segunda-feira, janeiro 28, 2008

A solidão é um campo muito vasto que não se deve atravessar a sós. Por isso, deixa-me amar-te com ternura, pede Lya Luft ao seu amor


Deixa-me amar-te

Deixa-me amar-te com ternura, tanto
que nossas solidões se unam
e cada um falando em sua margem
possa escutar o próprio canto.

Deixa-me amar-te com loucura, ambos
cavalgando mares impossíveis
em frágeis barcos e insuficientes velas
pois disso se fará a nossa voz.

Deixa-me amar-te sem receio, pois
a solidão é um campo muito vasto
que não se deve atravessar a sós.

Lya Luft

Mais sobre Lya Luft em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Lya_Luft

Despede o teu pudor, diz com paixão Paulo Mendes Campos. E pressente: teus pés roçando nos meus pés, escuto o respirar da noite que te leva.


Despede teu pudor

Despede teu pudor com a camisa
E deixa alada louca sem memória
Uma nudez nascida para a glória
Sofrer de meu olhar que te heroíza

Tudo teu corpo tem, não te humaniza
Uma cegueira fácil de vitória
E como a perfeição não tem história
São leves teus enredos como a brisa

Constante vagaroso combinado
Um anjo em ti se opõe à luta e luto
E tombo com um sol abandonado

Enquanto amor se esvai a paz se eleva
Teus pés rocando nos meus pés escuto
O respirar da noite que te leva.

Paulo Mendes Campos

(1922-1991)

Mais sobre Paulo Mendes Campos em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos

Nos versos de Cassiano Ricardo, a esperança nunca é a figura de mulher do quadro antigo. Sentada, dando milho aos pombos.


A rua


Bem sei que, muitas vezes,
O único remédio
É adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
A dívida, o divertimento,
O pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
De continuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
Numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
Esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.

A esperança
Nunca é a forma burguesa, sentada e tranqüila da espera.
Nunca é figura de mulher
Do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

Mais sobre Cassiano Ricardo em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

domingo, janeiro 27, 2008

Quando escreveu Os Estatutos do Homem, Thiago de Mello nos mostrou como tudo seria diferente se a Poesia governasse o coração de todos os homens.


Os Estatutos do Homem (Ato Institucional Permanente)

Artigo I
Fica decretado que agora vale a verdade,
agora vale a vida,
e de mãos dadas,
marcharemos todos pela vida verdadeira.

Artigo II
Fica decretado que todos os dias da semana,
inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
têm direito a converter-se em manhãs de domingo.

Artigo III
Fica decretado que, a partir deste instante,
haverá girassóis em todas as janelas,
que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra;
e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
abertas para o verde onde cresce a esperança.

Artigo IV
Fica decretado que o homem
não precisará nunca mais duvidar do homem.
Que o homem confiará no homem
como a palmeira confia no vento,
como o vento confia no ar,
como o ar confia no campo azul do céu.

Parágrafo único: O homem, confiará no homem
como um menino confia em outro menino.

Artigo V
Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Nunca mais será preciso usar
a couraça do silêncio
nem a armadura de palavras.
O homem se sentará à mesa
com seu olhar limpo
porque a verdade passará a ser servida
antes da sobremesa.

Artigo VI
Fica estabelecida, durante dez séculos,
a prática sonhada pelo profeta Isaías,
e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.

Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido
o reinado permanente da justiça e da claridade,
e a alegria será uma bandeira generosa
para sempre desfraldada na alma do povo.

Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor
sempre foi e será sempre
não poder dar-se amor a quem se ama
e saber que é a água
que dá à planta o milagre da flor.

Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia
tenha no homem o sinal de seu suor.
Mas que sobretudo tenha
sempre o quente sabor da ternura.

Artigo X
Fica permitido a qualquer pessoa,
qualquer hora da vida,
uso do traje branco.

Artigo XI
Fica decretado, por definição,
que o homem é um animal que ama
e que por isso é belo,
muito mais belo que a estrela da manhã.

Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado
nem proibido,
tudo será permitido,
inclusive brincar com os rinocerontes
e caminhar pelas tardes
com uma imensa begônia na lapela.

Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida:
amar sem amor.

Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro
não poderá nunca mais comprar
o sol das manhãs vindouras.
Expulso do grande baú do medo,
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar
e a festa do dia que chegou.

Artigo Final
Fica proibido o uso da palavra liberdade,
a qual será suprimida dos dicionários
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio,
e a sua morada será sempre
o coração do homem.

Thiago de Melo

Mais sobre Thiago de Mello em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

A exploração dos camponeses pelos Coronéis. Uma história bem antiga, mas que um dia vai terminar, aqui e onde houver o latifúndio.


João Boa Morte Cabra Marcado para Morrer

Essa guerra do Nordeste
não mata quem é doutor.
Não mata dono de engenho,
só mata cabra da peste,
só mata o trabalhador.
O dono de engenho engorda,
vira logo senador.
Não faz um ano que os homens
que trabalham na fazenda
do Coronel Benedito
tiveram com ele atrito
devido ao preço da venda.
O preço do ano passado
já era baixo e no entanto
o coronel não quis dar
o novo preço ajustado.
João e seus companheiros
não gostaram da proeza:
se o novo preço não dava
para garantir a mesa,
aceitar preço mais baixo
já era muita fraqueza.
"Não vamos voltar atrás.
Precisamos de dinheiro.
Se o coronel não quer dar mais,
vendemos nosso produto
para outro fazendeiro".
Com o coronel foram ter.
Mas quando comunicaram
que a outro iam vender
o cereal que plantaram,
o coronel respondeu:
"Ainda está pra nascer
um cabra pra fazer isso.
Aquele que se atrever
pode rezar, vai morrer,
vai tomar chá de sumiço".

Ferreira Gullar

Mais sobre Ferreira Gullar em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar

O homem ainda vai ser bom para o homem. Aí, lembrai-vos de nós, como pediu Bertolt Brecht.


Aos que vierem depois de nós


Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fonte sem rugas
denota insensibilidade.
Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranqüilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo.

Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.
Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, - espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.

Bertolt Brecht

(1898-1956)

sexta-feira, janeiro 25, 2008

O eterno Manuel Bandeira diz que a morte absoluta é aquela em que se morre tão completamente que, ao lerem o teu nome no papel, perguntem: Quem foi?..


Link para fazer o download do poema em mp3 do canal do Poemblog no Divshare:
http://www.divshare.com/download/3594640-ada

A Morte absoluta

Morrer.
Morrer de corpo e de alma.
Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,
A exangue máscara de cera,
Cercada de flores,
Que apodrecerão - felizes! - num dia,
Banhada de lágrimas
Nascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...
A caminho do céu?
Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,
A lembrança de uma sombra
Em nenhum coração, em nenhum pensamento,
Em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamente
Que um dia ao lerem o teu nome num papel
Perguntem: "Quem foi?..."

Morrer mais completamente ainda,
- Sem deixar sequer esse nome.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

Para Jorge Luis Borges, a velhice pode ser o tempo de nossa felicidade. Ele chegou ao seu centro, à sua álgebra, à sua chave e agora já sabe quem é.


Elogio da sombra

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão)
pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu.
Restam o homem e sua alma.
Vivo entre formas luminosas e vagas
que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires,
que antes se espalhava em subúrbios
em direção à planície incessante,
voltou a ser La Recoleta, o Retiro,
as imprecisas ruas do Once
e as precárias casas velhas
que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas;
Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar;
o tempo foi meu Demócrito.
Esta penumbra é lenta e não dói;
flui por um manso declive
e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto,
as mulheres são aquilo que foram há tantos anos,
as esquinas podem ser outras,
não há letras nas páginas dos livros.
Tudo isso deveria atemorizar-me,
mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra
só terei lido uns poucos,
os que continuo lendo na memória,
lendo e transformando.
Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norte
convergem os caminhos que me trouxeram
a meu secreto centro.
Esses caminhos foram ecos e passos,
mulheres, homens, agonias, ressurreições,
dias e noites,
entressonhos e sonhos,
cada ínfimo instante do ontem
e dos ontens do mundo,
a firme espada do dinamarquês e a lua do persa,
os atos dos mortos,
o compartilhado amor, as palavras,
Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro,
a minha álgebra e minha chave,
a meu espelho.
Breve saberei quem sou.


Jorge Luis Borges

(1899-1986)

Mais sobre Jorge Luis Borges em

http://en.wikipedia.org/wiki/Jorge_Luis_Borges

quinta-feira, janeiro 24, 2008

Quando passa de um verso a outro, Nuno Júdice descobre o belo em sua exata proporção. E espera que a mulher dê à dança o argumento da sua nudez.


Regresso do baile

Falo de poesia pura, como se de pura
abstracção estivessem a tratar as mãos
que despem este corpo. E quando passo de um verso
a outro, sabendo que a imagem vai nascendo
deste movimento em que as palavras
dançam na página, limito-me a seguir
os dedos que abrem botão após
botão, e desfazem laço
após laço, até descobrirem o que
sabíamos que existia, sem nunca o ter visto:
o belo, na sua exacta proporção.

No centro do quadro, onde uma janela
se abre para o que é, talvez, uma paisagem,
o olhar distrai-se do significado que
o gesto constrói. E quem passa o limite,
e se confronta com a sombra, perde
a possibilidade de um regresso a este
instante luminoso, em que num simples
eco a música da noite se concentra,
enchendo os ouvidos que se habituaram
ao silêncio.

Por isso, espero que o trabalho
chegue ao fim, para que a mulher se volte,
e dê à dança o argumento
da sua nudez.

Nuno Júdice

Mais sobre Nuno Júdice em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Nuno_J%C3%BAdice

quarta-feira, janeiro 23, 2008

Pena que os poucos poemas de Guimarães Rosa não têm a expressão que merecem em sua obra. Ele também escrevia sobre saudade como poucos.


Soneto da saudade

Quando sentires a saudade retroar
Fecha os teus olhos e verás o meu sorriso.
Eternamente te direi a sussurrar:
O nosso amor a cada instante está mais vivo!

Quem sabe ainda vibrará em teus ouvidos
Uma voz macia a recitar muitos poemas...
E a te expressar que este amor em nós ungindo
Suportará toda distância sem problemas...

Quiçá, teus lábios sentirão um beijo leve
Como uma pluma a flutuar por sobre a neve,
Como uma gota de orvalho indo ao chão.

Lembrar-te-ás toda ternura que expressamos,
Sempre que juntos, a emoção que partilhamos...
Nem a distância apaga a chama da paixão.

Guimarães Rosa

(1908-1967)

Mais sobre Guimarães Rosa em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Jo%C3%A3o_Guimar%C3%A3es_Rosa


A sábia Cora Coralina nos ensina que sempre se encontra no caminho alguém para a lição de que se precisa. Aí, se aprende, mesmo que não se queira.


Aprende...

Tu encontrarás sempre no teu caminho
alguém para a lição de que precisas.
Aprende, mesmo que não queiras.

A boa lição... alguém sempre a precisar.
Feliz é o que aprende.
Errar é humano, diz a sabedoria popular.
Insistir no erro é obstinação.
Pecado contra o Espírito Santo.
Aquele que reconhece seu erro,
está no caminho da perfeição.
Aquele que confessa e se arrepende,
caminha para a salvação.

Reconhece teu erro.
Mesmo que custe muito,
ao teu orgulho e vaidade.

Jamais justifique o errado.
"fulano foi o culpado".
Arrepender e reparar
é o caminho certo
da Paz espiritual.

Um dia, um salteador,
condenado ao suplício,
reconheceu seus erros,
e justificou o inocente.
E o que foi que aconteceu com ele?

Cora Coralina

(1889-1985)

Mais sobre Cora Coralina em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Cora_Coralina

Para Vladimir Mayakovsky, poetas e operários são iguais porque os corações também são motores. Sempre unidos, proletários do corpo e do espírito.



