quarta-feira, dezembro 31, 2008

Nos versos de Carlos Drummond de Andrade, o amor que ele quer em todos os dias do ano. Ele e todos nós.


Quero


Quero que todos os dias do ano
todos os dias da vida
de meia em meia hora
de 5 em 5 minutos
me digas: Eu te amo.

Ouvindo-te dizer: Eu te amo,
creio, no momento, que sou amado.
No momento anterior
e no seguinte,
como sabê-lo?

Quero que me repitas até a exaustão
que me amas que me amas que me amas.
Do contrário evapora-se a amação
pois ao dizer: Eu te amo,
desmentes
apagas
teu amor por mim.

Exijo de ti o perene comunicado.
Não exijo senão isto,
isto sempre, isto cada vez mais.

Quero ser amado por e em tua palavra
nem sei de outra maneira a não ser esta
de reconhecer o dom amoroso,

a perfeita maneira de saber-se amado:
amor na raiz da palavra
e na sua emissão
amor
saltando da língua nacional,
amor
feito som
vibração espacial.

No momento em que não me dizes:
Eu te amo,
inexoravelmente sei
que deixaste de amar-me,
que nunca me amaste antes.

Se não me disseres urgente repetido
Eu te amoamoamoamoamoamo,
verdade fulminante que acabas de desentranhar,
eu me precipito no caos,
essa coleção de objetos de não-amor.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

segunda-feira, dezembro 29, 2008

Escrito há muitos anos, este poema de Thiago de Mello é uma crítica contundente ao Brasil. E também uma mensagem de esperança em nosso povo.


Diário de um brasileiro


O brasileiro convive bem com o escândalo moral.
Os ladrões infestam os salões de luxo,
os Bancos estouram, os banqueiros
são cumprimentados com reverência,
o Presidente do Congresso chama o senador
de bandido, sim senhor, vossa excelência.

O Presidente diz pela televisão
que "é preciso acabar com a roubalheira
nos dinheiros públicos".
As pessoas das cidades grandes
vivem amedrontadas, qualquer
transeunte pode ser um assaltante.
As meninas cheiram cola. Depois
vão dar o que têm de mais precioso
ao preço de um soco na cara desdentada.

O brasileiro convive com o escândalo
como se fosse o seu pão de cada dia,
com uma indiferença letal.

Como se dormir na casa com um rinoceronte,
mas rinoceronte mesmo,
fosse a coisa mais natural do mundo,
chegando a cheirar a camélias.

O povo, um dia.

Do povo vai depender
a vida que vai viver,
quando um dia merecer.
Vai doer, vai aprender.

Thiago de Mello

Mais sobre Thiago de Mello em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

Nos versos de Cassiano Ricardo, basta estar vivo pra ser subversivo. Ou não figurar no registro civil pra ser incivil, ou vil, pra encurtar a palavra.


Canto incivil


Basta estar vivo
pra ser subversivo.
(Ou subservivo).
Basta não figurar
no registro civil
pra ser incivil.
(Ou vil, pra encurtar a palavra).

Basta ser incivil
pra não ser ninguém.
Basta não ser ninguém
pra ter o apelido
que a polícia dá
a quem não é ninguém.

Tinha eu dois nomes:
Zebedeu,
que a miséria me deu.
E "elemento subversivo"
que a polícia me deu.

E apenas uma dor:
a que a vida me deu.
E eis-me aqui, incivil,
(ou vil, pra encurtar a palavra).

Uma patada de cavalo
em meio do comício
e eis-me aqui, estendido em decúbito
dorsal.

(Ou já cortado ao meio,
sem dor, nem sal).

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

sábado, dezembro 27, 2008

Carlos Drummond de Andrade gastou uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever. Mas a poesia daquele momento inunda sua vida inteira.


Poesia


Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Já em 1925, Mayakovsky denunciava em versos toda a injustiça que fazia de Cuba um barril de pólvora prestes a explodir. Ainda levou algum tempo, mas..


Black & White


Se
Havana
de relance distingues,
é um paraíso,
um país de verdade.
Sob as palmas,
numa só perna,
flamingos.
Flores
colorem
todo o Vedado.
Em Havana
tudo
é demarcado claramente:
aos brancos - dólares,
aos negros - nada.
Por isso, Willie pára
com a escova à frente
de "Henry Clay & Bock, Limitada".
Em sua vida
Willie
varreu quilos -
só de poeira
todo um vale.
Por isso
é ralo
o cabelo de Willie,
por isso
o ventre de Willie
é um valo.
De alegrias - só um escuro espectro;
seis horas
para tirar uma pestana,
se é que esse
ladrão,
o inspetor da aduana,
não lança de passagem
algum tostão
ao preto.
Como livrar-se de tanto lixo?
Só se
ele andasse
de cabeça para baixo.
Assim
amontoaria mais pó:
os cabelos são mil,
os pés
dois só.
Ao lado
passava
a elegante rua Prado.
Ali retinem,
ali ressoam
quilômetros de jazz.
Parece ao pobre preto
estuporado
que o velho paraíso
em Havana se refaz.
Poucas meandros,
há na sua mente,
poucos renovos,
pouca semente.
Uma coisa
somente
Willie aprendeu,
mais firme
que as pedras
da estátua de Maseo:
"Ao branco,
o ananás maduro,
ao preto,
o podre
- uma só lei.
Ao branco,
trabalho de rei,
ao preto,
trabalho duro".
Poucos problemas o torturam,
mas um
na cabeça
penetra como um prego.
E quabdo esse problema
o crânio lhe perfura,
a escova escorrega
das mãos do negro.
Como por acaso
numa dessas vezes
o rei dos charutos,
Mister Henry Clay,
recebe em sua casa,
mais alvo que uma nuvem,
o rei
de todos os açúcares, sua alvíssima alteza.
O negro
se acercou da mole branca:
"I beg your pardon, Mister Bregg!
Por que
o
açúcar
branco-branco
o negro-negro
tem de fazê-lo?
O charuto preto
não vai bem com seu cabelo,
combina é com o pêlo
negro de um negro.
E se o café
com açúcar
lhe apraz,
por que o sr. mesmo não o faz?"
Tal pergunta
não passou em branco.
O rei
de alvaiade
vira cor de bile.
Voltou-se a majestade
e de um tranco
lançou ambas as luvas
na face de Willie.
Floresciam
em volta
prodígios de botânica.
Bananeiras
teciam
tetos primaveris.
Limpou
o negro
em suas calças brancas
as mãos,
o sangue do nariz.
O negro resfolegou,
apalpou a confusão,
levantou a escova
e se calou.
Como saberia
que com tal questão
deveria dirigir-se
ao Komintern
em Moscou?

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

Naquela noite, Maria Teresa Horta tudo queria do seu amor. Até da saliva o chicote da sua língua dormente.


Noite


De noite só quero vestido
o tecido dos teus dedos
e sobre os ombros a franja
do final dos cabelos

Sobre os seios quero
a marca
do sinal dos teus dentes

e a vergasta dos teus
lábios
a doer-me sobre o ventre

Nas pernas e no pescoço
quero a pressão mais
ardente

e da saliva o chicote
da tua língua dormente.

Maria Teresa Horta

Mais sobre Maria Teresa Horta em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Teresa_Horta

sexta-feira, dezembro 26, 2008

Nos versos de Augusto dos Anjos, a infelicidade parece às vezes com a felicidade. E os infelizes voltam a ser felizes.


Ilusão


Dizes que sou feliz. Não mentes. Dizes
Tudo que sentes. A infelicidade
Parece às vezes com a felicidade
E os infelizes voltam a ser felizes!

Assim, em Tebas - a tumbal cidade,
A múmia de um herói do tempo de Ísis,
Ostenta ainda as mesmas cicatrizes
Que eternizaram sua heroicidade!

Quem vê o herói, inda com o braço altivo,
Diz que ele não morreu, diz que ele é vivo,
E, persuadido fica do que diz...

Bem como tu, que nessa crença infinda
Feliz me viste no Passado, e ainda
Te persuades de que sou feliz.

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

Mais sobre Augusto dos Anjos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

A seu tempo vão me chorar e esquecer, descobriu Adélia Prado. Aos quarenta anos, diz ela, não quero faca nem queijo, quero a fome.


Tempo


A mim que desde a infância venho vindo,
como se o meu destino,
fosse o exato destino de uma estrela,
apelam incríveis coisas:
pintar as unhas, descobrir a nuca,
piscar os olhos, beber.
Tomo o nome de Deus num vão.
Descobri que a seu tempo
vão me chorar e esquecer.
Vinte anos mais vinte é o que tenho,
mulher ocidental que se fosse homem,
amaria chamar-se Fliud Jonathan.
Neste exato momento do dia vinte de julho,
de mil novecentos e setenta e seis,
o céu é bruma, está frio, estou feia,
acabo de receber um beijo pelo correio.
Quarenta anos: não quero faca nem queijo.
Quero a fome.

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Pouco antes de sua morte, Ana Cristina César acreditava que se amasse de novo esqueceria outros rostos que amou. Mas não conseguiu esquecer seu amor.


Contagem regressiva


Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três a quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

Ana Cristina César
(1952-1983)

Mais sobre Ana Cristina César em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ana_Cristina_C%C3%A9sar

terça-feira, dezembro 23, 2008

Poema de Natal, por Vinicius de Moraes. Para isso fomos feitos: para lembrar e ser lembrados.



Link para download deste vídeo no canal do Poemblog no Google Vídeo:
http://video.google.com/videoplay?docid=7301380705718940929

Poema de Natal

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.

Vinícius de Moraes

(1913-1980)

Mais sobre Vinícius de Moraes em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

segunda-feira, dezembro 22, 2008

Para João Cabral de Melo, até os anos quarenta o Recife era como os dedos da aranha. Se espalhava em pesadelos, presentes no sono de todo recifense.


Uma evocação do Recife


O Recife até os anos quarenta
era como os dedos da aranha

que iam cada dia mais longe;
os dedos: as linhas de bonde.

Ninguém falava de seu bairro.
mas desses dedos espalmados

que as linhas de bonde varavam
e a seu lado cristalizavam.

Mora-se na linha do Monteiro,
passado já o Caldeireiro,

depois porém da própria praça
do Monteiro, na Porta d'Água,

mas um pouco antes de Apipucos,
do açude que dá nome ao cujo.

O Recife de então se espalha
aonde o levavam suas garras,

se esgueirando entre as línguas secas
que a maré entre os dedos deixa:

mas que deixa até onde deixa:
ao onde que, ausente das letras,

está presente como mangues
de olhos de água cega, estanques,

que em pesadelo estão presentes
no sono de todo recifense.


João Cabral de Melo
(1920-1999)

Mais sobre João Cabral de Melo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto

Filosofando, pergunta Nuno Júdice, mas o que queremos da vida? E, depois de muitos questiomentos, volta a perguntar: que outra coisa queremos da vida?


Filosofia


Mas que queremos da vida? É a vida? O
que se procura em cada segundo para se perder
em cada segundo? O tempo, assim, de nada
nos serve. Um dia, dando por nós próprios,
perguntamo-nos o que fizemos, por onde
andámos, que cidades e casas percorremos,
sem que nenhuma resposta nos satisfaça. A
vida, então, limita-se a ser o que fez
de nós, sem que o tenhamos desejado, e
nada pode ser feito para voltar atrás, nem
para restituir os passos trocados de
direcção, as frases evitadas no último
extremo, o olhar que se desviou quando
não devia. Ah, sim - e o amor? É isso
que queremos da vida? É verdade: cada um
dos abraços que se deram, contando cada
instante; o rosto lembrado no auge
do prazer, quando um súbito sol desponta
dos seus lábios; os cabelos presos
nas mãos, como se elas prendessem o feixe
da eternidade... Assim, a vida poderá
ter valido a pena. É o que fica: o que
nos foi dado e o que damos, sem que nada
nos obrigasse a dar ou a receber, o puro
gesto do acaso na mais absoluta das
obrigações. Então, volto a perguntar: que
outra coisa queremos da vida?


Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

Nos versos de Mauro Mota, o que a rendeira faz cobre seios, enrola-se em vestidos e toalhas. Mas ela fica na esteira, com seu mundo entre as pernas.


A rendeira


De onde a origem fieira
da família rendeira?
Onde a ponta do fio
atavismo e atavio?

E onde o fim? Mãe e filha
puxam a mesma linha
que, ao mesmo tempo, é
de gente e carretel,

e se encolhe e se estica
pela estrada do pique,
mapa-múndi de pano,
de habitantes humanos,

os dedos da rendeira
e os dedos de madeira,
essas mãos decepadas,
esses bilros de carne,

a sonata e a encomenda
na música das rendas.
Branco no branco, pintam
a paisagem dos bicos,

gravura e melodia,
esculturas de fio,
multiforme painel
novelo e carretel.

Emigra da almofada
é um rio na toalha.
Longo nervo viajeiro,
de matriz na rendeira,

comunica-se às peças
do uso de outras mulheres,
cobre seios, enrola-se
em vestidos e estolas.

Horas a fio na esteira
permanece a rendeira,
entre o chão e a janela,
com seu mundo entre as pernas.

Mauro Mota
(1991-1984)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Mauro_Mota

domingo, dezembro 21, 2008

Para Cecília Meireles, a vida vai depressa e devagar. Mas a todo momento pensa que pode acabar, sem que ouçam seu lamento ou lhe possam responder.


Desapego


A vida vai depressa e devagar.
Mas a todo momento
penso que posso acabar.

Porque o bem da vida seria ter
mesmo no sofrimento
gosto de prazer.

Já não tenho vontade de falar
senão com árvores, vento,
estrelas, e águas do mar.

E isso pela certeza de saber
que nem ouvem meu lamento
nem me podem responder.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Mais sobre Cecília Meireles em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles

Para que ela fosse aquela perfeição, foram necessárias gerações de escravos. Um intenso desperdiçar de gente, nos versos de Sophia de Mello Breyner.


Retrato de uma princesa desconhecida


Para que ela tivesse um pescoço tão fino
Para que os seus pulsos tivessem um quebrar de caule
Para que os seus olhos fossem tão frontais e limpos
Para que a sua espinha fosse tão direita
E ela usasse a cabeça tão erguida
Com uma tão simples claridade sobre a testa
Foram necessárias sucessivas gerações de escravos
De corpo dobrado e grossas mãos pacientes
Servindo sucessivas gerações de príncipes
Ainda um pouco toscos e grosseiros
Ávidos cruéis e fraudulentos

Foi um intenso desperdiçar de gente
Para que ela fosse aquela perfeição
Solitária exilada sem destino

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

Aquele dia foi marcado com a pedra branca da cabeça de um peixe. E, desde então, eles caminharam juntos pela vida, diz Cora Coralina em seus versos.


Meu desejo


Nas palmas de tuas mãos
leio as linhas da minha vida.
Linhas cruzadas, sinuosas,
interferindo no teu destino.
Não te procurei, não me procurastes -
íamos sozinhos por estradas diferentes.
Indiferentes, cruzamos,
passavas com o fardo da vida...
Corri ao teu encontro.
Sorri. Falamos.
Esse dia foi marcado
com a pedra branca
da cabeça de um peixe.
E, desde então, caminhamos
juntos pela vida...

Cora Coralina
(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

quinta-feira, dezembro 18, 2008

Nestes versos de quase confissão, é possível entender como pensa o poeta. E como sente a vida o homem Vinicius de Moraes.


O poeta


Olhos que recolhem
Só tristeza e adeus
Para que outros olhem
Com amor os seus.

Mãos que só despejam
Silêncios e dúvidas
Para que outras sejam
Das suas, viúvas.

Lábios que desdenham
Coisas imortais
Para que outros tenham
Seu beijo demais.

Palavras que dizem
Sempre um juramento
Para que precisem
Dele, eternamente.


Vinicius de Moraes
(1913-1980)

Mais sobre Vinicius de Moraes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Em sua reportagem, Guimarães Rosa conta a história do homem que saltou do trem. Um homem como quem não tem frente, como quem só tem costas.


Reportagem


O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário...

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o homem, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...

Guimarães Rosa
(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Guimar%C3%A3es_Rosa

Nos versos de Carlos Nejar, os ventos fazem muitos caminhos. Mas o homem sempre é mais forte se a outros se aliar.


O homem sempre é mais forte


O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.

O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.

O vento faz seu caminho
e os pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.

O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.

II

O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.

No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.

Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.

Carlos Nejar

Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

quarta-feira, dezembro 17, 2008

Numa manhã de abril no Rio de Janeiro, Ferreira Gullar pergunta: que se passa no Vietnam? Lá, onde bate a aurora, um homem lutava, por você, por mim.


Por você por mim

A noite, a noite, que se passa? diz
que se passa, esta serpente vasta em convulsão, esta
pantera lilás, de carne
lilás, a noite, esta usina
no ventre da floresta, no vale,
sob os lençóis de lama e acetileno, a aurora,
o relógio da aurora, batendo, batendo,
quebrado entre cabelos, entre músculos mortos, na podridão
a boca destroçada já não diz a esperança,
batendo
Ah, como é difícil amanhecer em Thua Thien.
Mas amanhece.

Que se passa em Huê? em Da Nang? No Delta
do Mekong? Te pergunto,
nesta manhã de abril no Rio de Janeiro,
te pergunto,
que se passa no Vietnam?

As águas explodem como granadas, os arrozais
se queimam em fósforo e sangue
entre fuzis
as crianças
fogem dos jardins onde açucenas pulsam
como bombas-relógio, os jasmineiros
soltam gases, a máquina
da primavera
danificada
não consegue sorrir.

Há mortos demais no regaço de Mac Hoa.
Há mortos demais
nos campos de arroz, sob os pinheiros,
às margens dos caminhos que conduzem a Camau.

O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos
da morte, o motor
da vida gira ao contrário, não
para sustentar a cor da íris,
a tessitura da carne, gira
ao contrário, a desfazer a vida, o maravilhoso aparelho
do corpo, gira
ao contrário das constelações, a vida
ao contrário, dentro
de blusas, de calças, dentro
de rudes sapatos feitos de pano e palha, gira
ao contrário a vida feita de morte.
Surdo
sistema de álcool, gira
gira, apaga rostos, mãos,
esta mão jovem
que saiba ajudar o arroz, tecer a palha. Há mortos
demais, há mortes
demais, coisas da infância, a hortelã, os sustos
do amor, aquela tarde aquela tarde clara, amada,
aquela tarde clara tudo
tudo se dissolve nas águas marrons
e entre nenúfares e limos
a correnteza arrasta para o mar o mar o mar azul

