segunda-feira, novembro 30, 2009

Nos versos de Carlos Drummond de Andrade, a falta que ama procura alguém que não há. É a falta ou ele que sente o sonho do verbo amar?


A falta que ama


Entre areia, sol e grama
o que se esquiva se dá,
enquanto a falta que ama
procura alguém que não há.

Está coberto de terra,
forrado de esquecimento.
Onde a vista mais se aferra,
a dália é toda cimento.

A transparência da hora
corrói ângulos obscuros:
cantiga que não implora
nem ri, patinando muros.

Já nem se escuta a poeira
que o gesto espalha no chão.
A vida conta-se, inteira,
em letras de conclusão.

Por que é que revoa à toa
o pensamento, na luz?
E por que nunca se escoa
o tempo, chaga sem pus?

O inseto petrificado
na concha ardente do dia
une o tédio do passado
a uma futura energia.

No solo vira semente?
Vai tudo recomeçar?
É a falta ou ele que sente
o sonho do verbo amar?

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Quem disse, quem? A busca de Maria Teresa Horta para muitas questões.


Quem disse


Quem disse
que esta ausência te devia?

Quem pensou
que esta denúncia se enganava?

Que um dia era pior
que outro dia
Que à noite era melhor
porque senhava?

Quem disse
que esta dor te pertencia?

Quem pensou que este amor
me perturbava?

Que o longe era mais perto
se fugias
Que o dentro era mais longe
porque estavas?

Quem disse
que este ardor te evidencia?

Quem pensou que esta pena
me cansava?

Que calar era pior
se te despia
Que gritar era melhor
se te largava?

Quem disse
que esta paixão me curaria?

Quem pensou que esta loucura
me passava?

Que deixar-te era paz
porque corria
Que querer-te era mau
porque te amava?

Quem disse
que esta paixão te espantaria?

Quem pensou que esta saudade
me rasgava?

Que tudo era diferente
se te via
Que o pior era saber
que aqui não estavas?

Quem disse
que esta ternura te devia?

Quem pensou que este saber
se enganava?

Neste langor crescente
que desvia
Neste entender de nós
que cintilava?

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

domingo, novembro 29, 2009

Para Alberto Caeiro, é talvez o último dia da sua vida. E este foi o seu último poema.


É talvez


É talvez o último dia da minha vida.
Saudei o sol, levantando a mão direita,
Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,
Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

Mais sobre Fernando Pessoa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Até o fim, por Dom Hélder Câmara.


Até o fim


Não, não pares.
É graça divina
começar bem.
Graça maior,
persistir na caminhada certa.
manter o ritmo...
Mas graça das graças
é não desistir.
Podendo ou não podendo,
caindo, embora, aos pedaços,
chegar até o fim...

Dom Hélder Câmara
(1901-1999)

Mais sobre Dom Hélder Câmara em
http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lder_C%C3%A2mara

sábado, novembro 28, 2009

Num pobre beco sombrio na Lapa, Vinicius ainda sente a presença de Manuel Bandeira. Em seu pensamento, é o farol da poesia brilhando serenamente.


Lapa de Bandeira


Existia, e ainda existe
Um certo beco na Lapa
Onde assistia, não assiste
Um poeta no fundo triste
No alto de um apartamento
Como no alto de uma escarpa.

Em dias de minha vida
Em que me levava o vento
Como uma nave ferida
No cimo da escarpa erguida
Eu via uma luz discreta
Acender serenamente.

Era a ilha da amizade
Era o espírito do poeta
A buscar pela cidade
Minha louca mocidade.
Como uma nave ferida
Perambulando patética.

E eu ia e ascensionava
A grande espiral erguida
Onde o poeta me aguardava
E onde tudo me guardava
Contra a angústia do vazio
Que embaixo me consumia.

Um simples apartamento
Num pobre beco sombrio
Na Lapa, junto ao convento...
Porém, no meu pensamento
Era o farol da poesia
Brilhando serenamente.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_de_Moraes


Quem poderia escrever no século 18 um soneto com o título Autobiografia e com tanta sinceridade? Só ele, o Bocage, Manuel Maria Barbosa du Bocage.


Autobiografia


De cerúleo gabão não bem coberto,

passeia em Santarém chuchado moço,

mantido, às vezes, de sucinto almoço,

de ceia casual, jantar incerto;

dos esbrugados peitos quase aberto,
versos impinge por miúde e grosso;
e do que em frase vil chamam caroço,
se o que, é vox clamantis in deserto;

pede às moças ternura, e dão-lhe motes;
que, tendo um coração como estalage,
vão nele acomodando a mil peixotes.

Sabes, leitor, quem sofre tanto ultraje,
cercado de um tropel de franchinotes?
– É o autor do soneto: – é o Bocage.

Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)

Mais sobre Manuel Maria Barbosa Du Bocage
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Maria_Barbosa_du_Bocage

sexta-feira, novembro 27, 2009

É impossível estarmos juntos ainda que do meu lado adormecesses. Porque o véu que protege a vida nos separa e nos protege, na paixão de Adélia Prado.


Intenso brilho

É impossível no mundo
estarmos juntos
ainda que do meu lado adormecesses.
O véu que protege a vida
nos separa.
O véu que protege a vida
nos protege.
Aproveita, pois,
que é tudo branco agora,
à boca do precipício,
neste vórtice
e fala
nesta clareira aberta pela insônia
quero ouvir tua alma
a que mora na garganta
como em túmulos
esperando a hora da ressurreição,
fala meu nome
antes que eu retorne
ao dia pleno,
à semi-escuridão.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Toque baião, frevo, rock, rumba, toque tudo sempre assim. Porque eu quero que você se toque em cada parte de mim, diz Alice Ruiz em sua canção.


