segunda-feira, agosto 28, 2006

Mais um poema dos bons tempos do colégio. O Patrono da Independência lançava a semente de uma revisão histórica da figura de Calabar.


Calabar


Oh! não vendeu-se, não!
- Ele era escravo
Do jugo português.
- Quis a vingança;
Abriu sua alma às ambições de um bravo
E em nova escravidão bebeu a esperança!
Combateu... pelejou... entre a batalha
Viu essas vidas que no pó se somem;
Enrolou-se da pátria na mortalha,
Ergueu-se - inda era um homem!

Calabar! Calabar! Foi a mentira
Que a maldição cuspiu em tua memória!
Amaste a liberdade; era uma lira
De loucos sonhos, de elevada glória!
Alma adejando neste Céu brilhante
- Sonhaste escravo reviver liberto;
Subiste ao largo espaço triunfante,
Voaste - era um deserto!

A quem traíste, herói? - Na vil poeira
Que juramento te prendia à fé?!
Escravo por escravo essa bandeira
Foi de um soldado lá - ficou de pé!...
Viu o sol entre as brumas do futuro
- Ele que por si só nada podia;
Quis vingar-se também - no sonho escuro

Quis ter também seu dia!
O pulso roxo da fatal cadeia
Brandiu uma arma, pelejou também,
Viram-no erguido na refrega feia,
- Sombrio vulto que o valor sustém!
Respeitai-o - que amou a heroicidade!
Quis erguer-se também do raso chão!
Foi delírio talvez - a eternidade
Teve no coração!

Oh! que o Céu era lindo e o sol se erguia,
Como um incêndio nas brasílias terras;
Da cimeira da selva a voz surgia,
E o som dos ventos nas remotas serras!
Adormeceu... à noite em funda calma
Ouviu ao longe os ecos da floresta;
Bateu-lhe o coração - triste sua alma
Sorriu-se - era uma festa!

Homem - sentiu na carne desnudada
O açoite do algoz nodoar a honra,
E o sangue sobre a face envergonhada
Mudo escreveu o grito da desonra!
Era escravo! Deixai-o que combata;
Livre nunca ele foi - quer sê-lo agora,
Como o peixe no mar, a ave na mata,
Como no Céu a aurora!

Oh! deixai-o morrer - deste martírio!
Não alceis a calúnia ao grau da história!
Que fique a lusa mão em seu delírio
- Já que o corpo manchou, manchar a glória!
Respeitemos as cinzas do guerreiro
Que no pó sacudira a alteira fronte!
Quem sabe esse mistério segredeiro
Do sol lá no horizonte?!

Não se vendeu! Infâmia... era um escravo!
Sentiu o estigma vil, horrendo selo;
Pulsou-lhe o coração, viu que era um bravo;
Quis despertar do negro pesadelo!
Tronco sem folhas, triste e solitário,
Debalde o vento assoberbar tentou,
Das asas do tufão ao sopro vário
Estremeceu, tombou!

Paz ao sepulcro! Calabar morreu!
Sobre o topo da cruz fala a verdade!
Quis ser livre também - ele escolheu,
Entre duas prisões - quis ter vontade!
E a mão heróica que susteve a Holanda
A covardia entrega desarmada!
Vergonha eterna a Providência manda
À ingratidão manchada!

Morreu! Mas lá no marco derradeiro
O coração de amor bateu-lhe ainda!
Minha mãe! murmurou... era agoureiro
Esse queixume de uma dor infinda!
Morreu, o escravo se desfaz em pó...
Ferros lançai-lhe agora, se o podeis!
Vinde, tiranos - ele está bem só,
Ditai-lhe agora as leis!

José Bonifácio
(1827-1866)

Mais sobre José Bonifácio em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Bonif%C3%A1cio,_o_Mo%C3%A7o

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