É dia feito em Botafogo.
Homens de pasta, paletó, camisa limpa,
dirigem-se para o trabalho.
Mulheres voltam da feira, as bolsas cheias de legumes.
Crianças passam para o colégio.
As nuvens nuvem
e as águas batem naturalmente em toda a orla marítima.
Nenhuma ameaça pesa sobre a cidade.
As pessoas
marcaram encontros, irão ao cinema, à buate, se amarão
nas praias
na cama
nos carros. As pessoas
acertam negócios, marcam viagens, férias.
Nenhuma ameaça
pesa sobre a cidade.
Os barulhos apitos sem alarma. O avião no céu
vai para São Paulo.
O avião no céu não é um Thunderchief da USAF
que chega trazendo a morte
como em Hanói.
Não é um Thunderchief da USAF que chega
seguido de outros
e outros
da USAF
carregados de bombas e foguetes
como em Hanói
que chega lançando bombas e foguetes
como em Hanói
como em Haiphong
incendiando o porto
destruindo as centrais elétricas
as estradas de ferro
como em Hanói
como em Hoa Bac
queimando crianças com napalm
como em Hanói
como em Chien Tien
como em Don Hoi
como em Tai Minh
como em Vihn Than
como em Hanói
Como pode uma cidade, como pode
uma cidade
resistir

Os americanos estão agora investindo muito no Vietnam
O Vietnam agora nada em ouro
e fogo
Bases aéreas
Arsenais
Depósitos de combustíveis
Laboratórios na rocha
Radar
Foguetes
A ciência eletrônica invade a selva
gases novos, armas novas
O lazy-dog
lança em todas as direções mil flechas de aço
o bull-pup
procura o alvo com seus 200 quilos de explosivos
o olho-de-serpente
pousa sobre uma casa e espera a hora certa de matar
O Vietnam agora está cheio de arame farpado
de homens louros
farpados
armados
vigiados
cercados
assustados
está cheio de jovens homens louros
e cadáveres jovens
de homens louros
enganados

Próximo à base de Da Nang
que tudo escuta e tudo vê,
próximo à base de Da Nang, esgueira-se
entre árvores um homem,
próximo à base cheia de soldados,
metralhadoras, bombas,
aviões, cheia
de ouvidos e de olhos
eletrônicos, um homem, chamado Tram,
entre as folhas e os troncos que cheiram a noite,
cauteloso se move
entre as folhas da noite, Tram Van Dam,
cauteloso se move
entre as flores da morte
Tram Van Dam
quinze anos se move
entre as águas da noite
dentro da lama
onde bate a aurora
Tram Van Dam
onde bate a aurora
Tram Van Dam
com a sua granada
entre cercas de arame
entre as minas no chão
Tram Van Dam
com seu coração
Tram Van Dam
onde bate a aurora
por você por mim
sob o fogo inimigo
com o grampo no dente
com o braço no ar
por você por mim
Tram Van Dam
onde bate a aurora
por você por mim
no Vietnam

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

A vida de Mário Sá-Carneiro sentou-se e não há quem a levante. Lembrando de endoidecer, ele deixou a alma no lavabo de um café: é um fim mais raffiné.


Serradura

A minha vida sentou-se
E não há quem a levante,
Que desde o Poente ao Levante
A minha vida fartou-se.

E ei-la, a mona, lá está,
Estendida, a perna traçada,
No indindável sofá
Da minha Alma estofada.

Pois é assim: a minh'Alma
Outrora a sonhar de Rússias,
Espapaçou-se de calma,
E hoje sonha só pelúcias.

Vai aos Cafés, pede um bock,
Lê o "Matin" de castigo,
E não há nenhum remoque
Que a regresse ao Oiro antigo:

Dentro de mim é um fardo
Que não pesa, mas que maça:
O zumbido dum moscardo,
Ou comichão que não passa.

Folhetim da "Capital"
Pelo nosso Júlio Dantas —
Ou qualquer coisa entre tantas
Duma antipatia igual…

O raio já bebe vinho,
Coisa que nunca fazia,
E fuma o seu cigarrinho
Em plena burocracia!…

Qualquer dia, pela certa,
Quando eu mal me precate,
É capaz dum disparate,
Se encontra a porta aberta…

Isto assim não pode ser…
Mas como achar um remédio?
— Pra acabar este intermédio
Lembrei-me de endoidecer:

O que era fácil — partindo
Os móveis do meu hotel,
Ou para a rua saindo
De barrete de papel

A gritar "Viva a Alemanha"…
Mas a minh' Alma, em verdade,
Não merece tal façanha,
Tal prova de lealdade…

Vou deixá-la — decidido —
No lavabo dum Café,
Como um anel esquecido.
É um fim mais raffiné.

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

Mais sobre Mário de Sá-Carneiro em
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Todas as tardes, Manoel de Barros percorre um quarteirão. Mas nunca tem certeza se está percorrendo o quarteirão deserto ou algum deserto dentro dele.


Miudezas


Percorro todas as tardes um quarteirão de paredes
nuas.
Nuas e sujas de idade e ventos.
Vejo muitos rascunhos de pernas de grilos pregados
nas pedras.
As pedras, entrentanto, são mais favoráveias a pernas
de moscas do que de grilos.
Pequenos caracóis deixaram suas casas pregadas
nestas pedras.
E as suas lesmas saíram por aí à procura de outras
paredes.
Asas misgalhadinhas de borboletas tingem de azul
estas pedras.
Uma espécie de gosto por tais miudezas me paralisa.
Caminho todas as tardes por este quarteirões
desertos, é certo.
Mas nunca tenho certeza
Se estou percorrendo o quarteirão deserto
Ou algum deserto em mim.

Manoel de Barros

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segunda-feira, dezembro 15, 2008

Desde manhã, Álvaro de Campos estava um pouco triste, chega a ter sono de ter sossego. O dia deu em chuvoso.


Trapo


O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser susceptível às mudanças de luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-me o céu azul e o sol visível.
Névoas, chuvas, escuros - isso tenho eu em mim.

Hoje quero só sossego.
Até amaria o lar, desde que o não tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossego.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser-se criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

Boca bonita da filha do caseiro,
Polpa de fruta de um coração por comer...
Quando foi isso? Não sei...
No azul da manhã...

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa

Mais ou menos em ponto, Paulo Leminski se sente condenado a ser exato. O que ele não quer, querendo.


Mais ou menos em ponto


Condenado a ser exato,
quem dera poder ser vago,
fogo fátuo sobre um lago,
ludibriando igualmente
quem voa, quem nada, quem mente,
mosquito, sapo, serpente.

Condenado a ser exato,
por um tempo escasso,
um tempo sem tempo
como se fosse o espaço,
exato me surpreendo,
losango, metro, compasso,
o que não quero, querendo.

Paulo Leminski
(1944-1989)

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Sempre que escrevo "morte", estou falando de vida. Eis o jeito de Lya Luft ser feliz, o jogo que ela persegue, o desafio que a embala.


Semântica


Não se enganem comigo
se digo sul pode ser norte,
chego mais fico ausente.
o triste é também o belo,
procuro o que não se perde
nem se pode encontrar.