Toque-me

Toque baião, toque frevo,
toque rock, toque rumba,
mas não toque nesse assunto
toque tudo sempre assim
só não toque nesse assunto
e nunca toque no fim
toque paixão, toque samba,
toque funk, toque mambo
toque só porque eu mando
toque o mundo, toque fundo
eu quero que você se toque
em cada parte de mim.


Alice Ruiz

Mais sobre Alice Ruiz em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Alice_Ruiz

quinta-feira, novembro 26, 2009

Há muitas mulheres iguais à preferida de Ferreira Gullar. Mas só ela tem aqueles olhos, olhos sem adjetivos, olhos originais.


Canção de preferência


Não quero teus seios túmidos
de desejos maternais.
Se teus seios são redondos,
há muitos outros iguais.

Não quero teus lábios úmidos
(beijos, carícias, corais).
Se teus lábios são vermelhos,
existem lábios iguais.

Não desejo teus cabelos
- lembranças de vendavais -
Se teus cabelos são belos,
sei de cabelos iguais.

Não, não desejo teu corpo
de contornos sugestivos,
de braços, de tudo o mais...

Só quero teus olhos - teus
olhos sem adjetivos

- teus olhos originais!

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

O poeta mineiro Belmiro Braga fez em versos sua propaganda eleitoral. E por incrível que pareça, foi eleito, não assumiu e acabou nome de cidade.


Propaganda eleitoral


Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extrachapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de ofício é de primeira.
Vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes...que ficar calado.

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal, representante,
agora aspiro a ser como escrivão;

e, eleito, espero, mas que maravilha!
ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsídio, quer trabalhe ou não...

Belmiro Braga
(1872-1937)

Mais sobre Belmiro Braga em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Belmiro_Ferreira_Braga

quarta-feira, novembro 25, 2009

Dois loucos no bairro de Leminski: um passa os dias chutando postes para ver se acendem, o outro as noites apagando palavras contra um papel branco.


Dois loucos no bairro


Um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também.

Paulo Leminski
(1944-1989)

Mais sobre Paulo Leminski em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Ela amava um jogador de foot-ball, o dono de uma barata Ford e um bate-calçadas da Avenida. Para Olegário Mariano, três peraltas, cada qual pior.


Os três reis magros


Amas a três peraltas. Dividida
tua alma é deles. Cada qual pior.
Andam-se engalfinhando toda a vida...
Gaspar e Baltasar e Melchior.

Este joga foot-ball. É um rei do sport,
difícil de levar-se de vencida.
Aquele tem uma barata Ford.
E o outro é um bate-calçadas da Avenida.

Isso é um nunca acabar! De luta em luta,
de mentira em mentira, esperta e astuta,
vais a vida levando...Mas bem vês:

tornas teus dias cada vez mais agros
e, dando o coração aos três reis magros,
ficas mais magra do que todos três.

Olegário Mariano
(1889-1958)

Mais sobre Olegário Mariano em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Oleg%C3%A1rio_Mariano

terça-feira, novembro 24, 2009

Vai-se a vida, resta a canção. Não foi uma canção perdida, ficaste no meu coração, diz Cecília depois de perder metade do juízo e ir dar ao Paraíso.


Dedicatória


Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.

.................................................

Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: "Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!"

(Qual seria esse tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Dante Milano toma um trago de tristeza na amurada do cais. E vai andando sem saber aonde o leva este amor.


A partida


Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
aonde me leva este amor.

Dante Milano
(1899-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Dante_Milano

segunda-feira, novembro 23, 2009

Manuel Bandeira quer o moreno de Estela, a brancura de Elisa, a saliva de Bela, as sardas de Adalgisa. Ele quer tanta coisa e não tem nada que quer.


Belo Belo


Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdá e Cusco
Quero quero
Quero o moren0 de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Afasta de mim este teu corpo mole, triste e violado. Foi o que Joaquim Cardoso disse em seus versos, naquela manhã de chuva, à suave Maria.


Afasta de mim este teu corpo


Afasta de mim este teu corpo
Mole, triste e violado;
Este corpo que nasceu como uma flor de esponja
Na região sombria das virtudes imperfeitas.
Passaram sobre ele as glórias do mundo
E a força lunática dos destinos incertos.
Passaram como a nuvem sobre a batalha,
Como o vento sobre a paisagem,
Como o vento do mar que envolve a minha casa.

Nesta manhã de chuva, suave Maria.

Joaquim Cardozo
(1897-1978)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Cardoso

domingo, novembro 22, 2009

O coração do poeta quebrou-se.


O meu coração


O meu coração quebrou-se
Como um bocado de vidro
Quis viver e enganou-se...

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Quem dá aos pobres, empresta a Deus. Neste poema, Castro Alves se colocou à frente da campanha de ajuda aos órfãos dos heróis da Guerra do Paraguai.


Quem dá aos pobres, empresta a Deus.


Eu, Que a pobreza de meus pobres cantos
Dei aos heróis—aos miseráveis grandes—,
Eu, que sou cego, —mas só peço luzes...
Que sou pequeno, — mas só fito os Andes....
Canto nest'hora, como o bardo antigo
Das priscas eras, que bem longe vão,
O grande nada dos heróis, que dormem
Do vasto pampa no funéreo chão...

Duas grandezas neste instante cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se abraçam!...
Uma—é um livro laureado em luzes...
Outra— uma espada, onde os lauréis se enlaçam.
Nem cora o livro de ombrear coto sabre...
Nem cora o sabre de chamá-lo irmão...
Quando em loureiros se biparte o gládio
Do vasto pampa no funéreo chão.

E foram grandes teus heróis, ó pátria,
—Mulher fecunda, que não cria escravos —,
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
"Parti — soldados, mas voltei-me — bravos!
E qual Moema desgrenhada, altiva,
Eis tua prole, que se arroja então,
De um mar de glórias apartando as vagas
Do vasto pampa no funéreo chão.

