domingo, fevereiro 28, 2010
Vicente de Carvalho não espera o bem que mais deseja. Ele até conta o mal que vê, mas o amor, que é cego, pôs-se a sonhar o bem que não existe.
Eu não espero o bem que mais desejo
Eu não espero o bem que mais desejo:
sou condenado, e disso convencido;
vossas palavras, com que sou punido,
são penas e verdades de sobejo.
O que dizeis é mal muito sabido,
pois nem se esconde nem procura ensejo
e anda à vista naquilo que mais vejo:
em vosso olhar, severo ou distraído.
Tudo quanto afirmais eu mesmo alego:
ao meu amor desamparado e triste
toda a esperança de alcançar-vos nego.
Digo-lhe quanto sei, mas ele insiste;
conto-lhe o mal que vejo, e ele, que é cego,
pôs-se a sonhar o bem que não existe.
Vicente de Carvalho
(1866-1924)
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O amor em tercetos, por Thiago de Mello.
Tercetos de amor
§ Só agora aprendi
que amar é ter e reter.
Foi quando te vi.
§ Vi quando a rosa se abriu.
Como a eternidade
pode ser tão fugaz?
§ Não sei quando é o mar,
ou se é o sol dos teus cabelos.
Tudo são funduras.
§ Na entressombra, o sabre
se estira na relva morna.
O nenúfar se abre.
§ Brilha um dorso: és tu.
Encontro no teu ventre
a explicação da luz.
Thiago de Mello
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O que dará ao poeta a senhora cujos olhos competem com o sol em beleza e claridade? Com o desprezo, ela já lhe dá vida.
Vossos olhos, senhora, que competem
Vossos olhos, senhora, que competem
com o sol em beleza e claridade,
enchem os meus de tal suavidade,
que em lágrimas de vê-los se derretem.
Meus sentidos prostrados se submetem
assim cegos de tanta majestade;
e da triste prisão, da escuridade,
cheios de medo, por fugir, remetem.
Porém se então me vedes com acerto,
esse áspero desprezo com que olhais
me torna a animar a alma enfraquecida.
Oh, gentil cura! Oh, estranho desconcerto!
Que dareis co'um favor que vós não dais,
quando com um desprezo me dais vida?
Luís Vaz de Camões
(1524-1580)
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sábado, fevereiro 27, 2010
Naquele travelling, a câmera em rasante viajava. E de todas aquelas três vozes, Ana Cristina Cesar bebeu um pouco.
Travelling
Tarde da noite recoloco a casa toda em seu lugar.
Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
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Guardo os papéis todos que sobraram.
Confirmo para mim a solidez dos cadeados.
Nunca mais te disse uma palavra.
Do alto da serra de Petrópolis,
com um chapéu de ponta e um regador,
Elizabeth reconfirmava, “Perder
é mais fácil que se pensa”.
Rasgo os papéis todos que sobraram.
“Os seus olhos pecam, mas seu corpo
não”,
dizia o tradutor preciso, simultâneo,
e suas mãos é que tremiam. ‘É perigoso”,
ria Carolina perita no papel Kodak.
A câmera em rasante viajava.
A voz em off nas montanhas, inextinguível
fogo domado da paixão, a voz
do espelho dos meus olhos,
negando-se a todas as viagens,
e a voz rascante da velocidade,
de todas três bebi um pouco.
Ana Cristina Cesar
(1952-1983)
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sexta-feira, fevereiro 26, 2010
João Cabral diz que no canavial não se vê nenhuma planta com nome. Mas existem estrelas iguais àquelas que o povo na praça faz.
O vento no canavial
Não se vê no canavial
nenhuma planta com nome,
nenhuma planta maria,
planta com nome de homem.
É anônimo o canavial,
sem feições, como a campina;
é como um mar sem navios,
papel em branco de escrita.
É como um grande lençol
sem dobrar e sem bainha;
penugem de moça ao sol,
roupa lavada estendida.
Contudo há no canavial
oculta fisionomia:
como em pulso de relógio
há possível melodia,
ou como de um avião
a paisagem se organiza,
ou há finos desenhos nas
pedras da praça vazia.
Se venta no canavial
estendido sob o sol
seu tecido inanimado
faz-se sensível lençol,
se muda em bandeira viva,
de cor verde sobre verde,
com estrelas verdes que
no verde nascem, se perdem.
Não lembra o canavial,
então, as praças vazias:
não tem, como têm as pedras,
displicina de milícias.
É solta sua simetria:
como a das ondas na areia
ou as ondas da multidão
lutando na praça cheia.
Então, é da praça cheia
que o canavial é a imagem:
vêem-se as mesmas correntes
que se fazem e desfazem,
voragens que se desatam,
redemoinhos iguais,
estrelas iguais aquelas
que o povo na praça faz.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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quinta-feira, fevereiro 25, 2010
Nos versos de Manuel Bandeira, o lutador buscou no amor o bálsamo da vida. E não encontrou senão veneno e morte.