O poeta-operário

Grita-se ao poeta:
"Queria te ver numa fábrica!
O que? Versos? Pura bobagem".
Talvez ninguém como nós
ponha tanto coração
no trabalho.
Eu sou uma fábrica.
E se chaminés
me faltam
talvez seja preciso
ainda mais coragem.
Sei.
Frases vazias não agradam.
Quando serrais madeira
é para fazer lenha.
E nós que somos
senão entalhadores a esculpir
a tora da cabeça humana?
Certamente que a pesca é coisa respeitável.
Atira-se a rede e quem sabe?
Pega-se um esturjão!
Mas o trabalho do poeta
é muito mais difícil.
Pescamos gente viva e não peixes.
Penoso é trabalhar nos altos-fornos
onde se tempera o ferro em brasa.
Mas pode alguém
acusar-nos de ociosos?
Nós polimos as almas
com a lixa do verso.
Quem vale mais:
o poeta ou o técnico
que produz comodidades?
Ambos!
Os corações também são motores.
A alma é poderosa força motriz.
Somos iguais.
Camaradas dentro da massa operária.
Proletários do corpo e do espírito.
Somente unidos,
somente juntos remoçaremos o mundo,
fá-lo-emos marchar num ritmo célere.
Diante da vaga de palavras
levantemos um dique!
Mãos à obra!
O trabalho é vivo e novo!
Com os oradores vazios, fora!
Moinho com eles!
Com a água de seus discursos
que façam mover-se a mó!

Vladimir Mayakovsky
(1893-1930)

Mais sobre Vladimir Mayakovsky em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vladimir_Mayakovsky

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o, confessa Mario Quintana. E após cada ilusão perdida, que extraordinária sensação de alívio ele também sentiu.


Das ilusões

Meu saco de ilusões, bem cheio tive-o.
Com ele ia subindo a ladeira da vida.
E, no entretanto, após cada ilusão perdida...
Que extraordinária sensação de alívio!


Mario Quintana
(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Companheiro, eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma. Sou todos e sou um, somos todos poetas, diz Murilo Mendes.


Somos todos poetas

Assisto em mim a um desdobrar de planos.
as mãos vêem, os olhos ouvem, o cérebro se move,
A luz desce das origens através dos tempos
E caminha desde já
Na frente dos meus sucessores.
Companheiro,
Eu sou tu, sou membro do teu corpo e adubo da tua alma.
Sou todos e sou um,
Sou responsável pela lepra do leproso e pela órbita vazia do cego,
Pelos gritos isolados que não entraram no coro.
Sou responsável pelas auroras que não se levantam
E pela angústia que cresce dia a dia.


Murilo Mendes
(1901-1975)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Murilo_Mendes

É contra mim que luto, não tenho outro inimigo. Infeliz com loucura e sem loucura, peço à vida outra vida, berra em desespero Miguel Torga.


Guerra Civil


É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso
O que sinto
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Miguel Torga
(1907-1995)

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domingo, janeiro 20, 2008

Tua visita ardente me consola, me desola. Tua visita, apenas uma esmola, nos versos apaixonados de Carlos Drummond de Andrade.


Aparição amorosa

Doce fantasma, por que me visitas
como em outros tempos nossos corpos se visitavam?
Tua transparência roça-me a pele, convida
a refazermos carícias impraticáveis: ninguém nunca
um beijo recebeu de rosto consumido.

Mas insistes, doçura. Ouço-te a voz,
mesma voz, mesmo timbre,
mesmas leves sílabas,
e aquele mesmo longo arquejo
em que te esvaías de prazer,
e nosso final descanso de camurça.

Então, convicto,
ouço teu nome, única parte de ti que não se dissolve
e continua existindo, puro som.
Aperto... o quê? a massa de ar em que te converteste
e beijo, beijo intensamente o nada.
Amado ser destruído, por que voltas
e és tão real assim tão ilusório?
Já nem distingo mais se és sombra
ou sombra sempre foste, e nossa história
invenção de livro soletrado
sob pestanas sonolentas.
Terei um dia conhecido
teu vero corpo como hoje o sei
de enlaçar o vapor como se enlaça
uma idéia platônica no espaço?

O desejo perdura em ti que já não és,
querida ausente, a perseguir-me, suave?
Nunca pensei que os mortos
o mesmo ardor tivessem de outros dias
e no-lo transmitissem com chupadas
de fogo aceso e gelo matizados.

Tua visita ardente me consola.
Tua visita ardente me desola.
Tua visita, apenas uma esmola.

Carlos Drummond de Andrade

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

Tempo lento, espaço rápido. Quanto mais penso, menos capto, diz em versos Paulo Leminski.


