sexta-feira, agosto 31, 2012
Homero Icaza Sánchez gravou a figura daquela mulher em uma gota de água. E lançou a gota de água num pequenino arroio, o arroio foi rolando, perdeu-se num rio e o rio entrou no mar.
Gota de água
Gravei tua figura
Em uma gota de água
Lancei a gota de água
Num pequenino arroio
O arroio foi rolando
E perdeu-se num rio
O rio entrou no mar
Depois te fui buscar
E te achei dividida
Teus cabelos ficaram
Numa curva do rio
Teus braços chamavam
Feitos ramos de uma árvore
As pernas completaram
Um corpo de sereia
Que ansiava ser mulher
De teu tronco nasceram
Algas e caracóis
Achei teus olhos garços
Em uma madrepérola
Teu vário coração
Um peixezinho de ouro
Alimentou-se dele
(Hoje no mar é rei
Por tão feliz façanha).
Como estou sem teus beijos
- A um tempo mel e sal -
Bebo a água do rio
Bebo a água do mar.
(Tradução de Manuel Bandeira)
Homero Icaza Sánchez
(1925-2011)
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quinta-feira, agosto 30, 2012
Italianos joviais, húngaros de olhos de leopardo, bolchevistas da Ucrânia, polacos de Wrangel, nipões jaldes como gnomos talhados em âmbar e caboclos do Tietê arrastando o caipira. Lá do alto, Menotti del Picchia viu eles erguerem a Torre de Babel.
Torre de Babel
Eles ergueram a Torre de Babel.
bem na Praça Antônio Prado.
O esqueleto de aço cobriu-se de carne de cimento
e as vigas e guindastes
eram braços agarrando estrelas
para industrializá-las em anúncios comerciais.
Italianos joviais,
húngaros de olhos de leopardo,
caboclos de Tietê arrastando o caipira,
bolchevistas da Ucrânia,
polacos de Wrangel,
nipões jaldes como gnomos nanicos talhados em âmbar
entre as pragas dos contramestres,
os rangidos das tábuas do andaime,
o estridor metálico
das vigas de aço e dos martelos sonoros,
no céu libérrimo de S.Paulo,
fizeram a confusão das línguas,
sem perturbar a geometria rigorosa
do ciclópico arranha-céu!
Lá do alto, o paulista,
bandeirante das nuvens,
mirou o prodígio da Cidade alucinada:
uma casa de três andares
pôs-se a crescer bruscamente
como nos romances de Wells;
outra apontou a cabeça atropelada de caibros
acima do viaduto do Chá;
e começou a desabada carreira
do páreo do azul.
O formidável arranha-céu
com a cabeça nas nuvens
abrigou no seu ventre de concreto
o drama da nova civilização.
Onde estás, meu seráfico Anchieta,
erguendo com o barro de Piratininga,
pelo milagre da tua persuasão,
as paredes rasteiras do Colégio?
Menotti del Picchia
(1892-1988)
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quarta-feira, agosto 29, 2012
Vem a onda de longe, e foi um espasmo, vem o salto na pedra, outro grito. Depois a água azul desvenda as milhas, no encanto de José Saramago.
Água azul
Altos segredos escondem dentro de água
O reverso da carne, corpo ainda.
Como um punho fechado ou um bastão,
Abro o líquido azul, a espuma branca,
E por fundos de areia e madrepérola,
Desço o véu sobre os olhos assombrados.
(Na medida do gesto, a largueza do mar
E a concha do suspiro que se enrola.)
Vem a onda de longe, e foi um espasmo,
Vem o salto na pedra, outro grito:
Depois a água azul desvenda as milhas,
Enquanto um longo, e longo, e branco peixe
Desce ao fundo do mar onde nascem as ilhas.
José Saramago
(1922-2010)
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terça-feira, agosto 28, 2012
Não oiças o rouxinol ou a cotovia, lembra Eugénio de Andrade. Porque é dentro de ti que toda a música é ave.
Encostas a face
Encostas a face à melancolia e nem sequer
ouves o rouxinol. Ou a cotovia?