O lutador
Buscou no amor o bálsamo da vida,
Não encontrou senão veneno e morte.
Levantou no deserto a roca-forte
Do egoísmo, e a roca em mar foi submergida!
Depois de muita pena e muita lida,
De espantoso caçar de toda sorte,
Venceu o monstro de desmedido porte
- A ululante Quimera espavorida!
Quando morreu, línguas de sangue ardente,
Aleluias de fogo acometiam,
Tomavam todo o céu de lado a lado,
E longamente, indefinidamente,
Como um coro de ventos sacudiam
Seu grande coração transverberado!
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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quarta-feira, fevereiro 24, 2010
Murilo Mendes não vê ninguém vivo na cidade enorme. Mas um arcanjo lhe apresenta à última mulher que existirá no mundo.
Quatro horas da tarde
Não vejo ninguém vivo nesta cidade enorme:
Daqui a cinquenta anos estarão todos no cemitério.
Vejo somente a água, a pedra fixa
Que me transportam ao princípio do tempo.
Quem são estes fantasmas que se movem nas ruas
Agitando bandeiras, levantando os braços, tocando tambores?
Quem são estes velhos que andam de velocípede,
Quem são estes bebês empunhando machados?
Procuro a amiga tão bela e necessária.
Se não está comigo, em mim, é porque não existe.
Ó minha amiga, surge em corpo, senão acreditarei
Que também eu próprio não existo.
De quem é este manto de púrpura que arrastam no chão?
Não é para mim, talvez para um operário.
Cubramos com ele o sexo de Madalena
Que me espera num porão da Idade Média.
Um manequim assassina um homem por amor.
Sete pianos ululam na extensão do asfalto.
Um arcanjo sólido descerra o vale de Josafá
Apresentando-me à última mulher que existirá no mundo.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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terça-feira, fevereiro 23, 2010
No soneto da desesperança, eram tais os seus ciúmes dela, tão grande a dor de não poder vivê-la, que em desespero, o poeta resolveu-se: - Mato-a.
Soneto da desesperança
De não poder viver sua esperança
Transformou-a em estátua e deu-lhe um nicho
Secreto, onde ao sabor do seu capricho
Fugisse a vê-la como uma criança.
Tão cauteloso fez-se em seus cuidados
De não mostrá-la ao mundo, que a queria
Que por zelo demais, ficaram um dia
Irremediavelmente separados.
Mas eram tais os seus ciúmes dela
Tão grande a dor de não poder vivê-la,
Que em desespero, resolveu-se: - Mato-a!
E foi-se assim que triste como um bicho
Uma noite subiu até o nicho
E abriu o coração diante da estátua.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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segunda-feira, fevereiro 22, 2010
Guimarães Rosa vai abrir a sua janela sobre a noite. E vai ouvir a rainha do País do Suave Sonho cantando sempre o mesmo canto.
Lunático
Vou abrir minha janela sobre a noite.
E já bem noite, a lua,
alta a um terço do seu arco,
terá de deslizar pelo meu quarto adentro,
e passear sobre o meu rosto, adormecido e lívido,
quando eu sair a sonhar pelas estradas noturnas,
sem fim, sem marcos, nem encruzilhadas,
que levam à região dos desabrigos...
Sonharei com mares muito brancos,
de águas finas, como um ar dos cimos,
onde o mu corpo sobrenada solto,
por entre nelumbos que passam boiando...
Ouvirei a rainha do País do Suave Sonho,
cantando no alto sempre o mesmo canto,
como a sereia do sempre mais alto...
E a janela se fecha, prendendo aqui dentro
o raio suave que prendia a lua...
Para que eu soçobre no mar dos nenúfares grandes,
onde remoinham as formas inacabadas,
onde vêm morrer as almas, afogadas,
e onde os deuses se olham como num espelho.
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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Guimarães Rosa
domingo, fevereiro 21, 2010
Alberto Caeiro sente que todo ele é qualquer força que o abandona. E que toda a realidade o olha como um girassol com a cara dela no meio.
O amor
O amor é uma companhia.
Já não sei andar só pelos caminhos,
Porque já não posso andar só.
Um pensamento visível faz-me andar mais depressa
E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.
Mesmo a ausência dela é uma cousa que está comigo.
E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.
Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.
Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.
Todo eu sou qualquer força que me abandona.
Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Alberto Caeiro
Nos versos de Menotti del Picchia, a saudade é cheia de graça. É uma alegria em dor difusa, uma doença da raça.
Saudade
Saudade cheia de graça,
alegria em dor difusa,
doença da minha raça,
pranto que a guitarra lusa
em seu exílio verteu...
