quinta-feira, junho 07, 2007
Em sua antiode contra a poesia dita profunda, João Cabral de Melo nos ensina que a palavra flor é o verso inscrito no verso, como as manhãs no tempo.
Antiode
(contra a poesia dita profunda)
A
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu-
melos) no úmido
calor da nossa boca.
Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie
extinta de dor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro.)
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
suas intestinações.
Esperava as puras,
transparentes florações,
nascidas do ar, no ar,
como as brisas.
B
Depois, eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(Pelas vossas iguais
circunstâncias? Vossas
gentis substâncias? Vossas
doces carnações? Pelos
virtuosos vergéis
de vossas evocações?
Pelo pudor do verso
- pudor de flor -
por seu tão delicado
pudor de flor,
que só se abre
quando a esquece o
sono do jardineiro?)
Depois eu descobriria
que era lícito
te chamar: flor!
(flor, imagem de
duas pontas, como
uma corda). Depois
eu descobriria
as duas pontas
da flor; as duas
bocas da imagem
da flor: a boca
que come o defunto
e a boca que orna
o defunto com outro
defunto, com flores,
- cristais de vômito.
C
Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos?
(Ao ar de águas
mortas, injetando
na carne do dia
a infecção da noite.)
Fome de vida? Fome
de morte, frequentação
da morte, como de
algum cinema.
O dia? Árido.
Venha, então a noite,
o sono. Venha,
por isso, a flor.
Venha, mais fácil e
portátil na memória
o poema, flor no
colete da lembrança.
Como não invocar,
sobretudo, o exercício
do poema, sua prática,
sua lânguida horti-
cultura? Pois estações
há, do poema, como
da flor, ou como
no amor dos cães;
e mil mornos
enxertos, mil maneiras
de excitar negros
êxtases: e a morna
espera de que se
apodreça em poema
prévia exalação
da alma defunta.
D
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis.)
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
Flor é o salto
da ave para o vôo;
o salto fora do sono
quando seu tecido
se rompe; é uma explosão
posta a funcionar,
como uma máquina,
uma jarra de flores.
E
Poesia, te escrevo
agora: fezes, as
fezes vivas que és,
Sei que outras
palavras és, palavras
impossíveis de poema.
Te escrevo, por isso,
fezes, palavra leve,
contando com sua
breve. Te escrevo
cuspe, cuspe, não
mais; tão cuspe
como a terceira
(como usá-la num
poema?) a terceira
das virtudes teologais.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
Mais sobre João Cabral de Melo Neto em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Cabral_de_Melo_Neto
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