E esses Leandros do Helesponto novo
Se resvalaram — foi no chão da história...
Se tropeçaram — foi na eternidade...
Se naufragaram—foi no mar da glória...
E hoje o que resta dos heróis gigantes?...
Aqui — os filhos que vos pedem pão...
Além — a ossada, que branqueia a lua,
Do vasto pampa no funéreo chão.

Ai! quantas vezes a criança loura
Seu pai procura pequenina e nua,
E vai, brincando co'o vetusto sabre,
Sentar-se à espera no portal da rua...
Mísera mãe, sobre teu peito aquece
Esta avezinha, que não tem mais pão!...
Seu pai descansa — fulminado cedro —
Do vasto pampa no funéreo chão.

Mas, já que as águias lá no sul tombaram
E os filhos d'águias o Poder esquece...
"'É grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...
Lançai— a esmola, e colhereis—a prece!.
Oh! dai a esmola... que do infante lindo
Por entre os dedos da pequena mão,
Ela transborda... e vai cair nas tumbas
Do vasto pampa no funéreo chão

Há duas cousas neste mundo santas:
- O rir do infante, - o descansar do morto...
O berço - é a barca, que encalhou na vida,
A cova - é a barca do sidéreo porto...
E vós dissesses para o berço - Avante! -
Enquanto os nautas, que ao Eterno vão,
Os ossos deixam, qual na praia as âncoras,
Do vasto pampa no funéreo chão.

É santo o laço, em qu'hoje aqui s'estreitam
De heróicos troncos - os rebentos novos - !
É que são gêmeos dos heróis os filhos,
Inda que filhos de diversos povos!
Sim! me parece que nest'hora augusta
Os mortos saltam da feral mansão...
E um "bravo!" altivo de além-mar partindo
Rola do pampa no funéreo chão!...

Castro Alves
(1847-1871)

Mais sobre Castro Alves em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

sábado, novembro 21, 2009

Toda a noite o rouxinol chorou. E Florbela Espanca também, pensando que era a alma dela que chorava perdida em seu canto.


Alma perdida


Toda esta noite o rouxinol chorou,
Gemeu, rezou, gritou perdidamente!
Alma de rouxinol, alma da gente,
Tu és, talvez, alguém que se finou!

Tu és, talvez, um sonho que passou,
Que se fundiu na Dor, suavemente...
Talvez sejas a alma, alma doente
D'alguém que quis amar e nunca amou!

Toda a noite choraste...e eu chorei
Talvez porque, ao ouvir-te, advinhei
Que ninguém é mais triste do que nós!

Contaste tanta coisa à noite calma,
Que eu pensei que tu eras a minh'alma
Que chorasse perdida em tua voz!...

Florbela Espanca
(1894-1930)

Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

Naquelas noites estranhas, o amor era flama e juventude. E Augusto Frederico Schmidt procurava aqueles olhos cheios de mistério e ternuras inéditas.


Soneto


Os laranjais em flor. Noites estranhas
Em que o amor era flama e juventude.
Luas novas no céu, flores novas na terra,
Frutos para nascer, palpitando nas árvores.

Laranjais que a lua doce e quieta
Amadurecia com o seu sorriso enternecido;
Laranjais em flor que o vento amava,
Que o vento apertava nos seus longos braços;

Laranjais que já destes tantos frutos
- Dizei-me hoje : onde estão aqueles olhos
Cheios de mistérios e ternuras inéditas?

Dizei-me, árvores: onde estão aquelas mãos
De febre, aquelas mãos morenas e macias,
E aqueles seios nascendo no corpo em flor?

Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

Mais sobre Augusto Frederico Schmidt em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt

sexta-feira, novembro 20, 2009

Ponteando sobre o amigo ruim, Mário de Andrade diz que eles não são mais amigos um do outro não. E sofre, porque o outro é amigo do mar, do rio...


Ponteando sobre o amigo ruim


Enfim a gente não é mais amigo um do outro não.
Você anda fácil, levianinho.
No labirinto das complicações.
Que sutileza! quanta graça dançarina!...
É certo que fica sempre
Bastante pó das asas de você
Nos galhos, nos espinhos,
Até nas flores desse mato...
Mesmo já pus reparo várias vezes
Nas asas de você estragadas pelas beiras...
Porém o essencial, o importante
É que apesar desse estrago inda você pode ver.

Eu não sou assim não.
Sou pesado, bastante estabanado,
Não tenho asa nem muita educação.
Careço de caminho largo, bem direito.
Si* falta espaço, quebro tudo,
Me firo, me fatigo... Afinal caio.
No meio do mato eu paro, não posso mais caminhar.
Não posso mais.
Você...É possível que ainda me chame de amigo...
Mesmo perdendo um bocadinho de asa
Pousa no meu espinheiro e inda pode voar depois.
Mas eu, eu sofro é certo,
Porém já não sou mais amigo de você.

Você é amigo do mar, você é amigo do rio...

Mário de Andrade
(1893-1945)

Mais sobre Mário de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade


*como no original

O poeta teceu uma coroa de brancas rosas para adornar as tranças luminosas do seu oculto amor. Mas Eugénio de Castro nunca a encontrou.


A coroa de rosas


A fim, oculto amor, de coroar-te,
de adornar tuas tranças luminosas,
uma coroa teci de brancas rosas,
e fui pelo mundo afora, a procurar-te.

Sem nunca te encontrar, crendo avistar-te
nas moças que encontrava, donairosas,
fui-as beijando e fui-lhes dando as rosas
da coroa feita com amor e arte.

Trago, de caminhar, os membros lassos,
acutilam-me os ventos e as geadas,
já não sei o que são noites serenas...