Ai quem sentir-te não há-de
se foi dentro da saudade
que a minha pátria nasceu.
Menotti del Picchia
(1892-1988)
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sábado, fevereiro 20, 2010
Na espera angustiante, Guilherme de Almeida continua a sua pobre prece: Que seria de mim se ela não viesse? E que será quando ela vier, meu Deus?
A espera
Vem... Não vem... - Olho a rua: é outono. E o outono
tem um grande prestígio emocional:
vem todo cheio de alma e de abandono
e entra em meus nervos lânguidos de sono,
como a ponta excitante de um punhal!
Vem... Não vem... - Na paisagem amarela
da rua doente há um contagioso spleen.
Fica auscultando o vidro da janela:
passa um vento nervoso - e eu penso nela;
voa uma folha morta - e eu penso em mim.
Vem... Não vem... - Cada voz perdida, ou cada
figurinha ligeira de estação
toda afogada em peles, na calçada,
ou cada passo nos degraus da escada
marca o compasso do meu coração.
Vem...não vem... - E esta frase ingênua esvoaça
no ar, desfolhada como um malmequer.
Tamborilando os dedos na vidraça,
eu conto um verso - e no meu verso passa
timidamente um nome de mulher.
Vem... Não vem... Vem... Não vem... - A tarde desce
a mão cansada de dizer adeus...
E eu continuo a minha pobre prece:
- Que seria de mim, se ela não viesse?
E que será quando ela vier, meu Deus?
Guilherme de Almeida
(1890-1969)
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sexta-feira, fevereiro 19, 2010
Retrato do artista aos 7 anos. Assim, Paulo Mendes Campos nos presenteia com um de seus mais belos poemas.
Retrato do artista aos 7 anos
Para dizer-te sem mentira o que é o artista,
Abram-se algumas portas, fecham outras,
A fim de insinuar-se aqui a reciprocidade dos gestos.
Vai buscar depois a sequência dos retratos.
Demora o pensamento no instantâneo do trapézio,
Procura concordar opostos horizontes.
Um sino de manhã assume seu coração e o mundo:
É Natal, e o aroma de maçãs estrangeiras
Vem do escritório fechado. Que pode o artista menino,
Entre os pressurosos prenúncios duma data,
Senão precipitar o seu prazer, abrir as portas prematuras,
Espiar pelos caixilhos da vidraça e pasmar-se?
Um artista (precisarás sabê-lo) não tem tempo.
À noite, quando se recolhe ao dormitório,
Entre irmãos e primos já dormidos,
O ruído da água na caixa o concentra, porque a vida
Não se vê de um lance, apenas se advinha dentro das paredes,
E se articula e se desfaz sob tantas indiretas alusões.
No princípio tudo é subterrâneo, e esse caráter secreto
Aponta ao artista as premissas invisíveis de seu ofício.
Um pássaro rufla no jardim, um trem de ferro parte ou chega,
Um cavalo do esquadrão se recolhe à estrebaria.
O menino abre seus olhos de artista e continua.
Não pressuponhas de sua inocência, nem temas de seu desamparo:
Tudo nele é uma força que se quebra e reagrupa;
Sua doçura é esbelta e varonil como um toureiro;
Seu fascinante horror é um sentido a mais, só isso.
Ei-lo diante da vitrina com a sua jaquetade veludo,
A bengalinha de futuro explorador da madrugada,
Seu pequeno sentimento de criatura moderna tão antiga.
Detrás do cristal, um boneco do tamanho dum homem
(Ou um homem) de cara escarlate, pálpebras azuis,
Imóvel e impecavelmente sinistro em sua casaca;
Eis o menino, mito em formação, diante do novo mito urbano,
Demorando-se a advinhá-lo entre o horror e o amor
De novas formas (ou sentidos) que a vida convocou.
Um boneco do tamanho de um homem ou um homem?
Um segredo a mais no mundo ou o mundo?
É crepúsculo e as portas de aço se cercam com rancor.
Súbito, os olhos do boneco ou do homem
Reviram-se em suas órbitas metálicas,
E aquela cara escarlate inclina-se, rápida, mecânica.
A um palmo da face do menino artista;
Seu grito de horror e amor o sufoca e paralisa,
Enquanto o boneco (ou homem) ri um riso de adulta solidão.
Só então, a caminho do jantar,
Fazendo passes com a bengala quimérica,
Aprende que sua vida vai ser um susto (e vale a pena).
Todo salto mortal pode causar a morte de um pequeno artista.
Mas um artista de verdade não cai jamais no picadeiro.
Precário é seu equilíbrio entre avô e avó,
Indecifráveis são as figuras de seu corpo na barra do parque.
Embora os tambores da matina anunciem o seu fracasso,
Um artista de verdade não cai jamais no picadeiro.
