sexta-feira, abril 30, 2010
A uma carta pluma só se responde com alguma resposta nenhuma. Uma coisa complexa, assim como essa história que se chama eu e você, diz Paulo Leminski.
A uma carta pluma
a uma carta pluma
só se responde
com alguma resposta nenhuma
algo assim como se a onda
não acabasse em espuma
assim algo como se amar
fosse mais do que bruma
uma coisa assim complexa
como se um dia de chuva
fosse uma sombrinha aberta
como se, ai, como se,
de quantos como se
se faz essa história
que se chama eu e você
Paulo Leminski
(1944-1989)
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quinta-feira, abril 29, 2010
A natureza nos separou, somente o sobrenatural poderá nos unir. O amor sem consolo de Murilo Mendes por sua Berenice.
O amor sem consolo
Não quero me livrar de ti
Só não te perdôo porque não me dás a amargura absoluta
Não tens o poder de me extinguir com um gesto, um olhar
E a minha esperança e o meu desespero
Não estão fundados em ti.
Antes de eu te conhecer Deus já me havia marcado
Não és meu punhal nem meu bálsamo
Não sou mais que um rejeitado de Deus, de ti - e de mim.
Talvez eu ame em ti o que tens parecido comigo.
Berenice, Berenice,
Existes realmente? És uma criação da minha insônia, da minha febre,
Ou a criadora da minha insônia, da minha febre?
Berenice, Berenice,
Por que não terminas tua crueldade, dando-me a palavra de vida,
Ou por que não começas tua ternura, impelindo-me ao suicídio?
Minha amiga cruel e necessária, Berenice,
Deixa-me descansar a cabeça no teu seio
E sonhar um instante que não existo,
Que não existes, que não existe Deus,
Nem o mundo, nem o demônio, nem a vida, nem a morte.
Eu te acompanho em teus anseios e em teu tédio.
Eu te olho com o olhar de quem herdou a solidão
Porque nunca estás em mim e comigo.
A natureza nos separou
Somente o sobrenatural poderá nos unir.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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A Esperança sem risco, segundo Dom Hélder Câmara.
Esperança sem risco
Esperança sem risco
não é esperança...
Esperança é crer na aventura do Amor,
jogar nos homens,
pular no escuro,
confiando em Deus.
Dom Hélder Câmara
(1909-1999)
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quarta-feira, abril 28, 2010
Depois de ler este poema, é fácil entender porque Manuel Bandeira é considerado um dos maiores poetas brasileiros. Mas se tivesse sido publicitário...
Dois anúncios
I - Rondó de efeito
Olhei para ela com toda a força.
Disse que ela era boa.
Que ela era gostosa,
Que ela era bonita pra burro:
Não fez efeito.
Virei pirata:
Dei em cima dela de todas as maneiras,
Utilizei o bonde, o automóvel, o passeio a pé,
Falei de macumba, ofereci pó...
À toa: não fez efeito.
Então banquei o sentimental:
Fiquei com olheiras,
Ajoelhei,
Chorei,
Me rasguei todo,
Fiz versinhos,
Cantei as modinhas mais tristes do repertório do Nôzinho.
Escrevi cartinhas e pra acertar a mão, li Elvira a Morta Virgem,
romance primoroso e por tal forma comovente que ninguém pode lê-lo
sem derramar copiosas lágrimas...
Perdi meu tempo: não fez efeito.
Meu Deus que mulher durinha!
Foi um buraco na minha vida.
Mas eu mato ela na cabeça:
Vou lhe mandar uma caixinha de Minorativas,
Pastilhas purgativas:
É impossível que não faça efeito!
II - Colóquio sentimental
- Não faça assim bichinho. O Segredo da Beleza diz: "Certo, um lindo seio
apontando orgulhosamente o céu, é coisa rara. Mas a culpa cabe muitas vezes
às próprias mulheres. Não cuidam deles. Deixam-nos magoar por dedos estouvados,
esses belos frutos tão frágeis".
- Não tenha receio, meu coração. Farei massagens, como manda o livro. Com muita
leveza, em sentido circular...começando pela implantação e acabando nas pontas...
- Com creme de pétala de rosas?
- Com creme de pétala de rosas...
- E ficarão firmes?
- Ora se!
- Como o Pão de Açúcar?...
- Como a Sul-América!
Manuel Bandeira
(1885-1968)
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Em sua canção para poder viver, Cassiano Ricardo dá tudo de si para aquela mulher. E ela sempre lhe exige bis, "ao palco".
Canção para poder viver
Dou-lhe tudo do que como,
e ela me exige o último gomo.
Dou-lhe a roupa com que me visto
e ela me interroga: só isto?
Se ela se fere num espinho,
O meu sangue é que é o seu vinho.
Se ela tem sede eu é que choro,
no deserto, para lhe dar água:
E ela mata a sua sede,
já no copo de minha mágoa
Dou-lhe o meu canto louco; faço
um pouco mais do que ser louco.
E ela me exige bis, "ao palco"!
Cassiano Ricardo
(1895-1974)
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terça-feira, abril 27, 2010
Mario Quintana diz que há um grande silêncio que está sempre à escuta. E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, o silêncio escuta e cala.
Silêncio
Há um grande silêncio que está sempre à escuta.
E a gente se põe a dizer inquietamente qualquer coisa,
qualquer coisa, seja o que for,
desde a corriqueira dúvida sobre se chove ou não chove hoje
até a tua dúvida metafísica, Hamleto!
E, por todo o sempre, enquanto a gente fala, fala, fala
o silêncio escuta...
e cala.
Mario Quintana
(1906-1994)
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Se a Laura dos seus loucos desvarios fosse menos soberba e menos fria, Cesário Verde jura que nunca mais sentaria às mesas espelhentas do Martinho.
Arrojos
Se a minha amada um longo olhar me desse
Dos seus olhos que ferem como espadas,
Eu domaria o mar que se enfurece
E escalaria as nuvens rendilhadas.
Se ela deixasse, extático e suspenso
Tomar-lhe as mãos “mignonnes” (1) e aquecê-las,
Eu com um sopro enorme, um sopro imenso
Apagaria o lume das estrelas.
Se aquela que amo mais que a luz do dia,
Me aniquilasse os males taciturnos,
O brilho dos meus olhos venceria
O clarão dos relâmpagos nocturnos.
Se ela quisesse amar, no azul do espaço,
Casando as suas penas com as minhas,
Eu desfaria o Sol como desfaço
As bolas de sabão das criancinhas.
Se a Laura dos meus loucos desvarios
Fosse menos soberba e menos fria,
Eu pararia o curso aos grandes rios
E a terra sob os pés abalaria.
Se aquela por quem já não tenho risos
Me concedesse apenas dois abraços,
Eu subiria aos róseos paraísos
E a Lua afogaria nos meus braços.
Se ela ouvisse os meus cantos moribundos
E os lamentos das cítaras estranhas,
Eu ergueria os vales mais profundos
E abateria as sólidas montanhas.
E se aquela visão da fantasia
Me estreitasse ao peito alvo como arminho,
Eu nunca, nunca mais me sentaria
Às mesas espelhentas do Martinho.
Cesário Verde
(1855-1886)
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segunda-feira, abril 26, 2010
Ainda que mal tudo isso, ainda assim te pergunto e me queimando em teu seio me salvo e me dano: amor. De Carlos Drummond de Andrade, com muito amor.