Sinto que vais chegar, ouço-te os passos,
mas ai! nas minhas mãos ensanguentadas
uma coroa de espinhos trago apenas!

Eugénio de Castro
(1869-1944)

Mais sobre Eugénio de Castro em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Castro

quinta-feira, novembro 19, 2009

Para Adélia Prado, tudo no mundo é perfeito e a morte é amor. E só existe um único modo de se dizer a alguém: não esqueço você.


Formas


De um único modo se pode dizer a alguém:
'não esqueço você'.
A corda do violoncelo fica vibrando sozinha
sob um arco invisível
e os pecados desaparecem como ratos flagrados.
Meu coração causa pasmo porque bate
e tem sangue nele e vai parar um dia
e vira um tambor patético
se falas no meu ouvido:
'não esqueço você'.
Manchas de luz na parede,
uma jarra pequena
com três rosas de plástico.
Tudo no mundo é perfeito,
e a morte é amor.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Marta mandou um bilhete ardente para Cesário Verde dizendo que morreria por ele. Mas o poeta sabe que os olhos dela dizem mais que muitas bibliotecas.


Lúbrica...


Mandaste-me dizer
no teu bilhete ardente
que hás de por mim morrer,
morrer muito contente.

Lançaste no papel
as mais lascivas frases:
a carta era um painel
de cenas de rapazes.!

Ó cálida mulher,
teus dedos delicados,
traçaram do prazer
os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
é muito mais fogoso
que a febre epistolar
do teu bilhete ansioso:

do teu rostinho oval
os olhos tão nefandos
traduzem menos mal
os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
libidinosa Marta,
teus olhos dizem mais
que a tua própria carta.

As grandes comoções
tu neles, sempre, espelhas:
são lúbricas paixões
as vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
mulher, que me dissecas,
teus olhos dizem mais
que muitas bibliotecas.

Cesário Verde
(1855-1886)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ces%C3%A1rio_Verde

quarta-feira, novembro 18, 2009

As disfunções líricas dos poetas acabam por dar mais importância aos passarinhos do que aos senadores. Para Manoel de Barros, é a troca de parafusos.


A disfunção


Se diz que há na cabeça dos poetas um parafuso de
a menos.
Sendo que o mais justo seria o de ter um parafuso
trocado do que a menos.
A troca de parafusos provoca nos poetas uma certa
disfunção lírica.
Nomearei abaixo 7 sintomas dessa disfunção lírica.

1 - Aceitação da inércia para dar movimento às
palavras.
2 - Vocação para explorar os mistérios irracionais.
3 - Percepção de contiguidades anômalas entre
verbos e substantivos.
4 - Gostar de fazer casamentos incestuosos entre
palavras.
5 - Amor por seres desimportantes tanto como pelas
coisas desimportantes.
6 - Mania de dar formato de canto às asperezas de
uma pedra.
7 - Mania de comparecer aos próprios desencontros.

Essas disfunções líricas acabam por dar mais
importância aos passarinhos do que aos senadores.

Manoel de Barros

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manoel_de_Barros

Mário Faustino sente que o mês presente o assassina. E que há panos de imprimir a dura face à força de suor, sangue e chaga.


Sinto que o mês presente me assassina


Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus ao sul das luas curvas.
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espiritual que me ilumina.
E o temporal ladrão rouba-me as fêmeas
De apóstolos marujos que me arrastam
Ao longo da corrente onde blásfemas
Gaivotas provam peixes de milagre.
Sinto que o mês presente me assassina,
Há luto nas rosáceas desta aurora,
Há sinos de ironia em cada hora
(Na libra escorpiões pesam-me a sina)
Há panos de imprimir a dura face
À força de suor, sangue e chaga.

Mário Faustino
(1930-1962)

Mais sobre Mário Faustino em
http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Faustino

terça-feira, novembro 17, 2009

O rato apareceu num ângulo da sala, um homem e uma mulher apareceram também. E Murilo Mendes criou um lindo poema sobre o viver e o conviver.


O rato e a comunidade


O rato apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E depois foram-se embora.

?Que sabe esse rato de mim.
E esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.

Passam meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecem nossas lágrimas.
?Que sabem do nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade.
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes.
...Subúrbios longínquos, esses homens.

Entretanto cada um deve beber no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro deve nos ajudar a reconstituir nossa forma.
O homem que não viu seu amigo chorar
Ainda não chegou ao centro da esperiência do amor.
Para o amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo o sofrimento é pressentido, é trocado, comunicado.
?Quem sabe conviver o outro, quem sabe transferir o coração.
Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.

Desconhecido que atravessas a rua,
?Que há de comum entre mim e ti.
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo,
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.

A mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só pessoa.
Esta é que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os homens pelas mãos da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram.

Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

Quem compra meus sonhos? Quem quer meu corpo, quem quer? Nos versos de Américo Durão, a meretriz só tem dela a tristeza, mas dá e vende prazer.


Leilão


Quem compra, quem merca sonhos?
Quem quer meu corpo? Quem quer?
Quem merca os beijos tristonhos
dos lábios duma mulher?...

Todo o imenso amargor
trago neles diluído...
E vendo-os seja a quem for!
Quem compra, quem é servido?

Minh'alma de meretriz
é negrinha de pecados;
só do corpo vos servis,
eu vendo o corpo aos bocados...

Quem mercar, tenho certeza,
não se há de arrepender...
Tenho de meu a tristeza,
mas dou e vendo prazer...

Quem compra, quem merca sonhos?
Quem quer meu corpo? Quem quer?
Quem merca os beijos tristonhos
dos lábios duma mulher?...