Eis que ele é dono dum cão à boca da noite
E começa a desprezá-lo logo depois do amanhecer;
Chama-se Lord, Jim ou Bob, e seu olhar é tão úmido e baço
Que o artista pequeno o percebe até as entranhas da morte,
E a experiência não vale, e perece, prematura.
Mas a quem amar se for preciso amar?
O que amar se amar for o amor?
É bom tocar a resina dos troncos e prová-la,
Prever no espaço a geometria da bola de borracha,
Passar os dedos levemente sobre o musgo,
Desviar a caravana comercial das formigas.
Ele ainda não sabe, e por isso se afasta,
Que as resinas correspondem a mil formas de sentir,
A bola quer narrar um desenho contido,
As formigas pastam em searas de rubro sentido.
Impaciente, o menino artista declina de qualquer entendimento
E vai buscar a evasão das águas,
Total no breve instante do mergulho,
Invisível e só e nu e soberbo em sua redoma.
Úmido, sobre a pedra morna do remanso,
O sol não o distingue dos pequenos répteis friorentos;
Ou sobre o trampolim, voltado à simples profundidade do céu,
Um gosto de cloro nos lábios, um galo vesperal em seus ouvidos,
Pressente em círculos efêmeros encadear-se o momento
Indivisível, como um livro de gravuras ao contrário.
Com está longe e tão perto o momento à beira do lago,
Quando poderá passear sob as ramagens, pensando
Que sua vida não é ponto imóvel no tempo
Mas luz que se desloca em cintilações diferentes,
Recompondo o ontem no amanhã, e o amanhã num agora intenso,
Associando sem dissenção, os aviões, os alcantilados,
E o mendigo que costura a sua roupa no vão de um esgoto.
De arco e tocadeira ou rolando um pneu sobre o passeio,
Ele retorna à casa, no momento da luz aglutinada,
Quando, empurrando de volta a carrocinha de sorvete,
Um homem de pescoço de girafa olha vidrado acima do horizonte.
As cidades acabam no aclive da montanha ou na linha do oceano,
Mas, ao escurecer, um bote ganha o mar alto contra o vento,
E na montanha, a meio caminho das casas e da toca do morcego,
Um homem chamado Arquimedes ou Estêvão ou Morandi
Rodeou o seu mundo de cedros altos e mastins.
O menino artista ama somente o que sabe.
Divergentes são seus caminhos de ida e de volta
Sobre o muro que se ramifica, reunindo e apartando as famílias:
Este limite entre as criaturas é a sua propriedade,
De onde pode ver cada quintal, de cor e alma diferentes,
Para contar no momento oportuno o que se passa no mundo.
Perdoa-lhe a natureza de espião, indispensável
À causa da poesia. E o perdoa ainda
Se escuta às portas, destampa os frascos de perfume,
Prova a terra, fuma restos de cigarro, espetala as flores,
Se vasculha as gavetas e velhas canastras,
Se desafina o piano, queima as mãos no fogo,
Se sempre reinventa o seu inferno exuberante,
Se bebe sangue ou fere a própria carne,
Se tem a idéia de saber se é possível viver sem respirar.
Grimpando aos últimos galhos da mangueira,
Despencando-se dos andaimes duma casa em construção,
Escondendo-se na cripta fresca duma torre,
O menino cumpre a sua missão de artista,
Antes de dormir. Antes de atravessar o espelho
Deformante do sono, onde prossegue o seu trabalho.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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quinta-feira, fevereiro 18, 2010
Manoel de Barros diz que nasceu para administrar o à-toa, o em vão, o inútil. E que pertence de fazer imagens.
Desejar ser - VIII
Nasci para administrar o à-toa
o em vão
o inútil.
Pertenço de fazer imagens.
Opero por semelhanças.
de pessoas com rãs
de pessoas com pedras
etc etc.
Retiro semelhanças de árvores comigo.
Não tenho habilidade pra clarezas.
Preciso de obter sabedoria vegetal.
(Sabedoria vegetal é receber com naturalidade uma rã
no talo.)
E quando esteja apropriado para pedra, terei também
sabedoria mineral.
Manoel de Barros
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quarta-feira, fevereiro 17, 2010
Para Cecília Meireles, eles vão ouvir o pregão do infortúnio até morrerem o que se pode morrer. Vivos, ouvindo a morte.
Pregão do infortúnio
Não sairemos à rua
para apregoar o infortúnio:
dentro da sombra ficaremos,
debaixo de negros tetos
escarvaremos o silêncio com a nossa
memória.
Escarvaremos o silêncio.
Nossos olhos sem pálpebras
irão crescendo em marés vermelhas.
E a nossa boca sem voz
será uma ferida calma,
inútil no enorme tempo.
No enorme tempo.
O pregão do infortúnio
para nós mesmos o fazemos.
