segunda-feira, novembro 16, 2009
Para Thiago de Mello, só o vento lava a mágoa da cidade de São Sebastião na festa do seu quarto centenário. Tudo por causa de um major da ditadura.
Poema de quarto centenário
Olho longamente num jornal
que serve de correio da manhã
a fotografia do escritor
num cárcere do Rio de Janeiro.
De tanta doçura,
parece a foto de um adolescente.
Recordo que muitas vezes lhe vi
brincar no olhar um alegre passarinho,
um arabesco de amor no azul aberto,
o terno gosto da alegria humana.
Mas já está com 74 anos o escritor,
o escritor preso.
Está preso porque provou
do mundo que lhe coube
e achou o mundo amargo
e um tanto podre.
Continuo olhando no jornal
a fotografia do grande machadiano
sentado altivo no catre,
o seu perfil sereno
e malferido
na dor da biblioteca devassada,
o olhar límpido na vida
consumida na construção do amor,
esse poder imenso de canção
de amanhecer na boca anoitecida.
Queima demais a brasa desta foto:
brasa de incêndios, frágua da manhã.
É preciso fazer alguma coisa,
varar no escuro um rumo de meninos,
inventar um navio de amapolas,
aprender outra vez a soletrar,
abrir os alicerces do arco-íris,
é preciso fazer alguma coisa
para lavar a vida degradada.
Tudo porém depende de um major.
Porque perante vozes que se ergueram,
os altos fabricantes de justiça,
que decidem de sortes e destinos,
devolveram-lhe todos o direito
de ser dentro da lei um homem livre.
Sucede que o major disse que não.
O major simplesmente diz que não,
e não sucede nada que escalavre
o medo enfurecido, salvo o vento
que lava livre a mágoa da cidade
heróica e leal de São Sebastião
na festa do seu quarto centenário.
Thiago de Mello
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