Buscar respostas nos livros
é esconder-se entre linhas.
Não creio que se enxerga,
mas nisso que se desfarça
por mais que se tente olhar:
assim me tem seduzida.

Eis o jogo que eu persigo,
meu jeito de ser feliz,
o desafio que me embala:
sempre que escrevo "morte"
estou falando de vida.

Lya Luft

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sexta-feira, dezembro 12, 2008

Se não a vê, Manuel Bandeira sente o desejo crescer de hora em hora. Mas quando ela chega, tão linda e rara, o poeta hesita, balbucia, se acobarda.


Confissão


Se não a vejo e o espírito a afigura,
Cresce este meu desejo de hora em hora...
Cuido dizer-lhe o amor que me tortura,
O amor que a exalta e a pede e a chama e a implora.

Cuido contar-lhe o mal, pedir-lhe a cura...
Abrir-lhe o incerto coração que chora,
Mostrar-lhe o fundo intacto de ternura,
Agora, embevecida e mansa agora...

E é num arroubo em que a alma desfalece
De sonhá-la prendada e casta e clara,
Que eu, em minha miséria, absorto a aguardo...

Mas ela chega, e toda me parece
Tão acima de mim...tão linda e rara...
Que hesito, balbucio e me acobardo.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Chegou a notícia de que a manhã se deu ao povo. E na manhã geral, com a alegria de viver, Thiago de Mello viu o povo inteiro cantando na praça.


Notícia da manhã


Eu sei que todos a viram
e jamais a esquecerão.
Mas é possível que alguém,
denso de noite, estivesse
profundamente dormindo.
E aos dormidos - e também
aos que estavam muito longe
e não puderam chegar,
aos que estavam perto e perto
permaneceram sem vê-la;
aos moribundos nos catres,
e aos cegos de coração -
a todos que não a viram
contarei desta manhã
- manhã é céu derramado
é cristal de claridão -
que reinou, de leste a oeste,
de morro a mar - na cidade.

Pois dentro desta manhã
vou caminhando. E me vou
tão feliz como a criança
que me leva pela mão.
Não tenho nem faço rumo:
vou no rumo da manhã,
levado pelo menino
(ele conhece caminhos
e mundos melhor do que eu).

Amorosa e transparente,
esta é a sagrada manhã
que o céu inteiro derrama
sobre os campos, sobre as casas,
sobre os homens, sobre o mar.
Sua doce claridade
já se espalhou mansamente
por sobre todas as dores.
Já lavou a cidade. Agora,
vai lavando corações
(não o do menino; o meu,
que é cheio de escuridões).

Por verdadeira, a manhã
vai chamando outras manhãs
sempre radiosas que existem
(e às vezes tarde despontam
ou não despontam jamais)
dentro dos homens, das coisas:
na roupa estendida a corda,
nos navios chegando,
na torre das igrejas,
nos pregões dos peixeiros,
na serra circular dos operários,
nos olhos da moça que passa, tão bonitos!
A manhã está no chão, está nas palmeiras,
está no quintal dos subúrbios,
está nas avenidas centrais,
está nos terraços dos arranha-ceús.
Há muita, muita manhã
no menino; e um pouco em mim.)

A beleza mensageira
desta radiosa manhã
não se resguardou no céu
nem ficou apenas no espaço,
feita de sol e de vento,
sobrepairando a cidade.
Não: a manhã se deu ao povo.

A manhã é geral.

As árvores da rua,
a réstia do mar,
as janelas abertas,
o pão esquecido no degrau,
as mulheres voltando da feira,
os vestidos coloridos,
o casal de velhos rindo na calçada,
o homem que passa com cara de sono,
a provisão de hortaliças,
o negro na bicicleta.
o barulho do bonde,
os passarinhos namorando
- ah! pois todas essas coisas
que minha ternura encontra
num pedacinho de rua
dão eterno testemunho
da amada manhã que avança
e de passagem derrama
aqui uma alegria,
ali entrega uma frase
(como o dia está bonito!)
à mulher que abre a janela,
além deixa uma esperança,
mais além uma coragem,
e além, aqui e ali
pelo campo e pela serra,
aos mendigos e aos sovinas,
aos marinheiros, aos tímidos,
aos desgarrados, aos prósperos,
aos solitários, aos mansos,
às velhas virgens, às puras
e às doidivanas também,
a manhã vai derramando,
uma alegria de viver,
vai derramando um perdão,
vai derramando uma vontade de cantar.
E de repente a manhã
- manhã é céu derramado,
é claridão, claridão -
foi transformando a cidade
numa praça imensa praça,
e dentro da praça o povo
o povo inteiro cantando,
dentro do povo o menino
me levando pela mão.

Thiago de Mello

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

A última vez que Castro Alves viu Teresa terminou com mais um "Adeus". E assim foi criado mais um belo poema de amor.


O "adeus" de Teresa


A vez primeira que eu fitei Teresa,
Como as plantas que arrasta a correnteza,
A valsa nos levou nos giros seus
E amamos juntos... E depois na sala
"Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala

E ela, corando, murmurou-me: "adeus."

Uma noite entreabriu-se um reposteiro. . .
E da alcova saía um cavaleiro
Inda beijando uma mulher sem véus...
Era eu... Era a pálida Teresa!
"Adeus" lhe disse conservando-a presa...

E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"

Passaram tempos... sec'los de delírio
Prazeres divinais... gozos do Empíreo
... Mas um dia volvi aos lares meus.
Partindo eu disse - "Voltarei!... descansa!. . . "
Ela, chorando mais que uma criança,

Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"

Quando voltei era o palácio em festa!...
E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra
Preenchiam de amor o azul dos céus.
Entrei!... Ela me olhou branca... surpresa!
Foi a última vez que eu vi Teresa!...

E ela arquejando murmurou-me: "adeus!"

Castro Alves
(1847-1871)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Pablo Neruda foi muito mais do que um grande poeta. Ele sempre esteve ao lado das causas sociais dos povos e contra os criadores das Leis da Trapaça.


Promulgación de la Ley del Embudo


Ellos se declararon patriotas.
En los clubs se condecoraron
y fueron escribiendo la historia.
Los Parlamentos se llenaron
de pompa, se repartieron
después la tierra, la ley,
las mejores calles, el aire,
la Universidad, los zapatos.

Su extraordinaria iniciativa
fue el Estado erigido en esa
forma, la rígida impostura.
Lo debatieron, como siempre,
con solemnidad y banquetes,
primero en círculos agrícolas,
com militares e abogados.
Y al fin llevaron al Congreso
la Ley suprema, la famosa,
la respetada, la intocable
Ley del Embrudo.
Fue aprobada.