Américo Durão
(1894-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Am%C3%A9rico_Dur%C3%A3o

segunda-feira, novembro 16, 2009

Para Thiago de Mello, só o vento lava a mágoa da cidade de São Sebastião na festa do seu quarto centenário. Tudo por causa de um major da ditadura.



Poema de quarto centenário


Olho longamente num jornal
que serve de correio da manhã
a fotografia do escritor
num cárcere do Rio de Janeiro.
De tanta doçura,
parece a foto de um adolescente.
Recordo que muitas vezes lhe vi
brincar no olhar um alegre passarinho,
um arabesco de amor no azul aberto,
o terno gosto da alegria humana.

Mas já está com 74 anos o escritor,
o escritor preso.
Está preso porque provou
do mundo que lhe coube
e achou o mundo amargo
e um tanto podre.

Continuo olhando no jornal
a fotografia do grande machadiano
sentado altivo no catre,
o seu perfil sereno
e malferido
na dor da biblioteca devassada,
o olhar límpido na vida
consumida na construção do amor,
esse poder imenso de canção
de amanhecer na boca anoitecida.

Queima demais a brasa desta foto:
brasa de incêndios, frágua da manhã.
É preciso fazer alguma coisa,
varar no escuro um rumo de meninos,
inventar um navio de amapolas,
aprender outra vez a soletrar,
abrir os alicerces do arco-íris,
é preciso fazer alguma coisa
para lavar a vida degradada.

Tudo porém depende de um major.
Porque perante vozes que se ergueram,
os altos fabricantes de justiça,
que decidem de sortes e destinos,
devolveram-lhe todos o direito
de ser dentro da lei um homem livre.

Sucede que o major disse que não.
O major simplesmente diz que não,
e não sucede nada que escalavre
o medo enfurecido, salvo o vento
que lava livre a mágoa da cidade
heróica e leal de São Sebastião
na festa do seu quarto centenário.

Thiago de Mello

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Cora Coralina ajuntou todas as pedras que vieram sobre ela. E foi entre pedras que a esmagavam que ela levantou a pedra rude dos seus versos.


Das pedras


Ajuntei todas as pedras
que vieram sobre mim.
Levantei uma escada muito alta
e no alto subi.
Teci um tapete floreado
e no sonho me perdi.

Uma estrada,
um leito,
uma casa,
um companheiro.
Tudo de pedra.

Entre pedras
cresceu a minha poesia.
Minha vida...
Quebrando pedras
e plantando flores.

Entre pedras que me esmagavam
levantei a pedra rude
dos meus versos.

Cora Coralina
(1889-1985)

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domingo, novembro 15, 2009

No desencontro que é a vida, Álvaro de Campos sente que respira melhor agora que passaram as horas dos encontros. Ele faltou a todos, deliberadamente.


Ah, a frescura na face


Ah, a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros.
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá, que eu saberia que não
vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
É tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos onde estaria
à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte...Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de


Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sábado, novembro 14, 2009

Quando adoeceu, Camilo Castelo Branco descobriu que só tinha um amigo de verdade. Os outros cento e nove eram impávidos marotos.


Os meus amigos


Amigos cento e dez e talvez mais,
eu já contei! vaidades que eu sentia!
Pensei que sobre a terra não havia
mais ditoso mortal entre os mortais.

Amigos cento e dez, tão serviçais,
tão zelosos das leis da cortesia,
que eu já farto de os ver, me escapulia
às suas curvaturas vertebrais.

Um dia adoeci profundamente,
ceguei. Dos cento e dez houve um somente
que não desfez dos laços quase rotos.

Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver...
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco
(1825-1890)

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sexta-feira, novembro 13, 2009

Augusto dos Anjos encontrou o seu Nirvana. E goza o pazer de haver trocado a sua forma de homem pela imortalidade das Idéias!


O meu nirvana


No alheamento da obscura forma humana,
De que, pensando, me desencarcero,
Foi que eu, num grito de emoção, sincero,
Encontrei, afinal, o meu Nirvana!

Nessa manumissão schopenhaueriana,
Onde a vida do humano aspecto fero
Se desarraiga, eu, feito força, impero
Na iminência da Idéia Soberana!

Destruída a sensação que oriunda fora
Do tato - ínfima antena aferidora
Destas tegumentárias mãos plebéias -

Gozo o prazer, que os anos não carcomem,
De haver trocado a minha forma de homem
Pela imortalidade das Idéias!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

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Antero de Quental quer saber quais são os sonhos das ardentes filhas do prazer depois da orgia. E ainda pede: lobas, leoas, bebei meu sangue!


Metempsicose


Ardentes fihas do prazer, dizei-me!
Vossos sonhos quais são, depois da orgia?
Acaso nunca a imagem fugidia
do que fostes, em vós se agita e freme?

Noutra vida e outra esfera, onde geme
outro vento, e se acende um outro dia,
que corpo tínheis? Que matéria fria
vossa alma incendiou, com fogo estreme?

Vós fostes nas florestas bravas feras,
arrastando, leoas ou panteras,
de dentadas d'amor um corpo exangue...

Mordei pois esta carne palpitante,
feras feitas de gaze flutuante...
Lobas! Leoas! sim, bebei meu sangue!

Antero de Quental
(1842-1891)

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quinta-feira, novembro 12, 2009

À hora em que os cisnes cantam, Cecília Meireles não quer nem palavras de adeus, nem gestos de abandono. Ninguém mais, nada mais, nunca mais.


À hora em que os cisnes cantam


Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono...
Benevolência. Inconsequência. Inexistência.

Paz dos que não têm fé, nem carinho, nem dono...
Todo o perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono...
Esmola que faz bem... - nem gestos, nem violência...

Nem palavras.Nem choro. A mudez. Pensativas
abstrações. Vão temor de saber. Lento, lento
volver de olhos, em torno, augurais e espectrais...

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Ele? Tu? Sim? Não? Riso? Lamento?
- Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais...

Cecília Meireles
(1901-1964)

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Para Jorge de Lima, o século está podre. E ele pergunta a Jesus, onde é que vou buscar poesia?


Adeus, poesia


Senhor Jesus, o séculos está podre.
Onde é que vou buscar poesia?
Devo despir-me de todos os mantos,
os belos mantos que o mundo me deu.
Devo despir o manto da poesia.
Devo despir o manto mais puro.
Senhos Jesus, o século está doente,
o século está rico, o século está gordo.
Devo despir-me do que é belo,
devo despir-me da poesia,
devo despir-me do manto mais puro
que o tempo me deu, que a vida me dá.
Quero leveza no vosso caminho.
Até o que é belo me pesa nos ombros,
até a poesia acima do mundo,
acima do tempo, acima da vida,
me esmaga na terra, me prende nas coisas.
Eu quero uma voz mais forte que o poema,
mais forte que o inferno, mais dura que a morte:
eu quero uma força mais perto de Vós.
Eu quero despir-me da voz e dos olhos,
dos outros sentidos, das outras prisões,
não posso Senhor: o tempo está doente.
Os gritos da terra, dos homens sofrendo
me prendem, me puxam - me dai Vossa mão.

Jorge de Lima
(1893-1953)

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quarta-feira, novembro 11, 2009

Para Drummond, o amor é um segundo nascimento, um nascer de novo. É no amor que o poeta sente a descoberta de sentido no absurdo de existir.


Nascer de novo


Nascer: fincou o sono das entranhas.
Surge o concreto,
a dor de formas repartidas.
Tão doce era viver
sem alma, no regaço
do cofre maternal, sombrio e cálido.
Agora,
na revelação frontal do dia,
a consciência do limite,
o nervo exposto dos problemas.

Sondamos, inquirimos
sem resposta:
Nada se ajusta, deste lado,
à placidez do outro?
É tudo guerra, dúvida
no exílio?
O incerto e suas lajes
criptográficas?
Viver é torturar-se, consumir-se
à míngua de qualquer razão de vida?

Eis que um segundo nascimento,
não advinhado, sem anúncio,
resgata o sofrimento do primeiro,
e o tempo se redoura.
Amor, este o seu nome.
Amor, a descoberta
de sentido no absurdo de existir.
O real veste nova realidade,
a linguagem encontra seu motivo
até mesmo nos lances de silêncio.

A explicação rompe das nuvens,
das águas, das mais vagas circunstâncias:
Não sou Eu, sou o Outro
que em mim procurava seu destino.
Em outro alguém estou nascendo.
A minha festa,
o meu nascer poreja a cada instante
em cada gesto meu que se reduz
a ser retrato,
espelho,
semelhança
de gesto alheio aberto em rosa.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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Onde está a poesia? Para Menotti del Picchia, poesia é ouro, não importa a forma ou a fôrma, o que vale é a incontaminada essência.


Poesia é ouro


Onde está a poesia?

Na imaginação do garimpeiro
ainda oculta na pepita lasca de luz na quina da pedra bruta.

Ouro é ouro
mineral na terra, puro. Fundido
não degradado no amálgama embora sofisticado
em molde e moda
no brinco barroco na cintilação do dente
no céu de esmalte de uma boca jovem
concha aberta num sorriso.

Poesia é ouro
carregada de história no cunho da moeda antiga
mística na âmbula, sagrada no romance
do anel nupcial amor alegria sofrimento vida.

Não importa forma ou fôrma não importa o lugar
não importa
se jovem é o ourives ou velho o garimpeiro.

O que vale é a incontaminda essência.

Menotti del Picchia
(1892-1988)

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terça-feira, novembro 10, 2009

Só tu soubeste achar-me...e te foste! Em seu retrato do poeta na idade madura, Mario Quintana lamenta o que de mais precioso perdeu.


Retrato do poeta na idade madura


A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva;
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba;
e cada fio era uma baioneta calada contra o mundo:

tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar - naquilo - onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a fonte oculta...

Só tu soubeste achar-me...e te foste!

Mario Quintana
(1906-1994)

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Ledo Ivo conta como os navios se escondem para morrer em cemitérios. E como nos porões vazios, só ficam os ratos à espera da impossível ressureição.


Cemitério dos navios


Aqui os navios se escondem para morrer.

Nos porões vazios, só ficaram os ratos
à espera da impossível ressureição.

E do esplendor do mundo sequer restou
o zarcão nos beiços do tempo.

O vento raspa as letras
dos nomes que os meninos soletravam.

A noite canina lambe
as cordoalhas esfarinhadas

sob o vôo das gaivotas estridentes
que, no cio, se ajuntam no fundo da baía.

Clareando madeiras podres e águas estagnadas,
o dia, com o seu olho cego, devora o gancho

que marca no casco as cicatrizes
do portaló que era um degrau do universo.

E a tarde prenhe de estrelas,
inclina-se cobre a cabine onde, antigamente,

um casal aturdido pelo amor mais carnal
erguia no silêncio negras paliçadas.

Ó navios perdidos, velhos surdos
que, dormitando, escutam os seus próprios apitos

varando a neblina, no porto onde os barcos
eram como um rebanho atravessando a treva!

Ledo Ivo

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http://pt.wikipedia.org/wiki/L%C3%AAdo_Ivo

domingo, novembro 08, 2009

Alberto Caeiro diz que não quer viver no presente, quer a realidade. Ele quer as cousas que existem, não o tempo que as mede.


Vive, dizes


Vive, dizes, no presente;
Vive só no presente.

Mas eu não quero o presente, quero a realidade;
Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.

O que é o presente?
É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.
É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.
Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.