É incomunícável, como todas
as verdades humanas.
Horríveis seremos,
com a face de cinza,
os lábios negros, arena triste
onde os pensamentos se debatem,
desfalecem e morrem em lágrimas.
O pregão do infortúnio
nós mesmos o ouviremos,
incansáveis,
até perdermos as forças.
Até morrermos o que se pode morrer
conservando a vida.
Vivos, ouvindo a morte.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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terça-feira, fevereiro 16, 2010
Nesta vida, em que sou meu sono, não sou meu dono. Quem sou é quem me ignoro e só me encontro quando de mim fujo, lamenta em versos Fernando Pessoa.
Nesta vida
Nesta vida, em que sou meu sono,
Não sou meu dono,
Quem sou é quem me ignoro e vive
Através desta névoa que sou eu
Todas as vidas que eu outrora tive,
Numa só vida.
Mar sou: baixo marulho ao alto rujo,
Mas minha cor vem do meu alto céu.
E só me encontro quando de mim fujo.
Quem quando eu era infante me guiava
Senão a vera alma que em mim estava?
Atava pelos braços corporais,
Não podia ser mais.
Mas, certo, um gesto, olhar ou esquecimento
Também, aos olhos de quem bem olhou,
A Presença Real sob o disfarce
Da minha alma presente sem intento.
Fernando Pessoa
(1889-1935)
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segunda-feira, fevereiro 15, 2010
Leminski sente o desejo desespero de voltar antes mesmo de ir-se. Antes mesmo de transformar-se em outro, ou em outro transformar-se.
Sei lá
Vai pela sombra, firme,
o desejo desespero de voltar
antes mesmo de ir-me
antes de cometer o crime,
me transformar em outro
ou em outro transformar-me
quem sabe obra de arte,
talvez, sei lá, falso alarme,
grito caindo no poço,
neste pouco poço nada vejo nem ouço,
mais mais mais
cada vez menos.
Poder isso, sinto, é tudo que posso,
o tão pouco tudo que podemos.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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domingo, fevereiro 14, 2010
Sophia de Mello Breyner quer um dia branco, um mar de beladona, um movimento inteiro, unido, adormecido. Como um só momento.
Intervalo (II)
Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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sábado, fevereiro 13, 2010
De um âmbito estreito, Machado de Assis diz que choverão bençãos divinas aos vencedores da luta. E que de cada lágrima enxuta nasce uma graça do céu.
Daqui deste âmbito estreito
Daqui deste âmbito estreito,
Cheio de risos e galas,
Daqui, onde alegres falas
Soam na alegre amplidão,
Volvei os olhos, volvei-os
A regiões mais sombrias,
Vereis cruéis agonias,
Terror da humana razão.
Trêmulos braços alçando,
Entre os da morte e os da vida,
Solta a voz esmorecida,
Sem pão, sem água, sem luz,
Um povo de irmãos, um povo
Desta terra brasileira,
Filhos da mesma bandeira,
Remidos na mesma cruz.
A terra lhes foi avara,
A terra a tantos fecunda;
Veio a miséria profunda,
A fome, o verme voraz.
A fome? Sabeis acaso
O que é a fome, esse abutre
Que em nossas carnes se nutre
E a fria morte nos traz?
Ao céu com trêmulos lábios,
Em seus tormentos atrozes,
Ergueram súplicas vozes,
Gritos de dor e aflição;
Depois as mãos estendendo,
Naquela triste orfandade,
Vêm implorar caridade
Mais que à bolsa, ao coração.
O coração...sois vós todos,
Vós que as súplicas ouvistes;
Vós que às misérias tão tristes
Lançais tão espesso véu.
Choverão bençãos divinas
Aos vencedores da luta:
De cada lágrima enxuta
Nasce uma graça do céu.
Machado de Assis
(1839-1908)
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sexta-feira, fevereiro 12, 2010
Augusto dos Anjos sabe que há muito pranto na existência. E que no delírio a Humanidade ri-se louca no carnaval da vida.
A máscara
Eu sei que há muito pranto na existência,
Dores que ferem corações de pedra,
E onde a vida borbulha e o sangue medra,
Aí existe a mágoa em sua essência.
No delírio, porém, da febre ardente
Da ventura fugaz e transitória
O peito rompe a capa tormentória
Para sorrindo palpitar contente.
Assim a turba inconsciente passa,
Muitos que esgotam de prazer a taça
Sentem no peito a dor indefinida
E entre a mágoa que másc'ra eterna apouca
A Humanidade
ri-se e ri-se louca
No carnaval intérmino da vida.
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
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Augusto dos Anjos
quinta-feira, fevereiro 11, 2010
O gol, segundo Ferreira Gullar.
