sexta-feira, fevereiro 19, 2010
Retrato do artista aos 7 anos. Assim, Paulo Mendes Campos nos presenteia com um de seus mais belos poemas.
Retrato do artista aos 7 anos
Para dizer-te sem mentira o que é o artista,
Abram-se algumas portas, fecham outras,
A fim de insinuar-se aqui a reciprocidade dos gestos.
Vai buscar depois a sequência dos retratos.
Demora o pensamento no instantâneo do trapézio,
Procura concordar opostos horizontes.
Um sino de manhã assume seu coração e o mundo:
É Natal, e o aroma de maçãs estrangeiras
Vem do escritório fechado. Que pode o artista menino,
Entre os pressurosos prenúncios duma data,
Senão precipitar o seu prazer, abrir as portas prematuras,
Espiar pelos caixilhos da vidraça e pasmar-se?
Um artista (precisarás sabê-lo) não tem tempo.
À noite, quando se recolhe ao dormitório,
Entre irmãos e primos já dormidos,
O ruído da água na caixa o concentra, porque a vida
Não se vê de um lance, apenas se advinha dentro das paredes,
E se articula e se desfaz sob tantas indiretas alusões.
No princípio tudo é subterrâneo, e esse caráter secreto
Aponta ao artista as premissas invisíveis de seu ofício.
Um pássaro rufla no jardim, um trem de ferro parte ou chega,
Um cavalo do esquadrão se recolhe à estrebaria.
O menino abre seus olhos de artista e continua.
Não pressuponhas de sua inocência, nem temas de seu desamparo:
Tudo nele é uma força que se quebra e reagrupa;
Sua doçura é esbelta e varonil como um toureiro;
Seu fascinante horror é um sentido a mais, só isso.
Ei-lo diante da vitrina com a sua jaquetade veludo,
A bengalinha de futuro explorador da madrugada,
Seu pequeno sentimento de criatura moderna tão antiga.
Detrás do cristal, um boneco do tamanho dum homem
(Ou um homem) de cara escarlate, pálpebras azuis,
Imóvel e impecavelmente sinistro em sua casaca;
Eis o menino, mito em formação, diante do novo mito urbano,
Demorando-se a advinhá-lo entre o horror e o amor
De novas formas (ou sentidos) que a vida convocou.
Um boneco do tamanho de um homem ou um homem?
Um segredo a mais no mundo ou o mundo?
É crepúsculo e as portas de aço se cercam com rancor.
Súbito, os olhos do boneco ou do homem
Reviram-se em suas órbitas metálicas,
E aquela cara escarlate inclina-se, rápida, mecânica.
A um palmo da face do menino artista;
Seu grito de horror e amor o sufoca e paralisa,
Enquanto o boneco (ou homem) ri um riso de adulta solidão.
Só então, a caminho do jantar,
Fazendo passes com a bengala quimérica,
Aprende que sua vida vai ser um susto (e vale a pena).
Todo salto mortal pode causar a morte de um pequeno artista.
Mas um artista de verdade não cai jamais no picadeiro.
Precário é seu equilíbrio entre avô e avó,
Indecifráveis são as figuras de seu corpo na barra do parque.
Embora os tambores da matina anunciem o seu fracasso,
Um artista de verdade não cai jamais no picadeiro.
Eis que ele é dono dum cão à boca da noite
E começa a desprezá-lo logo depois do amanhecer;
Chama-se Lord, Jim ou Bob, e seu olhar é tão úmido e baço
Que o artista pequeno o percebe até as entranhas da morte,
E a experiência não vale, e perece, prematura.
Mas a quem amar se for preciso amar?
O que amar se amar for o amor?
É bom tocar a resina dos troncos e prová-la,
Prever no espaço a geometria da bola de borracha,
Passar os dedos levemente sobre o musgo,
Desviar a caravana comercial das formigas.
Ele ainda não sabe, e por isso se afasta,
Que as resinas correspondem a mil formas de sentir,
A bola quer narrar um desenho contido,
As formigas pastam em searas de rubro sentido.
Impaciente, o menino artista declina de qualquer entendimento
E vai buscar a evasão das águas,
Total no breve instante do mergulho,
Invisível e só e nu e soberbo em sua redoma.
Úmido, sobre a pedra morna do remanso,
O sol não o distingue dos pequenos répteis friorentos;
Ou sobre o trampolim, voltado à simples profundidade do céu,
Um gosto de cloro nos lábios, um galo vesperal em seus ouvidos,
Pressente em círculos efêmeros encadear-se o momento
Indivisível, como um livro de gravuras ao contrário.
Com está longe e tão perto o momento à beira do lago,
Quando poderá passear sob as ramagens, pensando
Que sua vida não é ponto imóvel no tempo
Mas luz que se desloca em cintilações diferentes,
Recompondo o ontem no amanhã, e o amanhã num agora intenso,
Associando sem dissenção, os aviões, os alcantilados,
E o mendigo que costura a sua roupa no vão de um esgoto.
De arco e tocadeira ou rolando um pneu sobre o passeio,
Ele retorna à casa, no momento da luz aglutinada,
Quando, empurrando de volta a carrocinha de sorvete,
Um homem de pescoço de girafa olha vidrado acima do horizonte.
As cidades acabam no aclive da montanha ou na linha do oceano,
Mas, ao escurecer, um bote ganha o mar alto contra o vento,
E na montanha, a meio caminho das casas e da toca do morcego,
Um homem chamado Arquimedes ou Estêvão ou Morandi
Rodeou o seu mundo de cedros altos e mastins.
O menino artista ama somente o que sabe.
Divergentes são seus caminhos de ida e de volta
Sobre o muro que se ramifica, reunindo e apartando as famílias:
Este limite entre as criaturas é a sua propriedade,
De onde pode ver cada quintal, de cor e alma diferentes,
Para contar no momento oportuno o que se passa no mundo.
Perdoa-lhe a natureza de espião, indispensável
À causa da poesia. E o perdoa ainda
Se escuta às portas, destampa os frascos de perfume,
Prova a terra, fuma restos de cigarro, espetala as flores,
Se vasculha as gavetas e velhas canastras,
Se desafina o piano, queima as mãos no fogo,
Se sempre reinventa o seu inferno exuberante,
Se bebe sangue ou fere a própria carne,
Se tem a idéia de saber se é possível viver sem respirar.
Grimpando aos últimos galhos da mangueira,
Despencando-se dos andaimes duma casa em construção,
Escondendo-se na cripta fresca duma torre,
O menino cumpre a sua missão de artista,
Antes de dormir. Antes de atravessar o espelho
Deformante do sono, onde prossegue o seu trabalho.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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