Suportas mal o ar, dividido
entre a fidelidade que deves
à terra de tua mãe e ao quase branco
azul onde a ave se perde.
A música, chamemos-lhe assim,
foi sempre a tua ferida, mas também
foi sobre as dunas a exaltação.
Não oiças o rouxinol. Ou a cotovia.
É dentro de ti
que toda a música é ave.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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segunda-feira, agosto 27, 2012
É como se fosse uma guerra, diz Leminski. Onde o mau cabrito briga e o bom cabrito não berra.
Travelling life
é como se fosse uma guerra
onde o mau cabrito briga
e o bom cabrito não berra
é como se fosse uma terra
estrangeira até para ela
como se fosse uma tela
onde cada filme que passa
toda a imagem congela
é como se fosse a fera
que a cada dia que roda e rola
mais e mais se revela
Paulo Leminski
(1944-1989)
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domingo, agosto 26, 2012
Adélia Prado diz que estão equivocados os teólogos quando descrevem Deus em seus tratados. Ele vai nascer de novo para resgatá-la, diz em seus versos.
A cicatriz
Estão equivocados os teólogos
quando descrevem Deus em seus tratados.
Esperai por mim que vou ser apontada
como aquela que fez o irreparável.
Deus vai nascer de novo para me resgatar.
Me mata, Jonathan, com sua faca,
me livra do cativeiro do tempo.
Quero entender suas unhas,
o plano não se fixa, sua cara desaparece.
Eu amo o tempo porque amo este inferno,
este amor doloroso que precisa do corpo,
da proteção de Deus para dizer-se
nesta tarde infestada de pedestres.
Ter um corpo é como fazer poemas,
pisar margem de abismos,
eu te amo.
Seu relógio,
incongruente como meus sapatos,
uma cruz gozosa, ó Felix Culpa!
Adélia Prado
(1936)
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sexta-feira, agosto 24, 2012
Mulher, por que te alimentas de mim desde o princípio? Ah, quando descerá sobre mim a paz antiga, pergunta com tristeza Murilo Mendes.
Mulher
Mulher, o mais terrível e vivo dos espectros,
Por que te alimentas de mim desde o princípio?
Em ti encontro as imagens da criação:
És pássaro, és flor, pedra e onda variável...
Mais que tudo, a nuvem que volta e se consome.
Dormir, sonhar - que adianta, se tu existes?
Se fostes forma somente! és idéia também.
Ah, quando descerá sobre mim a paz antiga.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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quarta-feira, agosto 22, 2012
A meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal, por Sophia de Mello Breyner. E que ninguém repita o seu nome proibido.
Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal
Nunca mais
A tua face será pura, limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem possa viver
Sempre.
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória, a luz e o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei Senhor que possa morrer.
Aquele que partiu
Precedendo os próprios passos como um jovem morto
Deixou-nos a esperança.
Ele não ficou para conosco
Destruir com amargas mãos seu próprio rosto.
Intacta é a sua ausência
Como a estátua de um deus
Pouapada pelos invasores de uma cidade em ruínas.
Ele não ficou para assistir
 morte da verdade e à vitória do tempo.
Que ao longe,
Na mais longínqua praia,
Onde só haja espuma, sal e vento,
Ele se perca, tendo-se cumprido
Segundo a lei do seu próprio pensamento.
E que ninguém repita o seu nome proibido.
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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terça-feira, agosto 21, 2012
Ninhuém habita Thiago de Mello. A não ser o milagre da matéria e o mistério da memória.
Ninguém me habita
Ninguém me habita. A não ser
o milagre da matéria
que me faz capaz de amor,
e o mistério da memória
que urde o tempo em meus neurônios,
para que eu, vivendo agora,
possa merecer na outrora.
Ninguém me habita. Sozinho,
resvalo pelos declives
onde me esperam, me chamam
(meu ser me diz se as atendo)
feiúras que me fascinam,
belezas que me endoidecem.