Para el rico la buena mesa.

La basura para los pobres.

El dinero para los ricos.

Para los pobres el trabajo.

Para los ricos la casa grande.

El tugurio para los pobres.

El fuero para el gran ladrón.

La cárcel al que roba un pan.

Paris, Paris, para los señoritos.

El pobre a la mina, al desierto.

El señor Rodrígues de la Crota
habló en el Senado con voz
meliflua y elegante.
"Esta ley, al fin, establece
la jerarquía obligatoria
y sobre todo los principios
de la cristiandad.
Era
tan necesaria como el agua.
Sólo los comunistas, venidos
del infierno, como se sabe,
pueden discutir este código
del Embudo, sabio y severo.
Pero esta oposición asiática,
venida del sub-hombre, es sencillo
refrenarla: a la cárcel todos,
al campo de concentración,
así quedaremos sólo
los caballeros distinguidos
y los amables yanaconas*
del Partido Radical".

Estallaron los aplausos
de los bancos aristocráticos:
qué elocuencia, qué espiritual,
qué filósofo, qué lumbrera!
Y corrió cada uno a llenarse
los bolsillos en su negocio,
uno acaparando la leche
otro estafando en el alambre,
otro robando en el azúcar
y todos llamándose a voces
patriotas, con el monopolio
del patriotismo, consultado
también en la Ley del Embudo.


Pablo Neruda
(1904-1973)

Mais sobre Pablo Neruda em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Pablo_Neruda


* yanaconas - indios araucanos, dóceis, al servicio de los conquistadores españoles.

Paulo Mendes Campos conta em versos o sonho de uma infância. Foi como ele viu a fantasia e a tristeza de seu ser.


Sonho de uma infância


Meu sonho, breve emoção.
A tarde deitada no limoeiro.
Paralelas de aço se agarrando no longe.
Há muito tempo que fui infeliz.
E desconhecia meu corpo embrulhado nas vestes.
Um cisne repetia o facílimo soneto do exílio.
Animais do ar esvoaçavam.
Flores se assustavam, muito altas, olhando o momento.
Nascia por nascer a vida tímida.
Os minutos respiravam cadenciados
Como a criança próxima à grande cachoeira.
Breve emoção da pedra, meu sonho
Ficava difícil,
Sol entre constelações remotas.
Sempre a palavra de um poema se perdia.
Um barco remava entre chamas, um coração se consumia,
A noite erguida apagava o meu desejo de pensar.
Vi como se desprende de um pântano a garça nua.

Vi a fantasia e a tristeza de meu ser.
Foi há muito, entre o mineral silencioso,
Há muito tempo que nasci da infância para crescer
Entre milícias douradas que marchavam cantando.

Deixarei meu destino como a pátria.
Renovando a aventura, reinarei entre vós.
Sonhos fiéis.
Sobe a fumaça na caligem de uma tarde chuvosa.
Sinto o aroma feliz do bife,
A friagem do ladrilho onde estraçalho um besouro,
O tinir da louça, a água caindo no zinco.
Estamos grandes, do tamanho de um defunto.
Morte, emoção de meu sonho.
Surda floresta que voa no vendaval e se esfacela.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

O outro tinha uma certeza, era eterno. Eugénio de Andrade não tem nada, mas amou o desejo com o corpo todo.


Quase epitáfio


O outro sabia.
Tinha uma certeza.
Sou eterno, dizia.

Eu não tenho nada.
Amei o desejo
com o corpo todo.

Ah, tapai-me depressa.
A terra me basta.
Ou o lodo.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

segunda-feira, dezembro 08, 2008

Às vezes, fica a impressão de que Carlos Drummond de Andrade não era apenas um. Era também um outro, um que só ela conheceu.


A língua lambe


A língua lambe as pétalas vermelhas
da rosa pluriaberta; a língua lavra
certo oculto botão, e vai tecendo
lépidas variações de leves ritmos.
E lambe, lambilonga, lambilenta,
a licorina gruta cabeluda,
e, quanto mais lambente, mais ativa,
atinge o céu do céu, entre gemidos,
entre gritos, balidos e rugidos
de leões na floresta, enfurecidos.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

Mais sobre Carlos Drummond de Andrade em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Quantas vezes, Amor, já te esqueci, para mais doidamente me lembrar de ti. E quem dera fosse sempre assim, diz Florbela ao seu amor.


Saudades

Saudades! Sim... talvez... e porque não?...
Se o nosso sonho foi tão alto e forte
Que bem pensara vê-lo até à morte
Deslumbrar-me de luz o coração!

Esquecer! Para quê?... Ah! como é vão!
Que tudo isso, Amor, nos não importe.
Se ele deixou beleza que conforte
Deve-nos ser sagrado como pão!

Quantas vezes, Amor, já te esqueci,
Para mais doidamente me lembrar,
Mais doidamente me lembrar de ti!

E quem dera que fosse sempre assim:
Quanto menos quisesse recordar
Mais a saudade andasse presa a mim!

Florbela Espanca
(1894-1930)

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Quando a poesia foi posta em oposição à utopia, a culpa não foi do poeta. Foi do homem, apenas um homem, Murilo Mendes.


O utopista


Ele acredita que o chão é duro
Que todos os homens estão presos
Que há limites para a poesia
Que não há sorrisos nas crianças
Nem amor nas mulheres
Que só de pão vive o homem
Que não há um outro mundo.

Murilo Mendes
(1901-1975)

Mais sobre Murilo Mendes em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

quinta-feira, dezembro 04, 2008

Mario Quintana nos mostra que um poema sobre uma pequena crônica policial pode ser também uma obra-prima. E provocar lágrimas de emoção.


Pequena crônica policial


Jazia no chão, sem vida,
E estava toda pintada!
Nem a morte lhe emprestara
A sua grande beleza...
Com fria curiosidade,
Vinha gente a espiar-lhe a cara,
As fundas marcas da idade,
Das canseiras, da bebida...

Triste da mulher perdida
Que um marinheiro esfaqueara!
Vieram uns homens de branco,
Foi levada ao necrotério.
E quando abriram, na mesa,
O seu corpo sem mistério,
Que linda e alegre menina
Entrou correndo no céu?!
Lá continuou como era
Antes que o mundo lhe desse
A sua maldta sina:
Sem nada saber da vida,
De vícios ou de perigos,
Sem nada saber de nada...
Com a sua trança comprida,
Os seus sonhos de menina,
Os seus sapatos antigos!