O gol
A esfera desce
Do espaço
Veloz
Ele a apara
No peito
E a pára
No ar
Depois
Com o joelho
A dispõe à meia
Altura onde
Iluminada
A esfera espera
O chute
Que
Num relâmpago
A dispara
Na direção
Do nosso
Coração
Ferreira Gullar
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quarta-feira, fevereiro 10, 2010
O homem que denunciou o vizinho para a Gestapo. Em versos, Bertolt Brecht mostra os horrores da Alemanha nos tempos do nazismo.
O vizinho
Eu sou o vizinho. Eu o denunciei.
Não queremos ter aqui
Nenhum agitador.
Quando penduramos a bandeira com a suástica
Ele não pendurou nenhuma bandeira.
Quando lhe falamos sobre isso
Ele não pendurou nenhuma bandeira.
Quando lhe falamos sobre isso
Ele nos perguntou se no cômodo
Onde vivemos com quatro crianças
Ainda há lugar para um mastro de bandeira.
Quando dissemos que acreditamos novamente no futuro
Ele riu.
Nós não gostamos quando o espancaram
Na escada. Rasgaram-lhe o avental.
Não era necessário. Temos poucos aventais.
Mas agora ele se foi, há sossego no edifício.
Já temos preocupações demais
É preciso ao menos haver sossego.
Notamos que algumas pessoas
Viram o rosto quando cruzam conosco. Mas
Os que o levaram dizem
Que agimos corretamente.
Bertolt Brecht
(1898-1956)
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terça-feira, fevereiro 09, 2010
São Paulo, comoção de minha vida, galicismo a berrar nos desertos da América. Mário de Andrade e seu imenso amor pela paulicéia desvairada.
Inspiração
São Paulo! comoção de minha vida...
Os meus amores são flores feitas de original!...
Arlequinal!...Trajes de losangos... Cinza e ouro...
Luz e bruma... Forno e inverno morno...
Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes...
Perfumes de Paris... Arys!
Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!...
São Paulo! comoção de minha vida...
Galicismo a berrar nos desertos da América.
Mário de Andrade
(1893-1945)
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segunda-feira, fevereiro 08, 2010
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?... Demente, alucinada, Florbela Espanca anda a chamar por seu amor.
Aonde?...
Ando a chamar por ti, demente, alucinada,
Aonde estás, amor? Aonde...aonde...aonde?...
O eco ao pé de mim segreda...desgraçada...
E só a voz do eco, irônica, responde!
Estendo os braços meus! Chamo por ti ainda!
O vento aos meus ouvidos, soluça a murmurar;
Parece a tua voz, a tua voz tão linda
Cantante como um rio banhado de luar!
Eu grito a minha dor, a minha dor intensa!
Esta saudade enorme, esta saudade imensa!
E só a voz do eco à minha voz responde...
Em gritos, a chorar, soluço o nome teu
E grito ao mar, à terra, ao puro azul do céu:
Aonde estás, amor? Aonde... aonde... aonde?...
Florbela Espanca
(1894-1930)
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Para Gastão de Holanda, o Capibaribe tem uma rede bancária para sua clientela das margens. O rio dá com o braço da maré e tira com o murro da cheia.
A rede bancária líquida
O rio tem uma rede bancária
para atender aos flagelados,
sua clientela das margens.
Há um capital chamado pró-giro
feito de redemoinhos e febre amarela.
O rio tem um balanço exigível
pedindo a execução dos marginais
e há sempre passivo, lucro não há.
Perdas? Sim, essas são ganhas, fatais.
As mercadorias em consignação desfilam
no leito rancoroso, como um
gerente, de conta-corrente
que o banco do rio credita ao mar
e não ao devedoso cliente.
O rio empresta a prazos e juros altos
pois quem nele pesca uma tainha
tem que lhe endossar uma cesta de camorins.
Se a fome recorrer ao mangue
a pena é mil alqueires de caranguejos
cevados na lama da baixa-mar.
O rio dá com o braço de maré
e tira com o murro da cheia
que com ela traz o mar de meirinho.
Gastão de Holanda
(1919-1997)
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Gastão de Holanda
domingo, fevereiro 07, 2010
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida? Um caco, admite com tristeza Álvaro de Campos.
Apontamento
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vazo vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Um cheiro de espádua nos versos do parnasiano Alberto de Oliveira E ele hauriu toda a essência dela.
Cheiro de espádua
Quando a valsa acabou, veio à janela,
sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava.
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
e estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
carne rosada de um mimo! A arder na lava
de improvisa paixão, eu, que a beijava,
hauri sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh, ciúme!
sair velada da mantilha. A esteira
sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-me ainda,
sinto que à luz do luar nas folhas, cheira
este ar da noite àquela espádua linda!