Thiago de Mello
(1921)
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segunda-feira, agosto 20, 2012
Manuel Maria Barbosa du Bocage procura na razão a cura para os males do amor. E pergunta: quantas vezes, Amor, me tens ferido, e quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!
Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até regia a mão do fado,
Onde o Sol, bem de todos, lhe é vedado,
Depois com ferros vis se vê cingido:
Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo da existência à morte!
Travam-se gosto, e dor; sossego e lida;
É lei da natureza, é lei da sorte,
Que seja o mal e o bem matiz da vida.
Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805)
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domingo, agosto 19, 2012
Fernando Pessoa confessa que só pensar em dizer "amo-te", só isto, o angustia. E ao dizer que o amor causa-lhe horror talvez ele tenha revelado, mais do que em qualquer outro poema, o seu real sentimento.
O amor causa-me horror
O amor causa-me horror; é abandono,
Intimidade...
Não sei ser inconsciente
E tenho para tudo (...)
A consciência, o pensamento aberto
Tornando-o impossível.
E eu tenho do alto orgulho a timidez
E sinto horror a abrir o ser a alguém,
A confiar nalguém. Horror eu sinto
A que perscrute alguém, ou levemente
Ou não, quaisquer recantos do meu ser.
Abandonar-me em braços nus e belos
(Inda que deles o amor viesse)
No conceber do todo me horroriza;
Seria violar meu ser profundo,
Aproximar-me muito de outros homens.
Uma nudez qualquer - espírito ou corpo -
Horroriza-me: acostumei-me cedo
Nos despimentos do meu ser
A fixar olhos pudicos, conscientes
Do mais. Pensar em dizer - "amo-te"
E "amo-te" só - só isto, me angustia.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sexta-feira, agosto 17, 2012
A última ilusão de Mário de Sá-Carneiro foi partir os espelhos. Então, ele mesmo foi trancar todas as portas e fechou-se a bronze eterno em seus salões ruídos.
O resgate
A última ilusão foi partir os espelhos -
E nas salas ducais, os frisos de esculturas
Desfizeram-se em pó...Todas as bordaduras
Caíram de repente aos reposteiros velhos.
Atônito, parei na grande escadaria
Olhando as destroçadas, imperiais riquezas...
Dos lustres de cristal - as velas d'ouro, acesas,
Quebravam-se também sobre a tapeçaria...
Rasgavam-se cetins, abatiam-se escudos,
Estalavam de cor os grifos dos ornatos.
Pelas molduras d'honra, os lendários retratos
Sumiam-se de medo, a roçagar veludos...
Doido! Trazer ali os meus desdéns crispados!
Tectos e frescos, pouco a pouco, enegreciam;
Panos de Arrás do que não-Fui emurcheciam -
Velavam-se os brasões, subitamente errados...
Então, eu mesmo fui trancar todas as portas;
Fechei-me a Bronze eterno em meus salões ruídos...
- Se arranho o meu despeito entre vidros partidos,
Estilizei em Mim as douraduras mortas!
Mário de Sá Carneiro
(1890-1916)
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quinta-feira, agosto 16, 2012
Ferreira Gullar sabe que o que se foi se foi e, se volta, é feito morte. Então, pergunta o poeta, por que me faz o coração bater tão forte?
O que se foi
O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.
Se o que foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.
Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.
Então por que me faz
o coração bater tão forte?
Ferreira Gullar
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quarta-feira, agosto 15, 2012
Ao seu amor, Paulo Mendes Campos diz que três coisas não consegue entender. O tempo, a morte, teu olhar.
Três coisas
Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar
O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido
Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar
O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?
Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
De teu olhar
O tempo levanta o muro.
A morte será o escuro?
Em teu olhar me procuro.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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segunda-feira, agosto 13, 2012
Para Manoel de Barros, sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica. Sábio é o menino que inventou a primeira lagartixa.
A gente se negava corromper-se aos bons costumes
A gente se negava corromper-se aos bons costumes.
A gente examinava a racha dura das lagartixas
Só para brincar de ciência.
