segunda-feira, dezembro 01, 2008

Maio de 1964, dias cruéis da Ditadura. Para Ferreira Gullar, a luta comum já lhe acende o sangue e bate no peito como o coice de uma lembrança.


Maio 1964

Na leiteira a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famí­lias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.

Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

2 comentários:

Ana Gabi disse...

Muito legal o blog de vocês, viu?!

Eu leio sempre, pq tenho o contato de vcs no orkut há algum tempo,mas nunca comentava, hehe!
Só que de uns tempos para cá eu tenho postado sempre no meu e com isso voltei a blogsfera de vez.
Agor serei presença constante, já linkei nos meus blogs preferidos!

Angelo Horst disse...

é bonito voltar no tempo e conhecer no poema uma realidade antes somente vista em vídeos.