Ainda que mal
Ainda que mal pergunte,
ainda que mal respondas;
ainda que mal te entenda,
ainda que mal repitas;
ainda que mal insista,
ainda que mal desculpes;
ainda que mal me exprima,
ainda que mal me julgues;
ainda que mal me mostre,
ainda que mal me vejas;
ainda que mal te encare,
ainda que mal te furtes;
ainda que mal te siga,
ainda que mal te voltes;
ainda que mal te ame,
ainda que mal o saibas;
ainda que mal te agarre,
ainda que mal te mates;
ainda assim te pergunto
e me queimando em teu seio
me salvo e me dano: amor.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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Não acabarão com o amor. E faço o juramento: amo firme, fiel e verdadeiramente, garante Mayakovsky em versos.
Dedução
Não acabarão com o amor,
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo firme,
fiel
e verdadeiramente.
nem as rusgas,
nem a distância.
Está provado,
pensado,
verificado.
Aqui levanto solene
minha estrofe de mil dedos
e faço o juramento:
Amo firme,
fiel
e verdadeiramente.
Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)
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domingo, abril 25, 2010
Álvaro de Campos gostava de gostar de gostar um momento. Até mesmo uma conversa sobre o desenvolvimento da metafísica de Kant a Hegel.
Gostava de gostar de gostar
Gostava de gostar de gostar
Um momento...Dá-me de ali um cigarro,
Do maço em cima da mesa de cabeceira.
Continua...Dizias
Que no desenvolvimento da metafísica
De Kant a Hegel
Alguma coisa se perdeu.
Concordo em absoluto.
Estive realmente a ouvir.
Nondum amabam et amare amabam (Santo Agostinho).
Que coisa curiosa estas associações de idéias!
Estou fatigado de estar pensando em sentir outra coisa.
Obrigado. Deixa-me acender. Continua, Hegel...
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Con
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Alvaro de Campos
sábado, abril 24, 2010
No retraimento obsceno de um membro que emurchece, a prostituta deveria chorar as lágrimas todas de seus olhos. É o que diz Paulo Mendes Campos.
A prostituta
Quando a noite pare em sangue a madrugada
As constelações se desorganizam
As nuvens se encapelam
Quando os guindastes do porto se espreguiçam
Os muros do fortim alvejam
O caçador submarino já pode olhar nos olhos
O mero adormecido
Quando a fome come a criança da colina suja
Os bichos humanos chegam à lavoura farejando a névoa
Os passageiros do ar visitam a lua nova
O seringueiro não sorri
O porco não sorri
Não sorri não sabe rir nunca soube rir
Como não sabe rir a formiga
O pedregulho
O mendigo
O bode rupestre da falésia aguilhoada
Quando a noite se encerra e há uma pausa
O membro do marido emurchece no lençol
Quando o Nilo estende as suas barbas velhas ao sol
Quando o Rio Amarelo silenciosamente dá as cartas
O Don abre seus braços aos trigais
O Amazonas apodrece
Quando o riacho acorda o homem descalço
Quando o rio todos os rios vão recuperando a memória
E contam sussurrando
A história do mastim do lorde
O chicote do dono
A botina do polícia
O gancho do corsário
O milionário tumefato com uma luz no ventre
A metamorfose do chacal
Quando os rios se recordam
E vão contando
Sussurrando
Conspirando
Enlaçando as cidades frias e cálidas
Enlaçando os campos
Como no tempo de faraós possessos que uivavam
Dos profetas de longas barbas sujas
Como no tempo dos cantochões do convento
Do archote ao pé do cadafalso
Milhões de homens milhões de batalhas milhões de febres
Milhões
Milhões de ratazanas históricas
De escravos
De crucificados
É quando
O rio se lembra com dificuldade
(Ela que foi pura)
E vai cuspindo restos de lágrimas e lama
E se envergonha e quer morrer
É quando a prostituta se entreabre sobre a cama
E se fecha
Túmida flor que provocasse a náusea
Sentreabrindo
Se fechando
Opaca surda grossa
Na menstruação dolorosa de um grito que se fecha
No retraimento obsceno de um membro que emurchece
Então é quando a prostituta deveria sentar-se à margem do Hudson
E chorar
Chorar as lágrimas todas de seus olhos
De seus ouvidos
De suas narinas
De sua vagina
De suas mãos, de seus pés
Chorar as vezes que não chorou
Chorar o sangue o mênstruo o leite
Chorar como os rios choram sem tempo e surdos
Como o conde Ugolino
As santas estigmatizadas
Chorar como choram os mendigos
Um pranto sujo
Um mênstruo rude
Um leite envenenado.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
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sexta-feira, abril 23, 2010
O auto-retrato falado do poeta Manoel de Barros. Em seu morrer, tem uma dor de árvore.
Auto-retrato falado
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da
Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de
estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 1o livros de poesia; ao publicá-los me
sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de
gado. Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.
Manoel de Barros
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quinta-feira, abril 22, 2010
Quem foi que disse que não vivo satisfeito? Eu danço, diz com satisfação Mário de Andrade.
Quem dirá que não vivo satisfeito! Eu danço!
Dança a poeira no vendaval.
Raios solares balançam na poeira.
Calor saltita pela praça
pressa
apertos
automóveis
bamboleios
Pinchos ariscos de gritos
Bondes sapateando nos trilhos...
A moral não é roupa diária!
Sou bom só nos domingos e dias-santos!
Só nas meias o dia-santo é quotidiano!
Vida
arame
crimes
quidam
cama e pança!
Viva a dança!
Dança viva!
Vivedouro de alegria!
Eu danço.
Mãos e pés, músculos, cérebro...
Muito de indústria me fiz careca,
Dei um salão aos meus pensamentos!
Tudo gira,
Tudo vira,
Tudo salta,
Samba,
Valsa,
Canta,
Ri!
Quem foi que disse que não vivo satisfeito?
EU DANÇO!
Mário de Andrade
(1893-1945)
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quarta-feira, abril 21, 2010
Em honra a todos os brasileiros que deram suas vidas na luta pela liberdade e pela independência do Brasil. Como Joaquim José da Silva Xavier.
Que país é este?
1
Uma coisa é um país
outra um ajuntamento.
Uma coisa é um país,
outra um regimento.
Uma coisa é um país,
outra o confinamento.
Mas já soube datas, guerras, estátuas
usei caderno “Avante”
- e desfilei de tênis para o ditador.
Vinha de um “berço esplêndido” para um
“futuro radioso”
e éramos maiores em tudo
- discursando rios e pretensão.
Uma coisa é um país,
outra um fingimento.
Uma coisa é um país,
outra um monumento
Uma coisa é um país,
outra o aviltamento.
Deveria derribar aflitos mapas sobre a praça
em busca de especiosa raiz? ou deveria
parar de ler jornais
e ler anais
como anal
animal
hiena patética
na merda nacional?
Ou deveria, enfim, jejuar na Torre do Tombo
comendo o que as traças descomem procurando
o Quinto Império, o primeiro portulano, a viciosa
visão do paraíso?
que nos impeliu a errar aqui?
Subo, de joelhos, as escadas dos arquivos
nacionais, como qualquer santo barroco a rebuscar
no mofo dos papiros, no bolor
das pias batismais, no bodum das vestes reais
a ver o que se salvou com o tempo
e ao mesmo tempo
- nos trai
2
Há 500 anos caçamos índios e operários,
Há 500 anos queimamos árvores e hereges,
Há 500 anos estupramos livros e mulheres,
Há 500 anos sugamos negras e aluguéis.
Há 500 anos dizemos:
que o futuro a Deus pertence,
que Deus nasceu na Bahia,
que São Jorge é que é guerreiro,
que do amanhã ninguém sabe,
que conosco ninguém pode,
que quem não pode sacode.
Há 500 anos somos pretos de alma branca,
não somos nada violentos,
quem espera sempre alcança
e quem não chora não mama
ou quem tem padrinho vivo
não morre nunca pagão.
Há 500 anos propalamos:
este é o país do futuro,
antes tarde do que nunca,
mais vale quem Deus ajuda
e a Europa ainda se curva.
Há 500 anos
somos raposas verdes
colhendo uvas com os olhos,
semeamos promessa e vento
com tempestades na boca,
sonhamos a paz na Suécia
com suíças militares,
vendemos siris na estrada
e papagaios em Haia,
senzalamos casas-grandes
e sobradamos mocambos,
bebemos cachaça e brahma
joaquim silvério e derrama,
a polícia nos dispersa
e o futebol nos conclama,
cantamos salve-rainhas
e salve-se quem puder,
pois Jesus Cristo nos mata
num carnaval de mulatas
Este é um país de síndicos em geral,
Este é um país de cínicos em geral,
Este é um país de civis e generais.
Este é o país do descontínuo
onde nada congemina,
e somos índios perdidos
na eletrônica oficina.
Nada nada congemina:
a mão leve do político
com nossa dura rotina,
o salário que nos come
e nossa sede canina,
a esperança que emparedam
e a nossa fé em ruína,
nada nada congemina:
a placidez desses santos
e nossa dor peregrina,
e nesse mundo às avessas
- a cor da noite é obsclara
e a claridez vespertina.
3
Sei que há outras pátrias. Mas
mato o touro nesta Espanha,
planto o lodo neste Nilo,
caço o almoço nesta Zâmbia,
me batizo neste Ganges,
vivo eterno em meu Nepal.
Esta é a rua em que brinquei,
a bola de meia que chutei,
a cabra-cega que encontrei,
o passa-anel que repassei,
a carniça que pulei.
Este é o país que pude
que me deram
e ao que me dei,
e é possível que por ele, imerecido,
- ainda morrerei.
4
Minha geração se fez de terços e rosários:
- um terço se exilou
- um terço se fuzilou
- um terço desesperou
e nessa missa enganosa
- houve sangue e desamor. Por isto,
canto-o-chão mais áspero e cato-me
ao nível da emoção.
Caí de quatro
animal
sem compaixão.
Uma coisa é um país,
outra uma cicatriz.
Uma coisa é um país,
outra é abatida cerviz.
Uma coisa é um país,
outra esses duros perfis.
Deveria eu catar os que sobraram
os que se arrependeram,
os que sobreviveram em suas tocas
e num seminário de erradios ratos
suplicar:
- expliquem-me a mim
e ao meu país?
Vivo no século vinte, sigo para o vinte e um
ainda preso ao dezenove
como um tonto guarani
e aldeado vacum. Sei que daqui a pouco
não haverá mais país.
País:
loucura de quantos generais a cavalo
escalpelando índios nos murais,
queimando caravelas e livros
- nas fogueiras e cais,
homens gordos melosos sorrisos comensais
politicando subúrbios e arando votos
e benesses nos palanques oficiais.
Leio, releio os exegetas.
Quanto mais leio, descreio. Insisto?
Deve ser um mal do século
- se não for um mal de vista.
Já pensei: - é erro meu. Não nasci no
tempo certo.
Em vez de um poeta crente
sou um profeta ateu.
Em vez da epopéia nobre,
os de meu tempo me legam
como tema
- a farsa
e o amargo riso plebeu.
5
Mas sigo o meu trilho. Falo o que sinto
e sinto muito o que falo
- pois morro sempre que calo.
Minha geração se fez de lições mal-aprendidas
- e classes despreparadas
Olhávamos ávidos o calendário. Éramos jovens.
Tínhamos a “história” ao nosso lado. Muitos
maduravam um rubro outubro
outros iam ardendo um torpe agosto.
Mas nem sempre ao verde abril
se segue a flor de maio.
Às vezes se segue o fosso
- e o roer do magro osso.
E o que era revolução outrora
agora pasas à convulsão inglória.
E enquanto ardíamos a derrota como escória
e os vencedores nos palácios espocavam seus
champanhas sobre a aurora
o reprovado aluno aprendia
com quantos paus se faz a derrisória estória.
Convertidos em alvos e presa da real calçada
abriu-se embandeirado
um festival de caça aos pombos
- enquanto raiava sanguínea e fresca a
madrugada.
Os mais afoitos e desesperados
em vez de regressarem como eu
sobre os covardes passos,
e em vez de abrirem suas tendas para a fome dos
desertos,
seguiram no horizonte uma miragem
e logo da luta
passaram ao luto.
Vi-os lubrificando suas armas
e os vi tombados pelas ruas e grutas.
Vi-os arrebatando louros e mulheres
e serem sepultados às ocultas.
Vi-os pisando o palco da tropical tragédia
e por mais que os advertisse do inevitável final
não pude lhes poupar o sangue e o ritual.
Hoje
os que sobraram vivem em escuras
e européias alamedas, em subterrâneos
de saudade, aspirando a um chão-de-
estrelas,
plangendo um violão com seu violado
desejo
a colher flores em suecos cemitérios.
Talvez
todo o país seja apenas um ajuntamento
e o consequente aviltamento
- e uma insolvente cicatriz.
Mas este é o que me deram,
e este é o que eu lamento,
e é neste que espero
- livrar-me do meu tormento.
Meu problema, parece, é mesmo de princípio:
- do prazer e da realidade
- que eu pensava
com o tempo resolver
- mas só agrava com a idade.
Há quem se ajuste
engolindo seu fel com mel.
Eu escrevo o desajuste
vomitando no papel.
6
Mas este é um povo bom
me pedem que repita
como um monge cenobita
enquanto me dão porrada
e me vigiam a escrita.
Sim. Este é um povo bom. Mas isto também
diziam os faraós
enquanto amassavam o barro da carne escrava.
Isso digo toda noite
enquanto me assaltam a casa,
isso digo
aos montes em desalento
enquanto recolho meu sermão ao vento.
Povo. Como cicatrizar nas faces sua imagem perversa e una?
Desconfio muito do povo. O povo, com razão,
- desconfia muito de mim.
Estivemos juntos na praça, na trapaça e na desgraça,
mas ele não me entende
- nem eu posso convertê-lo.
A menos que suba estádios, antenas, montanhas
e com três mentiras eternas
o seduza para além da ordem moral.
Quando cruzamos pelas ruas
não vejo nenhum carinho ou especial predileção nos seus olhos.
Há antes incômoda suspeita. Agarro documentos, embrulhos, família
a prevenir mal-entendidos sangrentos.
Daí vejo as manchetes:
- o poeta que matou o povo
- o povo que só/çobrou ao poeta
- (ou o poeta apesar do povo?)
- Eles não vão te perdoar
- me adverte o exegeta.
Mas como um país não é a soma de rios, leis, nomes de ruas, questionários e geladeiras,
e a cidade do interior não é apenas gás neon, quermesse e fonte luminosa,
uma mulher também não é só capa de revista, bundas e peitos fingindo que é coisa nossa.
Povo
também são os falsários
e não apenas os operários,
povo
também são os sifilíticos
não só atletas e políticos,
povo
são as bichas, putas e artistas
e não só escoteiros
e heróis de falsas lutas,
são as costureiras e dondocas
e os carcereiros
e os que estão nos eitos e docas.
Assim como uma religião não se faz só de missas na matriz,
mas de mártires e esmolas, muito sangue e cicatriz,
a escravidão
para resgatar os ferros de seus ombros
requer
poetas negros que refaçam seus palmares e
quilombos.
Um país não pode ser só a soma
de censuras redondas e quilômetros
quadrados de aventura, e o povo
não é nada novo
- é um ovo
que ora gera e degenera
que pode ser coisa viva
- ou ave torta
depende de quem o põe
- ou quem o gala.
7
Percebo
que não sou um poeta brasileiro. Sequer
um poeta mineiro. Não há fazendas, morros,
casas velhas, barroquismos nos meus versos.
Embora meu pai viesse de Ouro Preto com bandas de música
polícia militar, casos de assombração e uma calma milenar,
embora minha mãe fosse imigrando hortaliças protestantes
tecendo filhos nas fábricas e amassando a fé e o pão,
olho Minas com um amor distante,
como se eu, e não minha mulher
- fosse um poeta etíope.
Fácil não era apenas os tempo das arcádias
entre cupidos e sanfoninhas,
fácil também era ao tempo dos partidos:
- o poeta sabia “história”
vivia em sua “célula”,
o povo era seu hobby e profissão,
o povo era seu cristo e salvação.
O povo, no entanto, é o cão
e o patrão
- o lobo. Ambos são povo.
E o povo sendo ambíguo
é o seu próprio cão e lobo.
Uma coisa é o povo, outra a fome.
Se chamais povo à malta de famintos,
se chamais povo à marcha regular das armas,
se chamais povo aos urros e silvos no esporte popular
então mais amo uma manada de búfalos em Marajó
e diferença já não há
entre as formigas que devastam minha horta
e as hordas de gafanhoto de 1948
- que em carnaval de fome
o próprio povo celebrou.
Povo
não pode ser sempre o coletivo de fome.
Povo
não pode ser um séquito sem nome.
Povo
não pode ser o diminutivo de homem.
O povo, aliás,
deve estar cansado desse nome,
embora seu instinto o leve à agressão
e embora
o aumentativo de fome
possa ser
revolução.
Affonso Romano de Sant'Anna
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Affonso Romano de Sant'Anna
terça-feira, abril 20, 2010
A várzea está vermelhinha de lama e o capinzal virou um brejo podre. Em meio a mosquitada, Guimarães Rosa quer ver as árvores tremendo com a sezão.
Maleita
Não vem mais chuva.
- Xô, rio velho!...
O Pará está desinchando, devagarinho,
está ajuntando a água.
As várzeas estão vermelhinhas de lama,
e o capinzal virou um brejo podre.
- "Vem, Compadre, ver os novilhos nadando no meloso,
e as matrinchãs pastando barro na invernada!..."
- Xô, rio velho!...
- "Vamos pescar, Compadre?...
Ate no fundo do quintal
tem mandis de esporão,
tem timburés, tem cascudos,
tem bagres barrigudos,
e curimatãs.
Acende o pito, Compadre,
que os moçorongos vieram também...
Olha o mosquito rajado!...
Zzzzu!...
Olha o mosquito borrachudo!...
Zuuuum!...
- Xô, riachão!...
O negrinho, dentro do poção,
está pegando piabas com a peneira.
- "Cavaca fundo, Compadre,
que as minhocas vão fugindo terra adentro.
Enrola na folha de inhame.
Traz o anzol de dourado,
bem encastado.
Traz fumo goiano,
e as pílulas de quinino também.
- "Mas não treme tanto, Compadre!...
- Xô, riachão!...
- "Que frio!...que fri-í-io!...
Que mosquitada brava!...
Estou com a sezão dos três dias...
Ei, Compadre, vamos quentar sol naquela pedra?..."
- "Volta pra casa, Compadre, deixa de bater queixo,
vai cortar a febre
com cachaça com limão..."
- "Você também está tremendo?!...
Que frio!...Tudo treme!...
Olha os pernilongos
zunindo dentro dos meus ouvidos!...
Que frio!...
Zzzzu!...Zuuum!...
As traíras estão tremendo nas locas...
Que frio!...Até a água empoçada
está arrepiada...
- "Vamos pra casa, Compadre?..."
- Não, vamos chegar ali na ipueira,
que eu quero ver as árvores
tremendo também com a sezão...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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Guimarães Rosa
Docemente afago, a tua boca apago. E vou negando a minha docemente, nos versos de amor de Maria Teresa Horta.
Docemente
Docemente
disponho dos teus braços
dos peixes que navegam
docemente
Docemente
disponho em minha face
a faca dos teus olhos
docemente.
Docemente
canso, disponho do cansaço
primeiro do teu afago
docemente
Docemente
afago, a tua boca apago
e vou negando a minha
docemente.
Maria Teresa Horta
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segunda-feira, abril 19, 2010
O Paulo Leminski é um cachorro louco que deve ser morto a pau e pedra. Imagine quem disse isso do Leminski?
O Paulo Leminski
O Paulo Leminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filho da puta
de fazer chover
em nosso piquenique
Paulo Leminski
(1944-1989)
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Há mil e cem anos de poesia num só dia. Quando abro o livro do teu corpo, provo mil e cem receitas num só amor, diz Nuno Júdice à mulher da sua vida.
Epigrama gastronómico
Há mil e cem anos
de poesia num só dia,
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha
- quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.
de poesia num só dia,
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha
- quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.
Há mil e cem anos
de poesia num só dia,
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha
- quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.
Nuno Júdice
mil e cem palavras
numa só sílaba,
mil e cem páginas
numa linha
- quando abro o livro
do teu corpo, e provo mil
e cem receitas num só
amor.
Nuno Júdice
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domingo, abril 18, 2010
Vai-se a vida, resta a canção. Não foi uma canção perdida, ficaste no meu coração, diz Cecília Meireles ao seu amor.
Dedicatória
Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.
.................................................
Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: "Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!"
(Qual seria este tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)
Cecília Meireles
(1901-1964)
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sábado, abril 17, 2010
Entre o gozo que aspira e o sofrimento de sua mocidade, Augusto dos Anjos busca no desprezo do trabalho fazer parar a máquina do instinto. E sofre.
Gozo insatisfeito
Entre o gozo que aspiro, e o sofrimento
De minha mocidade, experimento
O mais profundo e abalador atrito...
Queimam-me o peito cáusticos de fogo,
Esta ânsia de absoluto desafogo
Abrange todo o círculo infinito.
Na insaciedade desse gozo falho
Busco no desespero do trabalho,
Sem um domingo ao menos de repouso,
Fazer parar a máquina do instinto,
Mas, quanto mais me desespero, sinto
A insaciabidade desse gozo!
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
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sexta-feira, abril 16, 2010
O rato apareceu num ângulo da sala, um homem e uma mulher apareceram também. O homem e a mulher sabem pouco mais de mim que o rato, diz Murilo Mendes.
O rato e a comunidade
1.
O rato apareceu
Num ângulo da sala.
Um homem e uma mulher
Apareceram também,
Trocaram palavras comigo,
Fizeram diversos gestos
E depois foram-se embora.
?Que sabe este rato de mim.
E esse homem e essa mulher
Sabem pouco mais que o rato.
2.
Passam meses e anos perto de nós,
Rodeiam-nos, sentam-se com a gente à mesa,
Comentam a guerra, os telegramas,
Discutem planos políticos e econômicos,
Promovem arbitrariamente a felicidade coletiva.
Conhecem nosso paletó, camisa e gravata,
Nosso sorriso e o gesto de mover o copo.
Têm medo de nos tocar, não conhecer nossas lágrimas.
?Que sabem de nosso coração, do nosso desespero, da nossa comunicabilidade.
Que sabem do centro da nossa pessoa, de que são participantes.
...Subúrbios longínquos, esses homens.
3.
Entretanto cada um deve beber no coração do outro.
Todos somos amassados, triturados:
O outro deve nos ajudar a reconstituir nossa forma.
O homem que não viu seu amigo chorar
ainda não chegou ao centro da experiência do amor.
Para um amigo não existe nenhum sofrimento abstrato.
Todo sentimento é pressentido, trocado, comunicado.
? Quem sabe conviver o outro, quem sabe transferir o coração.
Ninguém mais sabe tocar na chaga aberta:
Entretanto todos têm uma chaga aberta.