A gente grosava a peça dos morcegos com o
lado cego das facas
Só para vê-los chiar com mais entusiasmo.
Fazíamos meninagem com as priminhas à
sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais
Só de homenagem ao nosso Casemiro de Abreu.
Não era mister de ser versado em Kant pra se
saber que os passarinhos da mesma plumagem
voam juntos.
Nem era preciso ser versado em Darwin pra se
saber que os carrapichos não pregam no vento.
Que, apois:
Sábio não é o homem que inventou a primeira bomba atômica.
Sábio é o menino que inventou a primeira
lagartixa.
Manoel de Barros
(1916)
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domingo, agosto 12, 2012
Carlos Drummond de Andrade é um homem livre mas leva com ele uma coisa. Uma coisa que ele não sabe o que é.
Carrego comigo
Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho.
Serão duas cartas?
será uma flor?
será um retrato?
um lenço talvez?
Já não me recordo
onde o encontrei.
Se foi um presente
ou se foi furtado.
Se os anjos desceram
trazendo-o nas mãos,
se boiava no rio,
se pairava no ar.
Não ouso entreabri-lo.
Que coisa contém
ou se algo contém,
nunca saberei.
Como poderia
tentar este gesto?
O embrulho é tão frio
e também tão quente.
Ele arde nas mãos,
é doce ao meu tato.
Pronto me fascina
e me deixa triste.
Guardar um segredo
em si e consigo,
não querer sabê-lo
ou querer demais.
Guardar um segredo
de seus próprios olhos,
por baixo do sono,
atrás da lembrança.
A boca experiente
saúda os amigos.
Mão aperta mão,
peito se dilata.
Vem do mar o apelo,
vêm das coisas gritos.
O mundo te chama:
Carlos! Não respondes?
Quero responder.
A rua infinita
vai além do mar.
Quero caminhar.
Mas o embrulho pesa.
Vem a tentação
de jogá-lo ao fundo
da primeira vala.
Ou talvez queimá-lo:
cinzas se dispersam
e não fica sombra
sequer, nem remorso.
Ai, fardo sutil
que antes me carregas
do que és carregado,
para onde me levas?
Por que não me dizes
a palavra dura
oculta em teu seio,
carga intolerável?
Seguir-te submisso
por tanto caminho
sem saber de ti
senão que te sigo.
Se agora te abrisses
e te revelasses
mesmo em forma de erro,
que alívio seria!
Mas ficas fechado.
Carrego-te à noite
se vou para o baile.
De manhã te levo
para a escura fábrica
de negro subúrbio.
És, de fato, amigo
secreto e evidente.
Perder-te seria
perder-me a mim próprio.
Sou um homem livre
mas levo uma coisa.
Não sei o que seja.
Eu não o escolhi.
Jamais a fitei.
Mas levo uma coisa.
Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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quarta-feira, agosto 08, 2012
O amor de Oswald de Andrade lhe ensinou a ser simples como um largo de igreja. Onde nem há nem um sino, nem um lápis, nem uma sensualidade.
Ditirambo
Meu amor me ensinou a ser simples
Como um largo de igreja
Onde nem há nem um sino
Nem um lápis
Nem uma sensualidade
Oswald de Andrade
(1890-1954)
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terça-feira, agosto 07, 2012
Mais alto sim, mais alto! Onde couber o mal da vida dentro dos meus braços, dos meus divinos braços de Mulher, no desespero de Florbela Espanca.
Mais alto
Mais alto, sim! mais alto, mais além
Do sonho, onde morar a dor da vida,
Até sair de mim! Ser a Perdida,
A que não se encontra! Aquela a quem
O mundo não conhece por Alguém!
Ser orgulho, ser águia na subida,
Até chegar a ser, entontecida,
Aquela que sonhou o meu desdém!
Mais alto, sim! Mais alto! A Intangível!
Turris Ebúrnea erguida nos espaços,
À rutilante luz dum impossível!
Mais alto sim! Mais alto! Onde couber
O mal da vida dentro dos meus braços,
Dos meus divinos braços de Mulher!