Alberto de Oliveira
(1857-1937)
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sexta-feira, fevereiro 05, 2010
Manuel Bandeira viu uma estrela luzindo em sua vida vazia. E essa estrela lhe dava uma esperança mais triste ao fim do seu dia.
A estrela
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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Manuel Bandeira
Apaixonado, Cristóvão Ayres sabe que aquele olhos fazem vassalos por onde passam. E quem os quiser possuir, há de comprá-los.
Lésbia*
Não há olhar mais doce
nem mais formosa boca,
nem mais suave e etérea formosura;
porém no olhar dessa criança louca
nem o reflexo duma crença pura!
É como se ele fosse
talhado em pedra dura.
Aquele seio dela, essa riqueza
que não tem outro igual em toda a Terra,
aquele coração onde ela encerra
tão gélidos desdéns, tanta frieza,
aquela boca, coralínea taça,
que pede beijos e recusa dá-los,
aquele altivo olhar que faz vassalos
por onde passa,
todos esses prodígios de beleza,
todo esse imenso abismo da desgraça,
quem os quiser possuir... há de comprá-los!
Cristóvão Ayres
(1853-1930)
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*A musa do poeta latino Caio Valerio Catulo (87-54 a.C.)
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Cristóvao Ayres
quinta-feira, fevereiro 04, 2010
Para Mario Quintana, depois do fim, subia, às vezes, no ar, aquele riso inexplicável de criança. E sempre havia alguém re-inventando amor.
Depois do fim
Brotou uma flor dentro de uma caveira.
Brotou um riso em meio a um De profundis.
Mas o riso era infantil e irresistível,
As pétalas da flor irresistivelmente azuis...
Um cavalo pastava junto a uma coluna
Que agora apenas sustentava o céu.
A missa era campal: o vendaval dos cânticos
Curvava como um trigal a cabeça dos fiéis.
Já não se viam mais os pássaros mecânicos.
Tudo já era findo sobre o velho mundo.
Diziam que uma guerra simplificara tudo.
Ficou, porém, a prece, um grito último da esperança...
Subia, às vezes, no ar, aquele riso inexplicável
de criança
E sempre havia alguém re-inventando amor.
Mario Quintana
(1906-1994)
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Mario Quintana
Carlos Nejar sente que há uma devastação nas coisas e nos seres. Mas as lavas soprarão, enquanto nós vivermos.
Poema da devastação
Há uma devastação
nas coisas e nos seres,
como se algum vulcão
abrisse as sobrancelhas
e ali, sobre esse chão,
pousassem as inteiras
angústias, solidões,
passados desesperos
e toda a condição
de homem sem soleira,
ventura tão curta,
punição extrema.
Há uma devastação
nas águas e nos seres;
os peixes, com seus viços,
revolvem-se no umbigo
deste vulcão de escamas.
Há uma devastação
nas plantas e nos seres;
o homem recurvado
com a pálpebra nos joelhos.
As lavas soprarão,
enquanto nós vivermos.
Carlos Nejar
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Carlos Nejar
quarta-feira, fevereiro 03, 2010
Murilo Mendes conta em versos toda a decadência da família Pitangueira. Estão sem um tostão, mas até o princês vai desfilar nos Arrepiados de Bangu.
O avô princês
A família Pitangueira
Era mais pobre que Jó
Na segunda fase dele.
A família Pitangueira
Dera muitos titulares,
Ministros e senadores.
Tinha tido muito luxo.
Mas agora essa família
Estava sem um tostão.
O pecúlio da família
Consistia nas molduras
Dos retratos dos avós.
Molduras ricas, pesadas,
Que protegiam os retratos
Dos heróis dessa família.
Tinha avô e bisavô,
Tataras e quarto avós.
Quanto às pinturas, coitadas,
Não tinham valor nenhum,
Ai! não tinham assinatura.
A família Pitangueira
Jejuava noite e dia
Mas não vendia a ninguém
Os retratos dos avós.
Somente o filho mais moço
Que tem desessete anos,
Dança bem, chama-se Lúcio,
Acha que aquilo dá peso.
Tem um alemão ricaço
Que cobiçava as molduras
A família Pitangueira
Não decide até agora.
Neste ano essa família
Não conseguiu um vintém
Pra fazer o carnaval.
Nem ao menos pra confetti.
O alemão bem que sabia,
Aproveita a ocasião,
Renova a proposta dele.
A família Pitangueira
Reúne um conselho em casa,
Mas tem pena de vender.
Lúcio dá um murro na mesa:
"Meu Deus praquê tanto avô!"
Lá fora passava um rancho
Cantando o samba da moda.
A família Pitangueira
Diz que sim ao alemão.
Alemão tomou dez chops,
Família pegou nas notas,
Alugou um automóvel,
Azularam pra cidade.
As pinturas enroladas
No fundo de uma gaveta
Se sentiram abandonadas
Sem o calor da moldura.
Então se desenrolaram,
Retomam seus movimentos,
Entram na cozinha adentro,
Seguram nas baterias
E vão pelo bairro afora
Fazendo uma barulhada.
Se incorporaram no rancho
"Arrepiados de Bangu".
Tomam emprestado pandeiros,
Reco-reco e dois violões.
Saltou o pires em cena,
Cai nickel que nem chuchu.
Improvisam fantasias
De baiana e dominó.
O mais metido era o avô,
Fantasiado de princês.
Dançava com muito garbo,
Evolui com harmonia,
Ao mesmo tempo com dengue
E com grande majestade.
Até no chalé das Águias
Se comentou o princês.
Acabando o carnaval
O grupo foi ao alemão,
Propõe comprar as molduras.
O alemão está na chuva,
Então a proposta aceita,
Quarenta chops tornou.
O grupo volta pra casa,
Carregando com as molduras.
Amanhece a quarta-feira.
A família Pitangueira
Inda em casa não chegou.
Os avós e bisavós
Retomaram o lugar deles,
Lá do fundo das molduras.
Parece que o olho deles
Esticou, ficou maior...
É claro, estão esperando
A volta do carnaval.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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A triste história do amor de Maria por João, nos versos de Mário de Sá-Carneiro.
Duas existências
Numa casa em que faltava
A luz o ar e pão
Entrara ela na vida
Tendo ao seu lado um caixão;
Pois no dia em que nascera
Morrera seu pai também!
Vira assim a luz do mundo
Sozinha com sua mãe!
Num rico, claro aposento
Entre veludos e rendas
Onde as mais pequenas fendas
Para não entrar o frio,
Embora fosse no estio
Se tinham calafetado,
Onde tudo era alegria,
Onde tudo era cuidado
Tinha no mundo ele entrado
Em um explêndido dia!
Crescera só rodeada
Pela dor, pela pobreza,
Pela fome, pelo frio,
Pela miséria e tristeza
Crescera ele ao contrário
Entre risos d'alegria
Entre abundância, opulência
E tendo tudo o que queria.
A mãe dele mui doente
Não podia trabalhar:
A linda e pobre Maria
Tinha pois que a sustentar
Para isso noute e dia
Estava sempre a costurar!
Ele não, não trabalhava,
Alegre vida levava,
De cousa alguma cuidava,
Excepto dos seus prazeres.
Gastava dinheiro a rodos
Mas era célebre entre todos
Pelos seus trens e mulheres!
Maria como uma deusa
Era bela era formosa.
Olhos lindos, graciosa
A boca, e as mãos de fada.
Alta não muito, elegante.
A tez do seu semblante
Mimosa mas descorada.
Tinha mui negro o cabelo
E de tal maneira belo
Que qualquer pessoa ao vê-lo
Ficava extasiada!
Também ele era formoso,
O rosto branco e rosado,
O seu lábio por um buço
Louro e fino assombreado.
Era enfim João um moço
Que devia ser amado.
Por grande fatalidade
Encontrara ele um dia
A linda e casta Maria
Numa rua da cidade.
De ver tão grande beleza
Na miséria, na pobreza
Ficara muito espantado.
De Maria o coração
Palpitara ao ver João!...
.........................................
Poe ela ele foi amado!...
Com grande amor inocente.
Amou-a ele também
Porém... criminosamente!
........................................
........................................
Passou-se o tempo e a pomba
Caiu nas garras do abutre!
.......................................
É bem certo que mui zomba
A previdência no mundo
Com um cinismo profundo
Pois em quanto que Maria
Donzela tão desgraçada
Vendo-se ludibriada
Viver mais tempo não queria
E co'a a vida terminava;
Ele, o infante João
Continuava a viver
Rico, alegre e feliz
Numa vida de prazer!...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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terça-feira, fevereiro 02, 2010
Nada em mim é certo e está de acordo comigo próprio. As horas belas são as dos outros ou as que não há, no sentimento de Álvaro de Campos.
A Praça da Figueira
A Praça da Figueira de manhã.
Quando o dia é de sol (como acontece
Sempre em Lisboa), nunca em mim esquece,
Embora seja uma memória vã.
Há tanta coisa mais interessante
Que aquele lugar lógico e plebeu,
Mas amo aquilo, mesmo aqui...Sei eu
Por que o amo? Não importa. Adiante...
Isso de sensações só vale a pena
Se a gente se não põe a olhar para elas.
Nenhuma delas em mim serena...
De resto, nada em mim é certo e está
De acordo comigo próprio. As horas belas
São as dos outros ou as que não há.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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A saudade de Alice Ruiz saúda a ida do seu amor. Mesmo sabendo que uma vinda só é possível noutra vida.
Saudação da saudade
Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida
Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz
Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento
Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim
Alice Ruiz
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