4.
Desconhecido que atravessas a rua,
? Que há de comum entre mim e ti.
A mesma solidão e a mesma roupa.
Procuras consolo, mas não podes parar.
És o servo da máquina e do tempo.
Mal sabes teu nome, nem o que desejas neste mundo.
Procuras a comunidade de uma pessoa,
Mas não a encontras na massa-leviatã.
Procuras alguém que seja obscuro e mínimo.
Que possa de novo te apresentar a ti mesmo.
5.
A mulher que escolhemos, a única e não outra
Dentre tantas que habitam a terra triste,
Esta mesma, frágil e indefesa, bela ou feia,
Eis o mundo que nos é de novo apresentado
Por intermédio de uma só pessoa.
Esta é a que rompe as grades do nosso coração,
Esta é a que possuímos mais pela ternura que pelo sexo.
E nada será restaurado no seu genuíno sentido
Se a mulher não retornar ao seu princípio:
É a máquina instalada dentro dela que deveremos vencer.
Quando esta mulher se tornar de novo submissa e doce,
Os homens pela mão da antiga mediadora
Abrirão outra vez um ao outro os corações que sangram.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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quinta-feira, abril 15, 2010
Levem o mundo: deixem-me o momento. Em versos inesquecíveis, o pedido que Fernando Pessoa quis legar à humanidade.
Não me digas mais nada
Não me digas mais nada. O resto é a vida.
Sob onde a uva está amadurecida.
Moram meus sonos, que não querem nada.
Que é o mundo? Uma ilusão vista e sentida.
Sob os ramos que falam com o vento,
Inerte, abdico do meu pensamento.
Tenho esta hora e o ócio que está nela.
Levem o mundo: deixem-me o momento!
Se vens, esguia e bela, deitar o vinho
Em meu copo vazio, eu, mesquinho
Ante o que sonho, morto te agradeço
Que não sou para mim mais do que um vizinho.
Quando a jarra que trazes aparece
Sobre meu ombro e a sua curva desce
A deitar vinho, sonho-te, e, sem ver-te,
Por teu braço teu corpo me apetece.
Não digas nada que tu creias. Fala
Como a cigarra canta. Nada iguala
O ser um sonho pequeno entre os rumores
Com que este mundo.
A vida é terra e o vivê-la é lodo.
Tudo é maneira, diferença ou modo.
Em tudo quando faças sê só tu,
Em tudo quanto faças sê tu todo.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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quarta-feira, abril 14, 2010
Tão imperfeitas, nossas maneiras de amar. Quando alcançaremos o limite, o absoluto amor, revel à condição de carne e alma, indaga Drummond em versos.
Aspiração
Tão imperfeitas, nossas maneiras
de amar.
Quando alcançaremos
o limite, o ápice
de perfeição
que é nunca mais morrer,
nunca mais viver
duas vidas em uma,
e só o amor governe
todo além, todo fora de nós mesmos?
O absoluto amor,
revel à condição de carne e alma.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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Mario Benedetti vê que fecharam as portas do Ano Velho. Aos oitenta anos, ele não é mais de dois céus, apenas de um e cinzas.
Dos cielos
Clausuro el portalón del año viejo
pero queda una tímida rendija
por donde miran
tiernos y del sur
los ojos blancos de mis muertos
con sus revelaciones que no cesan
y que presumo no van a cesar
crisis, cartas, latidos inocencias
intentar deslizarse al año virgen
pero hay otras y otros
que prefieren quedarse
insomnes en su sábana
bajo un cielo ya antiguo
sé que el sol es el mismo
que la lluvia y los hongos
son los mismos
pero el futuro es otro
más compulsivo y árduo
con épocas que están
aún por inventarse
no obstante en la rendija
inútil del pasado
hay árboles maltrechos
infancias distraídas
mares verdes y náufragos
pájaros que desmienten el olvido
y otros cielos sin nubes
a punto de entreabrirse
quisiera estar a solas
en ese parque años de tristezas
que conozco cantero por cantero
pero cada lugar tiene su tiempo
cada tiempo su marca
cada desolación su maravilla
tengo el futuro a mis espaldas
alevoso y falaz
incalculable
lo oscuro venidero me persigue
con su propuesta de cenizas
y su cielo velado
el de costumbre
sin embargo es hora de admitir
que a mis ochenta bien cumplidos
yo ya no estoy para dos cielos
apenas uno y ceniciento
pero queda una tímida rendija
por donde miran
tiernos y del sur
los ojos blancos de mis muertos
con sus revelaciones que no cesan
y que presumo no van a cesar
crisis, cartas, latidos inocencias
intentar deslizarse al año virgen
pero hay otras y otros
que prefieren quedarse
insomnes en su sábana
bajo un cielo ya antiguo
sé que el sol es el mismo
que la lluvia y los hongos
son los mismos
pero el futuro es otro
más compulsivo y árduo
con épocas que están
aún por inventarse
no obstante en la rendija
inútil del pasado
hay árboles maltrechos
infancias distraídas
mares verdes y náufragos
pájaros que desmienten el olvido
y otros cielos sin nubes
a punto de entreabrirse
quisiera estar a solas
en ese parque años de tristezas
que conozco cantero por cantero
pero cada lugar tiene su tiempo
cada tiempo su marca
cada desolación su maravilla
tengo el futuro a mis espaldas
alevoso y falaz
incalculable
lo oscuro venidero me persigue
con su propuesta de cenizas
y su cielo velado
el de costumbre
sin embargo es hora de admitir
que a mis ochenta bien cumplidos
yo ya no estoy para dos cielos
apenas uno y ceniciento
Mario Benedetti
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terça-feira, abril 13, 2010
Do mesmo modo que te abriste à alegria, abre-te agora ao sofrimento. Porque a vida só consome o que a alimenta, nos versos de Ferreira Gullar.
Aprendizado
Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Ferreira Gullar
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Uma noite no bar, chopes dourados, manhã de praia num domingo, poesia. E alguns pensamentos sobre os conflitos de gerações, por Jorge Wanderley.
Esses chopes dourados
Verdes bandejas de ágata, meus olhos amarelos
caminham para mim pela milésima vez
enquanto estou cercado por brancos azulejos
e amparado por uma toalha de quadros.
No útero deste bar vou me elevando
e saio da noite cheia de ruídos
para a manhã do mar
onde tudo é sal, impossível alquimia
disfarçada num domingo.
Amável,
esta manhã me aturde, manhã de equívocos
onde um sábado moribundo se entrega sem rancor.
Meu sábado, belíssima ave negra de olho aceso,
cai nas muralhas do sol como um herói melancólico
enquanto o mar abre o sorriso de dentes brancos
lavados na areia alvura.
Caminho para o sol que me atrai mecanicamente:
- Vou te decifrar, domingo;
diante de mim tua esfinge se enche de pudor.
quando a geração de meu pai
batia na minha
a minha achava que era normal
que a geração de cima
só podia educar a de baixo
batendo
quando a minha geração batia na de vocês
ainda não sabia que estava errado
mas a geração de vocês já sabia
e cresceu odiando a geração de cima
aí chegou esta hora
em que todas as gerações já sabem de tudo
e é péssimo
ter pertencido à geração do meio
tendo errado quando apanhou da de cima
e errado quando bateu na de baixo
e sabendo que apesar de amaldiçoados
éramos todos inocentes
Jorge Wanderley
(Sem verbete na Wikipedia)
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Jorge Wanderley
segunda-feira, abril 12, 2010
Na canção da menina e moça, um coração não cabe só no peito. E o amor dela há de cheirar a tronco, como ela cheira a amor, no dizer de Mario Quintana.
A canção da menina e moça
Uma paisagem em um só coqueiro.
Que triste!
E o companheiro?