Mario Quintana
(1906-1994)

Mais sobre Mario Quintana em

Por que deveria meu nome ser lembrado? Depois de muito pensar e fazer, Bertolt Brecht chegou a esta questão fundamental sobre a vida.


Por que deveria meu nome ser lembrado?


1
Outrora pensei: em tempos distantes
Quando tiverem ruído as casas onde moro
E apodrecido os navios em que viajei
Meu nome ainda será lembrado
Juntamente com outros.

2.
Porque louvei as coisas úteis, o que
no meu tempo era tido como vulgar
Porque combati as religiões
Porque lutei contra a opressão ou
Por um outro motivo.

3.
Porque fui a favor dos homens e tudo
Coloquei em suas mãos, honrando-os assim
Porque escrevi versos e enriqueci a língua
Porque ensinei o comportamento prático ou
Por qualquer outro motivo.

4.
Por isso achei que meu nome ainda seria
Lembrado, em um pedra
Estaria meu nome, retirado dos livros
Seria impresso nos novos livros.

5.
Mas hoje
Concordo em que seja esquecido
Por que
Perguntariam pelo padeiro, havendo pão suficiente?
Por que
Seria louvada a neve que já derreteu
Havendo outras neves para cair?
Por que
Deveria haver um passado, havendo
Um futuro?

6.
Por que
Deveria meu nome ser lembrado?

Bertolt Brecht
(1898-1956)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Bertolt_Brecht

Em cantadas, Mário de Andrade demonstra todo o seu amor pela Guanabara. Afinal, há Vênus, há Domitilas fazendo guanabaradas por aí.


As cantadas


Terras bruscas, céus maduros,
Apalpam curvas os autos,
Ai, Guanabara,
Serão desejos incautos,
Ancas pandas, seios duros...
Senti as curvas dos autos
Nas praias de Guanabara.

Penetro as fendas dos morros,
Desafogos de amor, jorros
De sensualidades quentes,
Ai, ares da Guanabara,
Sou jogado em praias largas,
Coxas satisfeitas feitas
De ondas amargas.

Não posso mais...Nunca ousara
Pensar cajás, explosões
De melões,
Mulatas, uvas pisadas,
Ai, Guanabara,
Tuas noites fatigadas...
Me derramo todo em sucos
Malucos de ilhas Molucas.

Manhã. Brisas intranquilas
De volúpias mal ousadas
Passam por ti.
Nun gosto naval de adeuses...
Há deusas...
Há Vênus, há Domitilas
Fazendo guanabaradas
Por aí...

Mas as palmeiras resistem.
Na deformação dos raios,
Templos, gente, esperanças
Em desmaios
E transposições de níveis...
Só as palmeiras resistem
Como consciências incríveis!

As noites não são bem noites,
As músicas são cansaços,
Açoites
De convites, bocas, mar,
Ai, ares da Guanabara,
Vou suspirar...

Meus olhos, minhas sevícias,
Minha alma sem resistências.
A Guanabara te entregas
Sem Deus, sem teorias poéticas...
Os aviões saltam dos trilhos,
Perfuram morros, ardências,
Delícias, vícios, notícias...

Aiai, Guanabara!
Que todo me desfaleço
Por cento e dez avenidas,
Pela mulher de em seguida,
Por teus cheiros, por teus sais,
Pelos aquedutos, pelos
Morros de crespos camelos
E elefantes triunfais!

Eu não sei si mais gozara,
Iáiá, Sereia do Mar,
Si achara nalma outra clara
Glória rara sol luar
Aurora uiara
Niagara realeza
Suprema, eterna surpresa,
Guanabara!...

Mário de Andrade
(1893-1945)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_de_Andrade

quarta-feira, dezembro 03, 2008

Meu coração tem catedrais imensas.E no desespero dos iconoclastas quebrei a imagem dos meus próprios sonhos, diz Augusto dos Anjos em seu belo poema.


Vandalismo


Meu coração tem catedrais imensas,
Templos de priscas e longínquas datas,
Onde um nume de amor, em serenatas,
Canta a aleluia virginal das crenças.

Na ogiva fúlgida e nas colunatas
Vertem lustrais irradiações intensas
Cintilações de lâmpadas suspensas
E as ametistas e os florões e as pratas.

Como os velhos Templários medievais
Entrei um dia nessas catedrais
E nesses templos claros e risonhos ...

E erguendo os gládios e brandindo as hastas,
No desespero dos iconoclastas
Quebrei a imagem dos meus próprios sonhos!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_dos_Anjos

Que lua embranqueceu os teus cabelos? Foram inúmeras luas de quem os céus e o mar nem mais se lembram, no poema de amor de Augusto Frederico Schmidt.


Que lua embranqueceu...


Que lua embranqueceu os teus cabelos?
Não; foram muitas luas,
Luas de muitos feitios,
Luas hoje caducas.
Não foi só esta lua.
Foram muitas, tantas!
Não esta pejada lua, apenas,
Que descendo sobre os teus cabelos
Os tormou tão brancos!
Foram inúmeras luas de quem os céus
E o mar nem mais se lembram.
Muita água de lua
Lavou os teus cabelos,
Luas de velórios, magras e curvas,
Luas de bodas enfeitadas de rendas,
Luas viajeiras, que o vento parecia levar,
Como veleiros frágeis sobre as águas.
Luas de velórios, de noites brancas,
De doenças e agonias
Envoltas em véus.

Foram muitas luas , que tornaram
Brancos os teus cabelos.
Foram as luas dos primeiros bailes,
Dos primeiros amores.
Dos primeiros encontros humildes.
Foram as luas das vigílias,
Que te ajudaram a embalar,
Que te ajudaram a fazer dormir
Os frutos alheios que amaste,
Com a douçura da tua maternidade irrealizada.
Foram muitas luas que fizeram assim
Brancos os teus cabelos.


Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Augusto_Frederico_Schmidt




terça-feira, dezembro 02, 2008

Na canção para a amiga dormindo o sono de menininha, todo o amor de Vinicius de Moraes. Para ela dormir um sono sem fim em sua poesia.


Canção para a amiga dormindo

Dorme, amiga, dorme
Teu sono de rosa
Uma paz imensa
Desceu nesta hora.
Cerra bem as pétalas
Do teu corpo imóvel
E pede ao silêncio
Que não vá embora.

Dorme, amiga, o sono
Teu de menininha
Minha vida é a tua
Tua morte é a minha.
Dorme e me procura
Na ausente paisagem...
Nela a minha imagem
Restará mais pura.