Não quero incluir o tempo no meu esquema.
Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas
como cousas.
Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes.

Eu nem por reais as devia tratar.
Eu não as devia tratar por nada.

Eu devia vê-las, apenas vê-las;
Vê-las até não poder pensar nelas.
Vê-las sem tempo, nem espaço.
Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.
É esta a ciência de ver, que não é nenhuma.

Alberto Caeiro, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Em homenagem ao literato homeopático Dr.Veludo, o autor de I-Juca-Pirama conta que Diógenes voltou ao mundo e chegou à Guanabara com a lanterna acesa.


Ao grande literato homeopático
Dr. Veludo


Dizem que o velho Diógenes
de novo ao mundo voltou
com sua lanterna acesa
e à Guanabara chegou.

"Quem é", pergunta ele, aqui,
"um doutor pilha-bonito",
paneigirista quand même
de Frei Bernardo de Brito?"

"Ecce homo!", lhe dizem.
"Doutor...aquilo? Oh, se é!
Faz plágios, copia, imprime
volumes que ninguém lê.

É o moderno tostado,
e em finanças não zote,
grande home', em tudo e por tudo,
in utroque, utroque, utroque!"

"Eureka!, interrompe o grego,
dava pr'a o ver uma perna!
Achei um asno às direitas,
posso apagar a lanterna".

Gonçalves Dias
(1823-1864)

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sábado, novembro 07, 2009

A canção desesperada, de Pablo Neruda. Um dos mais importantes poemas do século XX.


La canción desesperada


Emerge tu recuerdo de la noche em que estoy.
El rio anuda ao mar su lamento obstinado.

Abandonado como los muelles en el alba.
Es la hora de partir, oh abandonado!

Sobre my corazón llueven frias corolas.
Oh sentina de escombros, feroz cueva de náufragos!

En ti se acumularon las guerras e los vuelos.
De ti alzaron las alas los pájaros del canto.

Todo te lo tragaste, como la lejanía.
Como el mar, como el tiempo. Todo em ti fue naufragio!

Era la alegre hora del asalto y el beso.
La hora del estupor que ardía como un faro.

Ansiedad de piloto, furia de buzo ciego,
turbia embriaguez de amor, todo en ti fue naufragio!

Hice retroceder la la muralla de sombra,
anduve más allá del deseo y del acto.

Oh carne, carne mia, mujer que amé y perdí,
a ti en esta hora húmeda, evoco y hago canto.

Como un vaso albergaste la infinita ternura,
y el infinito olvido te trizó como a un vaso.

Era la negra, negra soledad de las islas,
y allí, mujer de amor, me acogieron tus brazos.

Era la sed y el hambre, y tú fuiste la fruta.
Era el duelo y las ruinas, y tu fuiste el milagro.

Ah mujer, no sé como pudiste contenerme
en la tierra de tu alma, y en la cruz de tus brazos!

Mi deseo de ti fue el más terrible y corto,
el más revuelto y ebrio, el más tirante y ávido.

Cementerio de besos, aún hay fuego en tus tumbas,
aún los racimos arden picoteados de de pájaros.

Oh la boca mordida, oh los besados miembros,
oh los hambrientos dientes, los cuerpos trenzados.

Oh la cópula loca de esperança y esfuerzo
en que nos anudamos y nos desesperamos.

Y la ternura , leve como el agua y la harina
y la palabra apenas comenzada en los labios.

Ése fue mi destino y en él viajó mi anhelo,
y en él cayó mi anhelo, todo en ti fue naufragio!

De tumbo en tumbo aún llameaste y cantaste
de pie como um marino en la proa de un barco.

Aún floreciste en cantos, aún rompiste en corrientes.
Oh sentina de escombros, pozo abierto y amargo.

Pálido buzo ciego, desventurado hondero,
descubridor perdido, todo en ti fué naufragio!

Es la hora de partir, la dura y fría hora
que la noche sujeta a todo horario.

El cinturón ruidoso del mar ciñe la costa.
Surgen frías estrellas, emigran negros pájaros.

Abandonado como los muelles en el alba.
Sólo la sombra trémula se retuerce em mis manos.

Ah más allá de todo. Ah más allá de todo.

Es la hora de partir. Oh abandonado!

Pablo Neruda
(1904-1973)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda

No poema de Antônio Papança, a prostituta levara sempre a vida nas orgias. Por uma dessas noites tresloucadas, encontraram-na morta, abandonada.


Arrependida


Levara sempre a vida nas orgias
e tinha, no seu rosto desbotado,
a feição das noturnas alegrias.

O seu corpo de jaspe cinzelado
tinha as corretas curvas palpitantes,
que o artista mais sublime tem sonhado.

Amava o ouro, as pedras faiscantes,
a branca cigarrilha perfumada
e os aromas dos vinhos espumantes.

Se ria, na sonora gargalhada
descobria-se o irônico azedume
de quem se vê nos charcos atolada.

Seu ardente olhar chispava o lume
que acendam nessas almas desvairadas
o ódio, o desespero e o ciúme.

Por uma dessas noites tresloucadas
encontraram-na morta sobre o leito,
e envolta nas madeixas desgrenhadas.

Tinha o semblante pálido e desfeito,
e a mão gelada e crispa comprimia
um crucifixo de marfim ao peito.

Nos veludos da pálpebra sombria
brilhava inda uma lágrima, a gerada
nos extremos arrancos da agonia.

Finou-se a prostituta abandonada,
e, ao sentir n'alma o último lampejo,
beijou do Cristo a fronte iluminada
e foi-se-lhe a alma presa nesse beijo.


Antônio de Macedo Papança
(1852-1913)

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sexta-feira, novembro 06, 2009

O que se diz ao editor a propósito de poemas, segundo João Cabral de Melo.