Cabrinha que sobes o monte pedrento.
Só, contra as nuvens.
Será teu esposo o vento?
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro à flor.
Um coração não cabe num só peito:
Amor...Amor...
Uma paisagem com um só coqueiro...
Uma igrejinha com uma torre só...
Sem companheira...Sem companheiro...
Ó dor!
O meu esposo há de cheirar a tronco,
Como eu cheiro...como eu cheiro
A amor...
Mario Quintana
(1906=1994)
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Aos amigos, Eugénio de Andrade amou despido de ternura fatigada. Uns iam, outros vinham, a nenhum ele perguntava porque partia, porque ficava.
Os amigos
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.
Eugénio de Andrade
(1923-2005)
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domingo, abril 11, 2010
Do exílio, Thiago de Mello lança seu canto de companheiro em tempo de cuidados. Canta para repartir o que é preciso ser do amor geral.
Canto de companheiro em tempo de cuidados
Contigo, companheiro que chegaste,
desconhecido irmão de minha vida,
reparto esta esmeralda que retive
em meu peito no instante fugitivo
mas infinito em que se acaba a infância,
porque a esmeralda não se acaba nunca.
Reparto, companheiro, porque chegas
a este caminho longo e luminoso
mas que também se faz áspero e duro,
onde as nossas origens se abraçaram
dissolvendo-se em paz as diferenças,
engendradas na vida pela força
feroz com que desune o mundo os homens
que feitos foram para cantar juntos
porque só juntos saberão chegar
para a festa de amor que se prepara.
Porque tudo é chegar, meu companheiro
desconhecido, meu irmão que plantas
o grão no escuro e nasce a claridão.
É chegar e seguir, os dois cantando,
os dois e a multidão num só caminho,
em direção ao sol que nos ensina
a ser mais cristalinos, parecidos
ao menino que fomos e que somos
de novo dentro do homem, desde que o homem
seja capaz de repartir seu canto
e um pedaço de sol bem luminoso
a esse desconhecido ser que chega
sem nada: traz apenas a esperança
de ver o amor de perto. E sem ter canto
no peito machucado, de repente
de coração contigo vai cantando,
e vai na vida, a vida desgraçada,
achando uma fé nova enquanto um gosto
de também repartir-lhe sobe na alma:
está no seu caminho e então reencontra
o menino que foi, quando a esmeralda
perdida no seu peito resplandece
de amor geral que se reparte e cresce.
Não sei se canto claro, companheiro.
Em tua vida vive o o povo inteiro:
antes jamais te vi, mas te sabia
perto de mim, quando aprendi na dor
da queimadura do noturno mundo,
que se alçava voraz contra a alegria
e entranhas devorava e em fome e febre
enrolava a vergonha das mulheres
e pela mão levava sob a lua,
de enferma claridade, as ambulantes
manchas de riso em cujo fundo a infância
era uma rosa sórdida já murcha.
O tempo é de cuidados, companheiro.
É tempo sobretudo de vigília.
O inimigo está solto e se disfarça,
mas como usa botinas fica fácil
distinguir-lhe o tacão grosso e lustroso
que pisa as forças claras da verdade
e esmaga os verdes que dão vida ao chão.
O tempo é de mentira. Não convém
deixar livre o menino da esmeralda.
Melhor é protegê-lo da violência
que amarra a liberdade em pleno vôo.
A sombra já desceu, e muitas fauces
famintas se escancaram farejando.
Cuidado, companheiro, esconde a rosa,
espanta a mariposa colorida,
é perigosa esta canção de amor.
Cada um no seu lugar, na sua vez,
não descuidar na espreita do inimigo,
que não dorme jamais e é cheio de olhos.
E derramar a luz, no instante certo,
sobre a garra soturna do seu rosto.
É uma espera que dói, mas o que vale
é ter o coração por cidadela,
acender uma tocha em cada metro
de terra conquistado e trabalhar
melhor, para que o chão floresça mais
e o trigo erga bem alto o seu pendão
para a festa de amor, larga e geral,
onde a fome afinal não vai dançar,
porque não comerão somente eleitos,
porque são todos os que comerão.
É por isso que estamos todos juntos:
a nossa força tem o sortilégio
da seiva torrencial da primavera,
e o nosso amor palpita como os ímpetos
das águas amazônicas profundas.
É cantar, companheiro, e repartir
o que é preciso ser do amor geral.
Ninguém será sozinho nunca mais,
nem na solidão, nem no poder.
Sempre contigo irei, e é quando canto
que te defendo, e deito em tua lâmpada
um azeite que dura a treva inteira
nesses tempos de cinza em que a vigília,
espada em flama erguida como a rosa,
só poderá cessar quando outra vez,
envergonhada, regressar a aurora,
que vai lavar de luz o chão amado,
e seremos de novo e simplesmente
meninos repartindo as esmeraldas.
Thiago de Mello
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Não perturbes a paz que me foi dada. Ouvir de novo a tua voz seria matar a sede com água salgada, na súplica de Miguel Torga.
Súplica
Agora que o silêncio é um mar sem ondas,
E que nele posso navegar sem rumo,
Não respondas
Às urgentes perguntas
Que te fiz.
Deixa-me ser feliz
Assim,
Já tão longe de ti como de mim.
Perde-se a vida a desejá-la tanto.
Só soubemos sofrer, enquanto
O nosso amor
Durou.
Mas o tempo passou,
Há calmaria...
Não perturbes a paz que me foi dada.
Ouvir de novo a tua voz seria
Matar a sede com água salgada.
Miguel Torga
(1907-1995)
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Miguel Torga
sábado, abril 10, 2010
João Cabral de Melo aprendeu que a fala do sertanejo engana. Ele fala pouco, devagar, à força, pois no idioma pedra se fala doloroso.
O sertanejo falando
1.
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavras confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2.
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-la na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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Numa noite funda, fria e sem Deus, o desejo de Dante Milano é ter uma coisa branca bem junto dele. Para beijar, abraçar, para se sumir, se esquecer.
Imagem
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.
Uma coisa branca
De carne, de luz,
Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,
Uma coisa branca,
Doce e profunda,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.
Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,
Uma coisa branca
Para me encostar
E afundar o rosto.
Talvez um seio,
Talvez um ventre,
Talvez um braço,
Onde repousar.
Eis o meu desejo,
Uma coisa branca
Bem junto de mim,
Para me sumir,
Para me esquecer,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Dante Milano
(1899-1991)
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Eis o meu desejo.
Uma coisa branca
De carne, de luz,
Talvez uma pedra,
Talvez uma testa,
Uma coisa branca,
Doce e profunda,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Uma coisa branca,
Eis o meu desejo.
Que eu quero beijar,
Que eu quero abraçar,
Uma coisa branca
Para me encostar
E afundar o rosto.
Talvez um seio,
Talvez um ventre,
Talvez um braço,
Onde repousar.
Eis o meu desejo,
Uma coisa branca
Bem junto de mim,
Para me sumir,
Para me esquecer,
Nesta noite funda,
Fria e sem Deus.
Dante Milano
(1899-1991)
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sexta-feira, abril 09, 2010
A rainha era casta porque de passarinha era careca. Depois do biscate, a rainha já não chora, está feliz, muito contentinha, nos conta Hilda Hilst.
A rainha careca
De cabeleira farta
De rígidas ombreiras
de elegante beca
Ula era casta
Porque de passarinha
Era careca.
À noite alisava
O monte lisinho
Co'a lupa procurava
Um tênue fiozinho
Que há tempos avistara.
Ó céus! Exclamava.
Por que me fizeram
Tão farta de cabelos
Tão careca nos meios?
E chorava.
Um dia...
Passou pelo reino
Um biscate peludo
Vendendo venenos.
(Uma gota aguda
Pode ser remédio
Pra uma passarinha
De rainha.)
Convocado ao palácio
Ula fez com que entrasse
No seu quarto.
Não tema, cavalheiro,
Disse-lhe a rainha
Quero apenas pentelhos
Pra minha passarinha.
Ó senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com saliva de ósculos
Colou-os
Concomitante penetrando-lhe os meios.
Ui!Ui!Ui! gemeu Ula
De felicidade.
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
Hei de ficar contigo
A vida toda!
Evidente que aos poucos
Despregou-se o tufo todo.
Mas isso o que importa?
Feliz, mui contentinha
A Rainha Ula já não chora.
Moral da estória:
Se o problema é relevante,
apela pro primeiro passante.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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Hilda Hilst
Na dor de Schmidt, os que se vão, vão depressa. Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações, é que não vão depressa os que se vão.
A ausente
Os que se vão, vão depressa.
Ontem, ainda, sorria na espreguiçadeira.
Ontem dizia adeus, ainda, da janela.
Ontem, vestia, ainda, o vestido tão leve cor-de-rosa.
Os que se vão, vão depressa.
Seus olhos grandes e pretos há pouco brilhavam.
Sua voz doce e firme faz pouco ainda falava,
Suas mãos morenas tinham gestos de bênçãos.
No entanto, hoje, na festa, ela não estava.
Nem um vestígio dela, sequer.
Decerto sua lembrança nem chegou, como os convidados
Alguns, quase todos, indiferentes e desconhecidos.
Os que se vão, vão depressa.
Mais depressa que os pássaros que passam no céu.
Mais depressa que o próprio tempo,
Mais depressa que a bondade dos homens,
Mais depressa que os trens correndo nas noites escuras,
Mais depressa que a estrela fugitiva
Que mal faz um traço no céu.
Os que se vão, vão depressa.
Só no coração do poeta, que é diferente dos outros corações,
Só no coração sempre ferido do poeta
É que não vão depressa os que se vão.
Ontem ainda sorria na espreguiçadeira,
E o seu coração era grande e infeliz.
Hoje, na festa, ela não estava, nem a sua lembrança.
Vão depressa, tão depressa os que se vão...
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
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quinta-feira, abril 08, 2010
Cabelos sem brilho, olhos injetados, rugas, espinhas, axilas sem cheiro? Mulheres, para todos os males, o camelô Vinicius receita AMOR.
O camelô do Amor
O Amor tonifica o cabelo das mulheres
Torna-o vivo e dá-lhe um brilho natural.
Ondulações permanentes? só as do amor. Amai!
Nada melhor que o Amor para as moléstias do couro cabeludo.
O Amor ilumina os olhos das mulheres
Olhos sem cor? Amor! Olhos injetados?
Colírio lágrimas de Amor? Amai mulheres!
O Amor branqueia a córnea, acende a íris, dilata as pupilas cansadas.
O Amor limpa de rugas a fronte das mulheres
Para pés-de-galinha, beijos de Amor! Tende sempre em mente:
O Amor coroa as mulheres de pesados diademas invisíveis
Amai mulheres! A mulher que ama move-se dignamente.
O Amor heleniza o nariz das mulheres
Quando não dá-lhes delicados riques, particularmente nas asas.
Narizes gordurosos, com propensão a cravos, acnes ou espinhas?
Amai mulheres! esfregando de leve os narizes de encontro ao nariz amado.
Amor horizontal é melhor e não faz mal. Bocas plenas rosadas palpitantes?
Beijos de Amor constantes! mantêm-nas bem lubrificadas.
Se quereis conservar aceso o ardor dos que vos amam
Beijai, mulheres! doce, triste, alegre, violentamente apaixonadas.
Nem Ardens, nem Rubinsteins: morte às pomadas!
Pomadas, cremes, só de amor, amadas!
Pele jovem e macia? amai se possível todo o dia
E ante o esplendor de vossas peles há de ruborizar-se a madrugada.
O Amor estimula extraordinariamente a higiene bucal
Os amorosos lavam-se os dentes, dão massagens nas gengivas, limpam-se as línguas
com água e sal,
Que é como todos sabem, o composto químico da saliva
Que consequentemente se ativa impedindo a halitose e tornando a carícia palatal.
Não sabe aquela que só compra Lifebuoy?
Perdeu o marido e nunca soube como foi.
Sim, lavai-o debaixo de vossas armas, ó anjos, mas nada de exagero:
Uma axila sem cheiro pode levar um homem ao desespero.
Basta de pastas: ó tu que transportas o leite contigo
Bom até a última gota! sou teu amigo ouve o que te digo;
Se amares o sangue funcionará melhor em tuas glândulas mamares
E terás seios autodidatas firmes objetivos singulares.
Chega de plásticas cirúrgicas, radioterapias e outras perfumarias
Vivei e amai ao sol: para aquele que vos ama vossos defeitos são poesia
Nada mais lindo que a feiúra da mulher amada.
Por isso eu sempre digo: qual regulador qual nada!
Regulador? besteira! Amai, mulheres. A verdadeira
saúde da mulher está em ser boa companheira
Dê e tome, tome e mate, e mate de Amor. A mulher que se preza
Sabe sorrir. Conserve o seu sorriso. Valha o quanto pesa.
Se é de amor, é bom. Eu sempre digo, e faça figa
Do que me diga não ser melhor que óleo de fígado.
Pois além de excitar o metabolismo basal
Para o simpático é o tônico ideal.
Eis o seu mal, não amar. Daí, decerto, a causa
Dessas palpitações, enxaquecas e náuseas...
O espetáculo começa quando a senhora chega. Espere um instante por favor
E repita comigo, bem devagar: A-M-O-R.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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Teu corpo seja brasa e o meu a casa que se consome no fogo. Uma fogueira chega pra eu brincar de novo, na paixão de Alice Ruiz.
Teu corpo seja brasa
Teu corpo seja brasa
e o meu a casa
que se consome no fogo
um incêndio basta
pra consumar esse jogo
uma fogueira chega
pra eu brincar de novo
Alice Ruiz
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quarta-feira, abril 07, 2010
Sem nada feito e o por fazer mal pensado, Fernando Pessoa apresenta sua sugestão: deixem-se sonhar sem esperar!
Assim, sem nada
Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal Pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo os meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.
Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma se sobrevive, a esperança,
Mas a mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.
Tênue passar das horas sem proveito,
Leve corrrer dos dias sem ação,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.
Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quer.
Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solenemente por ser lida,
Ah, deixem-se sonhar sem esperar.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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A uma passante pós-baudelairiana, de Carlito Azevedo.
A uma passante, pós-baudelairiana
Sobre esta pele branca
um calígrafo oriental
teria gravado
sua escrita luminosa
- sem esquecer entanto
a boca: um ícone em rubro
tornando mais fogo
o céu de outubro
tornando mais água
a minha sede
sede de dilúvio -
Talvez este poeta afogado
nas ondas de algum danúbio imaginário
dissesse que seus olhos são
duas machadinhas de jade
escavando o constelário noturno
(a partir do que comporia
duzentas odes cromáticas)
mas eu que venero mais que o ouro-verde raríssimo
o marfim em alta-alvura
de teu andar em desmesura sobre
uma passarela de relâmpagos súbitos
sei que tua pele pálida de papel
pede palavras de luz
Algum mozárabe ou andaluz decerto
te dedicaria um concerto
para guitarras mouriscas e
cimitarras suicidas
Mas eu te dedico quando passas
me fazendo fremir
(entre tantos circunstantes, raptores fugidios)
este tiroteio de silêncios
esta salva de arrepios.