Dorme, minha amada
Teu sono de estrela
Nossa morte, nada
Poderá detê-la.

Mas dorme, que assim
Dormirás um dia
De um sono sem fim...
Na minha poesia.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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O trabalho do amigo de Manoel de Barros era espantar urubus. O coitado foi parar no manicômio e saíu de lá falando sozinho em estrangeiro.


O urubuzeiro

Meu amigo Sebastião estourou a infância dele e mais
duas pernas
No mergulho contra uma pedra na Cacimba da Saúde.
Quarenta anos mais tarde Sebastião remava uma canoa
no rio Paraguaio
E deu o barranco de uma charqueada.
Sebastião subiu o barranco se arrastando como um
caranguejo trôpego
Até a casa do patrão e pediu um trabalho.
O patrão olhou para aquele pedaço de pessoa e disse:
Você me serve para urubuzeiro.
(Urubuzeiro era uma tarefa de espantar urubus que
atentavam nos tendais de carne.)
Trabalho de Sebastião era espantar os urubus.
Sebastião espantava espantava espantava.
Os urubus voltavam de bandos.
Sebastião espantava espantava.
Um dia pegaram Sebastião a prosear em estrangeiro
com os urubus.
Chegou que Sebastião permitiu que os urubus
fizessem farra nas carnes.
Os urubus faziam farra e conversavam em estrangeiro
com Sebastião.
Veio o patrão e mandou Sebastião para o manicômio.
No manicômio ninguém compreendia a língua de
Sebastião
De forma que Sebastião despencou do seu normal
E foi encontrado na rua falando sozinho em
estrangeiro.

Manoel de Barros

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Miguel Torga afirma que as forças da agressão não poderão passar sobre a dor infinita do Não que a terra inteira ouviu. E repetiu: não passarão!


Não passarão


Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e de crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

Miguel Torga
(1907-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

segunda-feira, dezembro 01, 2008

Maio de 1964, dias cruéis da Ditadura. Para Ferreira Gullar, a luta comum já lhe acende o sangue e bate no peito como o coice de uma lembrança.


Maio 1964

Na leiteira a tarde se reparte
em iogurtes, coalhadas, copos
de leite
e no espelho meu rosto. São
quatro horas da tarde, em maio.

Tenho 33 anos e uma gastrite. Amo
a vida
que é cheia de crianças, de flores
e mulheres, a vida,
esse direito de estar no mundo,
ter dois pés e mãos, uma cara
e a fome de tudo, a esperança.
Esse direito de todos
que nenhum ato
institucional ou constitucional
pode cassar ou legar.

Mas quantos amigos presos!
quantos em cárceres escuros
onde a tarde fede a urina e terror.
Há muitas famí­lias sem rumo esta tarde
nos subúrbios de ferro e gás
onde brinca irremida a infância da classe operária.

Estou aqui. O espelho
não guardará a marca deste rosto,
se simplesmente saio do lugar
ou se morro
se me matam.

Estou aqui e não estarei, um dia,
em parte alguma.
Que importa, pois?
A luta comum me acende o sangue
e me bate no peito
como o coice de uma lembrança.

Ferreira Gullar

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

Poucos sabem que foi Guilherme de Almeida o autor dos versos da Canção do Expedicionário. O hino dos heróis brasileiros na Segunda Guerra Mundial.


Canção do Expedicionário


Rapsódia que cantaram os soldados brasileiros nos campos de batalha da Europa

I

Você sabe de onde eu venho?
Venho do morro, do engenho,
das selvas, dos cafezais,
da boa terra do coco,
da choupana onde um é pouco,
dois é bom, três é demais.

Venho das praias sedosas,
das montanhas alterosas,
do pampa, do seringal,
das margens crespas dos rios,
dos verdes mares bravios
de minha terra natal.

Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá;
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil!

II

Eu venho da minha terra,
da casa branca da serra
e do luar do meu sertão;
venho da minha Maria
cujo nome principia
na palma da minha mão.

Braços mornos de Moema,
lábios de mel de Iracema
estendidos para mim!
Ó minha terra querida
da Senhora Aparecida
e do Senhor do Bonfim!

Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá;
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil.

III

Você sabe de onde eu venho?
É de uma Pátria que eu tenho
no bojo do meu violão;
que de viver em meu peito
foi até tomando o jeito
de um enorme coração.

Deixei lá atrás meu terreiro,
meu limão, meu limoeiro,
meu pé de jacarandá,
minha casa pequenina
lá no alto da colina,
onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra,
não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá;
sem que leve por divisa
esse "V" que simboliza
a vitória que virá:

Nossa vitória final,
que é a mira do meu fuzil,
a ração do meu bornal,
a água do meu cantil,
as asas do meu ideal,
a glória do meu Brasil.

IV

Venho do além desse monte
que ainda azula o horizonte,
onde o nosso amor nasceu;
do rancho que tinha ao lado
um coqueiro que, coitado,
de saudade já morreu.

Venho do verde mais belo,
do mais dourado amarelo,
do azul mais cheio de luz,
cheio de estrelas prateadas
que se ajoelham deslumbradas,
fazendo o sinal da Cruz !

Por mais terras que eu percorra,
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte para lá;
Sem que leve por divisa
Esse "V" que simboliza
A vitória que virá:

Nossa vitória final,
Que é a mira do meu fuzil,
A ração do meu bornal,
A água do meu cantil,
As asas do meu ideal,
A glória do meu Brasil.

Guilherme de Almeida
(1890-1969)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Guilherme_de_Almeida



Cala-te, deita-te, debaixo dos meus flancos, a terra toda em cima, agora arde, agora. Na noite que sangra nos pulsos, a paixão de Eugénio de Andrade.


Desde o chão

A pele porosa do silêncio
agora que a noite sangra nos pulsos
traz-me o teu rumor de chuva branca.

O verão anda por aí, o cheiro
violento da beladona cega a terra.
Cega também, a boca procura
trabalhos de amor. Encontra apenas
o nó de sombras das palavras.

Palavras... Onde um só grito
bastaria, há a gordura
das palavras. Palavras -
quando apetecem claridades súbitas,
o sumo estreme, a ponta extrema,
do teu corpo, arco, flecha,
corola de água aberta
ao fogo a prumo do meu corpo.

Do chão ao cume das colinas,
eis as areias. Cala-te.
Deita-te. Debaixo dos meus flancos.
A terra toda em cima. Agora arde. Agora.

Eugénio de Andrade
(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade