domingo, junho 03, 2007

Para Adélia Prado, escrever é uma religião. E diante da natureza que não esborda de Deus, ela se pergunta: Mas eu o que sou?


As palavras e os nomes


Me atordoam da mesma forma os místicos
e as lojas de roupa com seus preços.
O dente apodrece
sem que eu levante um dedo para salvá-lo,
já que escolhi o medo como meu deus e senhor.
Tem pó demais na prateleira dos livros
e livros em demasia
e cartas cheias de si me atravancando o caminho:
'Escrever para mim é uma religião'
Os escritores são insuportáveis,
menos os sagrados,
os que terminam assim as suas falas:
'Oráculo do Senhor'.
Eu fico paralisada
porque desejo a posse desse fogo
e a roupa de talhe certo,
com tecidos de além-mar.
Ai, nunca vou fazer 'cantar d'amigo'.
No entanto, como se eu fora galega,
na minh'alma arrulham pombas,
tem beirais, tem manhãzinhas,
costureirinhas, pardais.
Meu nome agora é nenhum,
diverso dos muitos nomes
que se incrustaram no meu,
Délia, Adel,Élia e Lia
e para desgraça minha
ainda Leda, Lea, Dália
Eda, Ieda e ainda Aia.
O melhor!
Aia, a criada de dama nobre,
a dama de companhia,
a que tem por ofício
anotar no papel a vida
espiar pela fresta
a ama gozando com o rei.
Borboleta, esta grafia,
este som é um erro
e os erros me interessam,
sacrifico as aranhas para saber de onde vêem.
A natureza obedece e é feliz,
a natureza só faz sua própria vontade,
não esborda de Deus.
Mas eu o que sou?

Adélia Prado

Mais sobre Adélia Prado em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado

Nenhum comentário: