhando o alto.
A minha rua tem avenidas escuras e feias
De onde saem papéis velhos correndo com medo do vento
E gemidos de pessoas que estão eternamente à morte.
A minha rua tem gatos que não fogem e cães que não ladram
Tem árvores grandes que tremem na noite silente
Fugindo as grandes sombras dos pés aterrados.
A minha rua é soturna…
Na capela da igreja há sempre uma voz que murmura louvemos
Sozinha e prostrada diante da imagem
Sem medo das costas que a vaga penumbra apunhala.
A minha rua tem um lampião apagado
Na frente da casa onde a filha matou o pai
Porque não queria ser dele.
No escuro da casa só brilha uma chapa gritando quarenta.
A minha rua é a expiação de grandes pecados
De homens ferozes perdendo meninas pequenas
De meninas pequenas levando ventres inchados
De ventres inchados que vão perder meninas pequenas.
É a rua da gata louca que mia buscando os filhinhos nas portas das casas.
É a impossibilidade de fuga diante da vida
É o pecado e a desolação do pecado
É a aceitação da tragédia e a indiferença ao degredo
Como negação do aniquilamento.
É uma rua como tantas outras
Com o mesmo ar feliz de dia e o mesmo desencontro de noite.
É a rua por onde eu passo a minha angústia
Ouvindo os ruídos subterrâneos como ecos de prazeres inacabados.
É a longa rua que me leva ao horror do meu quarto
Pelo desejo de fugir à sua murmuração tenebrosa
Que me leva à solidão gelada do meu quarto...
Rua da amargura…
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes
Inferno, eterno inverno. Quero dar teu nome à dor sem nome deste dia, nos versos tristes de Mário Faustino.
Inferno, eterno inverno, quero dar
Inferno, eterno inverno, quero dar
Teu nome à dor sem nome deste dia
Sem sol, céu sem furor, praia sem mar,
Escuma de alma à beira da agonia,
Inferno, eterno inverno, quero olhar
De frente a gorja em fogo da elegia,
Outono e purgatório, clima e lar
De silente quimera, quieta e fria.
Inverno, teu inferno a mim não traz
Mais do que a dura imagem do juízo
Final com que me aturde essa falaz
Beleza de teus versos de granizo:
Carátula celeste, onde o fugaz
Estio de teu riso - paraíso?
Mário Faustino
(19301-962)
Mais sobre Mário Faustino em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Faustino
domingo, março 07, 2010
O domingo, segundo Mario Quintana.
Elegia urbana
Rádios. Tevês.
Goooooooooooooooooooooooooooooooolo!!!
(O domingo é um cachorro escondido debaixo da cama)
Mario Quintana
(1906-1994)
Mais sobre Mario Quintana em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana
Seria a opressão, talvez como o musgo, inevitável? Para Brecht, indispensável é a compaixão dos oprimidos pelos oprimidos, ela é a esperança do mundo.
A esperança do mundo
1
Seria a opressão tão antiga quanto o musgo dos lagos?
Não se pode evitar o musgo dos lagos.
Seria tudo o que vejo natural, e estaria eu doente, ao desejar remover o
irremovível?
Li canções dos egípcios, dos homens que construíram as pirâmides.
Queixavam-se do seu fardo e perguntavam quando terminaria a opressão. Isto
há quatro mil anos.
A opressão é talvez como o musgo, inevitável.
2
Se uma criança surge diante de um carro, puxam-na para uma calçada. Não
o homem bom, a quem erguem monumentos, faz isso. Qualquer um retira
a criança da frente do carro.
Mas aqui muitos estão sob o carro, e muitos passam e nada fazem.
Seria porque são tantos os que sofrem? Não se deve mais ajudá-los, por
serem tantos? Ajudam-nos menos.
Também os bons passam, e continuam sendo tão bons como eram antes
de passarem.
3
Quanto mais numerosos os que sofrem, mais naturais parecem seus
sofrimentos, portanto. Quem deseja impedir que se molhem os peixes do
mar?
E os sofredores mesmos partilham dessa dureza contra si e deixam que
lhes falte bondade entre si.
É terrível que o homem se resigne tão facilmente com o existente, não só
com as dores alheias, mas também com as suas próprias.
Todos os que meditaram sobre o mau estado das coisas recusam-se a apelar
à compaixão de uns por outros. Mas a compaixão dos oprimidos pelos
oprimidos é indispensável.
Ela é a esperança do mundo.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht
sexta-feira, março 05, 2010
Álvaro de Campos está tonto, tonto de tanto dormir ou de tanto pensar. E se pergunta: afinal, que vida fiz eu da vida?
Estou tonto
Estou tonto,
Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
Ou de ambas as coisas..
O que sei é que estou tonto
E não sei bem se me devo levantar da cadeira
Ou como me levantar dela.
Fiquemos nisto: estou tonto.
Afinal,
Que vida fiz eu da vida?
Nada.
Tudo interstícios,
Tudo aproximações,
Tudo função do irregular e do absurdo,
Tudo nada.
É por isso que estou tonto...
Agora
Todas as manhãs me levanto
Tonto...
Sim, verdadeiramente tonto...
Sem saber em mim e meu nome,
Sem saber onde estou,
Sem saber o que fui,
Sem saber nada.
Mas se isto é assim, é assim,
Deixo-me estar na cadeira,
Estou tonto.
Fico sentado
E tonto,
Sim, tonto,
Tonto...
Tonto.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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