O que se diz ao editor a propósito de poemas


Eis mais um livro (fio que o último)
de um incurável pernambucano;
se programam ainda publicá-lo,
digam-me, que com pouco o embalsamo.

E preciso logo enbalsamá-lo:
enquanto ele me conviva, vivo,
está sujeito a cortes, enxertos:
terminará amputado do fígado,

terminará ganhando outro pâncreas;
e se o pulmão não pode outro estilo
(esta dicção de tosse e gagueira),
me esgota, vivo em mim, livro-umbigo.

Poema nenhum se autonomiza
no primeiro ditar-se, esboçado,
nem no construí-lo, nem no passar-se
a limpo do datilografá-lo.

Um poema é o que há de mais instável:
ele se multiplica e divide,
se pratica as quatro operações
enquanto em nós e de nós existe.

Um poema é sempre, como um câncer:
que química, cobalto, indivíduo
parou os pés desse potro solto?
Só o mumificá-lo, pô-lo em livro.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

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Na paixão de Almeida Garrett, toda a força daqueles olhos. Olhos de um fatal poder.


Seus olhos


Seus olhos - se eu sei pintar
o que os meus olhos cegou -
não tinham luz de brilhar,
era chama de queimar;
e o fogo que a ateou
vivaz, eterno, divino,
como o facho do Destino.

Divino, eterno! - e suave
ao mesmo tempo: mas grave
e de tão fatal poder,
que, num só momento que a vi,
queimar toda a alma senti...
Nem ficou mais do meu ser,
senão a cinza em que ardi.

Almeida Garrett
(1789-1854)

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quarta-feira, novembro 04, 2009

Pensando adiante, Vinicius de Moraes vê o remorso do crime deles dois. E ele tinha se partido, ao meio dele mesmo, na paixão.


Barcarola


Parti-me, trágico, ao meio
De mim mesmo, na paixão.
A amiga mostrou-me o seio
Como uma consolação.

Dormi-lhe no peito frio
De um sono sem sonhos, mas
A carne no desvario
Da manhã, roubou-me a paz.

Fugi, temeroso ao gesto
Do seu receio modesto
E cálido; enfim, depois

Pensando a vida adiante
Vi o remorso distante
Desse crime de nós dois.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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Ana Cristina Cesar tentou.


Tenho uma folha branca


Tenho uma folha branca
e limpa à minha espera:

mudo convite

tenho uma cama branca
e limpa à minha espera:

mudo convite:

tenho uma vida branca
e limpa à minha espera.


Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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terça-feira, novembro 03, 2009

No jogo do perde e ganha, Gullar diz que vida ele tem uma só. E que, a cada lance, a vida ou se perde ou se ganha com os demais.


Perde e ganha


Vida tenho uma só
que se gasta com a sola de meu sapato
a cada passo pelas ruas
e não dá meia-sola.

Perdi-a já
em parte
num poquer solitário,
mas a ganhei de novo
para um jogo comum.

E neste jogo a jogo
inteiro, a cada lance,
que a vida ou se perde ou se ganha com os demais
e assim se vive
que é a mais pura perda.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

No poema de Maria O'Neill, para a infeliz nada mais triste na terra que a vida alegre ir seguindo. O coração vai chorando, os lábios sempre sorrrindo.


Uma infeliz


Sou filha do alto Minho
e vim de lá enganada:
nesta Lisboa, tão boa,
é que me fiz desgraçada.

Nada mais triste na terra
que a vida alegre ir seguindo:
o coração vai chorando,
os lábios sempre sorrindo.

Eu não vivo do presente
nem pensando no futuro.
Que o agora é todo lama,
o depois é num monturo.

Ai, como os homens honrados
a mim me fizeram mal!
Fui criada entre carinhos,
findarei num hospital.

Não posso mostrar afeto
nem ter amor a ninguém,
que me pagam com dinheiro
atirado com desdém.

Só uma réstia de sol
alegra a minha janela:
é a lembrança do tempo
em que fui criança e bela.

Nada mais triste na terra
que a vida alegre ir seguindo:
o coração vai chorando,
os lábios sempre sorrindo.

Maria O'Neill
(1873-1932)

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http://en.wikipedia.org/wiki/Maria_O%27Neill

domingo, novembro 01, 2009

Para Paulo Leminski, ao perder a lembrança grande coisa não se perde. Nuvens são sempre brancas e o mar continua verde.


Saudosa amnésia


Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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No casulo há um homem, mas o fundo é o outro lado. E o mundo é o outro lado que começa, nos versos de Carlos Nejar.


Construção da noite


No casulo há um homem
mas o fundo é o outro lado.
No casulo de seu tempo há um homem,
mas o fundo é o outro lado.
É o casulo onde o homem foi achado,
mas o fundo é o outro lado.
É o terreno onde o homem foi lavrado,
mas o fundo é o outro lado.
É a treva onde o homem foi fechado,
mas o fundo é o outro lado.
É o silêncio de um homem soterrado,
mas o fundo é o outro lado.
Mas o fundo é o outro lado.

É a infância que nasce sobre o morto,
é a infância que cresce sobre o morto,
é o sol que madruga no seu rosto,
é um homem que salta do sol posto
e convoca outros homens para o sonho
e mistura-se à terra
e mistura-se ao sonho.

E o canto recomeça além do sonho,
além da escuridão, além do lago.
Mas o fundo é o outro lado,
mas o fundo principia sem passado,
sem os montes, sem os barcos, sem o lago.

Tua vida verdadeira é o outro lado.
Tua terra verdadeira é o outro lado.
Tua herança verdadeira é o outro lado.

Tudo cessa.
Tudo cessa,
tudo cessa.
Mas o mundo
é o outro lado
que começa.

Carlos Nejar

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