Florbela Espanca
(1894-1930)
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domingo, agosto 05, 2012
Beber, beber um grande copo de tuas lágrimas até cair no chão. Foi assim que Murilo Mendes escreveu um poema descolocado.
Poema descolocado
1
Ninguém sabe onde terminam
Os caminhos de incêndio
Em que é gostoso dormir.
Perdi-me no labirinto
Para melhor me encontrar.
Os destroços do céu
Desabam sobre mim tremor de pensamento.
2
Beber
Beber um grande copo de tuas lágrimas
Até cair no chão.
Morrer para despistar,
Morrer pelo imprevisto
Pela dama que se apagou.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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Murilo Mendes
sexta-feira, agosto 03, 2012
Sim, todos os poemas são de amor. Nos versos de Alice Ruiz, até na hora em que a vida vira palavra.
Sim
Sim.
Todos os poemas
São de amor
Pela rima,
Pelo ritmo,
Pelo brilho
Ou por alguém,
Alguma coisa
Que passava
Na hora
Em que a vida
Virava palavra.
Alice Ruiz
(1946 )
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quinta-feira, agosto 02, 2012
Tudo o que Leminski faz alguém nele que o poeta despreza sempre acha o máximo. Não dá mais para mudar nada, já é um clássico.
Tudo
Tudo o que eu faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo.
Mal rabisco,
não dá mais para mudar nada.
Já é um clássico.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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quarta-feira, agosto 01, 2012
Para Cassiano Ricardo, o dia é geográfico e a noite é universal. Mas se Deus ouvir rádio, o poeta quer saber a resposta para o seu grito: por que a noite nos une e o dia nos separa?
Coroa mural
Muro que hoje separa
os homens
em passado e futuro,
que divide, agora,
o coração em dois: em oriente
e ocidente.
Divide o sol em dois:
em dois mistérios.
Divide o mundo em dois:
em dois hemisférios.
Ou em dois cemitérios?
No labirinto
do desentendimento humano
o anjo rebelde
se debate em busca
de uma saída.
E ao mesmo tempo, é expulso
de uma cor para outra,
deixando os pés escritos
em areia e neve,
na rude geografia
das injustiças.
(Só a dor e as estrelas
são universais).
Mas como destruí-lo?
Com as velhas trombetas
de Jericó,
já douradas de pó?
Recolocando, no ar,
em seu lugar, agora
o novo arco celeste
de uma ponte pênsil?
Ou com a lira em flor
que Anfião tocou em Tebas?
Anfião, a quem possam
as pedras transformar-se,
de novo, em pássaros?
Ou com o sol de hidrogênio
e só pelo consolo
de morrermos, todos,
todos, ao mesmo tempo -
e, assim, um ser irmão
do outro, por prêmio?
Ah! o herói obscuro
a quem - todos - pudéssemos,
os que sofremos dentro
e fora do muro:
de um só mal, todos presa,
ofertar, toda em ouro,
a coroa mural.
Igual à que os romanos,
num afresco antigo,
estão oferecendo,
sob um céu de turquesa,
ao primeiro soldado
que escalou a muralha
de uma fortaleza.
O dia é geográfico.
A noite é universal.
Mas, se Deus ouvir rádio,
esteja onde estiver,
ouvirá o meu grito:
por que a noite nos une
e o dia nos separa?
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
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e só pelo consolo
de morrermos, todos,
todos, ao mesmo tempo -
e, assim, um ser irmão
do outro, por prêmio?
Ah! o herói obscuro
a quem - todos - pudéssemos,
os que sofremos dentro
e fora do muro:
de um só mal, todos presa,
ofertar, toda em ouro,
a coroa mural.
Igual à que os romanos,
num afresco antigo,
estão oferecendo,
sob um céu de turquesa,
ao primeiro soldado
que escalou a muralha
de uma fortaleza.
O dia é geográfico.
A noite é universal.
Mas, se Deus ouvir rádio,
esteja onde estiver,
ouvirá o meu grito:
por que a noite nos une
e o dia nos separa?
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
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