Carlito Azevedo
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terça-feira, abril 06, 2010
Mulher andando nua pela casa envolve a gente de tamanha paz. Seios e nádegas repousam de guerra, também eu repouso, admite Drummond com muito prazer.
Mulher andando nua pela casa
Mulher andando nua pela casa
envolve a gente de tamanha paz.
Não é nudez datada, provocante.
É um andar vestida de nudez,
inocência de irmã e copo d'água.
O corpo nem sequer é percebido
pelo ritmo que o leva.
Transitam curvas em estado de pureza,
dando este nome à vida: castidade.
Pêlos que fascinavam não perturbam.
Seios, nádegas (tácito armistício)
repousam de guerra. Também eu repouso.
Carlos Drummond de Andrade
(1922-1987)
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Dizer do corpo o corpo da poesia, pensar do corpo o corpo da poesia, escrever do corpo o corpo da poesia. Para Maria Teresa, um corpo, dois corpos.
O corpo, dois corpos
Dizer do corpo
o corpo da poesia
Os ombros
os seios
o ventre que sequestra
entre as pernas fechadas
a vagina
com a sua longa boca entreaberta
Pensar do corpo
o corpo da poesia
Mais os dedos do que as mãos
sobre as arestas
Mais as fendas do que o liso
Mais a ruga
Mais a ruga das coxas
e das pernas
Depois vêm os dentes e a língua
a descer no trilho brando do umbigo
bebendo o sal do suor da pele
e o fermento de um doce que não digo
Escrever do corpo
o corpo da poesia
Os pulsos tão febris
a nuca
e a garganta
O silêncio de uns olhos
que por certo queriam
ver bem mais longe do que o pubis
deixa
Maria Teresa Horta
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segunda-feira, abril 05, 2010
Como tenho pensado em ti na solidão das noites úmidas. Como se a vida, mansa, pousasse as mãos sobre a minha ferida, nos versos de Manuel Bandeira.
Na solidão das noites úmidas
Como tenho pensado em ti na solidão das noites úmidas,
De névoa úmida,
Na areia úmida!
Eu te sabia assim também, assim olhando a mesma cousa
No ermo da noite que repousa.
E era como se a vida,
Mansa, pousasse as mãos sobre a minha ferida...
Mas, ah! como eu sentia
A falta de teu ser de volúpia e tristeza!
O mar... Onde se via o movimento da água,
Era como se a ádua estremecesse em mil sorrisos.
Como uma carne de mulher sob a carícia.
O luar era um afago tão suave,
- Tão imaterial -
E ao mesmo tempo tão voluptuoso e tão grave!
O luar era a minha inefável carícia:
A água era teu corpo a estremecer-se com delícia.
Ah! em música, pôr o que eu então sentia!
Unir no espasmo da harmonia
Esses dois ritmos contrastantes:
O frêmito tão perdidamente alegre de amor sob a carícia
E essa grave volúpia da luz branca.
Oh! viver contigo!
Viver contigo todos os instantes...
Harmoniosa e pura,
Sem lastimar a fuga irreparável dos anos,
Dos anos lentos e monótonos que passam,
Esperando sempre que maior ventura
Viesse um dia no beijo infinito da mesma morte...
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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Manuel Bandeira
Fui um doido que segui teus passos, que dei-te em versos de beleza a palma. Deixa-me agora repousar tranquilo, dormir em paz, implora Fagundes Varela.
Deixa-me
Quando cansado da vigília insana
declino a fronte num dormir profundo,
por que teu nome vem ferir-me o ouvido,
lembrar-me o tempo que passei no mundo?
Por que teu vulto se levanta airoso,
tremente em ânsias de volúpia infinda?
E as formas nuas, e ofegante o seio,
no meu retiro vens tentar-me ainda?
Por que me falas de venturas longas,
por que me apontas um porvir de amores?
E o lume pedes à fogueira extinta,
doces perfumes a polutas flores?
Não basta ainda essa existência escura,
página treda que a teus pés conpus?
Nem essas fundas, perenais angústias,
dias sem crença e serões sem luz?
Não basta o quadro de meus verdes anos
manchado e roto, abandonado ao pó?
Nem este exílio, do rumor no centro,
onde pranteio desprezado e só?
Ah! não me lembres do passado as cenas,
nem essa jura desprendida a esmo!
Guardaste a tua? A quantos outros, dize,
a quantos outros não fizeste o mesmo?
A quantos outros, inda os lábios quentes
de ardentes beijos que eu te dera então,
não apertaste no vazio seio
entre promessas de eternal paixão?
Oh! fui um doido que segui teus passos,
que dei-te em versos de beleza a palma;
mas tudo foi-se, e esse passado negro
por que sem pena me despertas n'alma?
Deixa-me agora repousar tranquilo,
deixa-me agora dormitar em paz,
e com teus risos de infernal encanto,
em meu retiro não me tentes mais!
Fagundes Varela
(1841-1875)
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Fagundes Varela
domingo, abril 04, 2010
Deixa-me ser a tua amiga, Amor, beija-me as mãos. Em sua fantasia, Florbela quer guardar nas mãos os beijos que sonhou para a sua boca.
Amiga
Deixa-me ser a tua amiga, Amor;
A tua amiga só, já que não queres
Que pelo teu amor seja a melhor
A mais triste de todas as mulheres.
Que só, de ti, me venha mágoa e dor
O que me importa a mim?! O que quiseres
É sempre um sonho bom! Seja o que for
Bendito sejas tu por m'o dizeres!
Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!... Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...
Florbela Espanca
(1894-1930)
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Florbela Espanca
Na praça, este domingo não é de hoje: é antigo. Sou, domingo na praça, um momento o que fui, na nostalgia de Mauro Mota.
Domingo na praça
Na praça, este domingo
não é de hoje: é antigo.
O banco, o lago, a relva
para onde é que me levam?
Ai, dezembro de acácias,
esta praça não passa.
E essa gente depressa
(a moça e a bicicleta)
passa para deixar-se
um pouco nesta tarde.
Ai, dezembro de acácias,
este cheiro, esta música...
Sou, domingo na praça,
um momento o que fui.
Mauro Mota
(1911-1984)
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sábado, abril 03, 2010
Nada me expira já, nada me vive. Nem a tristeza nem as horas belas, no além-tédio de Mário de Sá-Carneiro.
Além-tédio
Nada me expira já, nada me vive -
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.
Como eu quisera, enfim d'alma esquecida,
Dormir em paz num leito d'hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.
Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.
Parti! Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!
Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.
E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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Mário de Sá-Carneiro
Em meio aos fãs de algum camisa dez, Glauco Mattoso vê machos adorando pés de macho. Para ele, machismo é futebol e amor aos pés.
Soneto futebolístico
Machismo é futebol e amor aos pés.
São machos adorando pés de macho,
e nesse mundo mágico me acho
em meio aos fãs de algum camisa dez.
Invejo os massagistas dos Pelés
nos lúdicos momentos de relaxo,
servindo-lhes de chanca e de capacho,
levando a língua ali, do chão no rés.
É lógico que um cego como eu
não pode convocar o titular
dum time brasileiro ou europeu.
Contento-me em chupar o polegar
do pé de quem ainda não venceu
sequer a mais local preliminar.
Glauco Mattoso
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quinta-feira, abril 01, 2010
A única afirmação é ser. E ser o oposto é o que não queria de mim, reconhece Albeiro Caeiro em seus versos..
Estas verdades
Estas verdades não são perfeitas porque são ditas,
E antes de ditas pensadas.
Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias.
Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.
A única afirmação é ser.
E ser o oposto é o que não queria de mim.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Alberto Caeiro
O fundo da noite guarda silêncios. Mas para a menina de Flora Figueiredo, cai um pingo de luz, amanhece.
Como nascem as manhãs
O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.
Flora Figueiredo
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