O mínimo do máximo


Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente medesfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo

Paulo Leminski
(1944-1989)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Leminski

Por isso eu te amo querida, quer no prazer, quer no amor. Do gondoleiro do amor, Castro Alves.


O gondoleiro do amor

Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;

Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.

Tua voz é a cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento;

E como em noites de Itália,
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.

Teu sorriso é uma aurora,
Que o horizonte enrubesceu,
— Rosa aberta com biquinho
Das aves rubras do céu.

Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.

Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;

Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no langor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?

Teu amor na treva é — um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa — nas calmarias,
É abrigo — no tufão;

Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor,...
Rosa! Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.

Castro Alves

(1847-1871)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Castro_Alves

Para Carlos Nejar, bem-aventurados são os pássaros. Não pensam em liberdade porque voam nela.


Bens-aventuranças

Bens-aventuranças
Bem-aventurados os pássaros,
as nuvens, as madrugadas.

Bem-aventurados são os pássaros.
Para eles
todos os dias
são todos os dias.
Reais, antigos, tutelares.

Nós, coitados,
não sabemos
o que fazer deles.
Queremos os dias
limpos, arrumados
com cadeiras.

Felizes os pássaros.
O mar é um animal feliz
e as coisas imaginadas
ali existem.

Bem-aventurados são os pássaros:
não pensam em liberdade
porque voam nela

sem idade.
Nós, coitados,
nem sabemos
que fazer dela.

A nós, o cisco,
o mar baixo.
Arriadas velas,
as ações com elas,
os pensamentos arriados.

Jamais o ir adiante
até onde
a resistência manda
que se ande,
até onde
perca seu comando
e vá seguindo
quando
for chegando.

Bem-aventurados os pássaros!

Carlos Nejar

Mais sobre Carlos Nejar em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

sábado, janeiro 19, 2008

Levado como uma folha, Vinicius de Moraes viu a poeira da terra que o vento espalha. E também o seu destino, pobre escravo dos príncipes loucos.


O escravo


Quando a tarde veio o vento veio e eu segui levado como uma folha
E aos poucos fui desaparecendo na vegetação alta de antigos campos de batalha
Onde tudo era estranho e silencioso como um gemido.
Corri na sombra espessa longas horas e nada encontrava
Em torno de mim tudo era desespero de espadas estorcidas se desvencilhando
Eu abria caminho sufocado mas a massa me confundia e se apertava impedindo meus passos
E me prendia as mãos e me cegava os olhos apavorados.
Quis lutar pela minha vida e procurei romper a extensão em luta
Mas nesse momento tudo se virou contra mim e eu fui batido
Foi ficando nodoso e áspero e começou a escorrer resina do meu suor
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era outra vida que não a minha
E logo tudo foi hirto e magro em mim e longe uma estranha litania me fascinava.
Houve uma grande esperança nos meus olhos sem luz
Quis avançar sobre os tentáculos das raízes que eram meus pés
Mas o vale desceu e eu rolei pelo chão, vendo o céu, vendo o chão, vendo o céu, vendo o chão
Até que me perdi num grande país cheio de sombras altas se movendo...

Aqui é o misterioso reino dos ciprestes...
Aqui eu estou parado, preso à terra, escravo dos grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que mente humana jamais viu
Aqui sofro frio que corpo humano jamais sentiu.
É este o misterioso reino dos ciprestes
Que aprisionam os cravos lívidos e os lírios pálidos dos túmulos
E quietos se reverenciam gravemente como uma corte de almas mortas.
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos gestos lentos dos gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...
Aqui estou eu pequenino como um musgo mas meu pavor é grande e não conhece luz
É um pavor que atravessa a distância de toda a minha vida.
É este o feudo dá morte implacável...
Vede – reis, príncipes, duques, cortesãos, carrascos do grande país sem mulheres
São seus míseros servos a terra que me aprisionou nas suas entranhas
O vento que a seu mando entorna da boca dos lírios o orvalho que rega o seu solo
A noite que os aproxima no baile macabro das reverências fantásticas
E os mochos que entoam lúgubres cantochões ao tempo inacabado…
É aí que estou prisioneiro entre milhões de prisioneiros
Pequeno arbusto esgalhado que não dorme e que não vive
À espera da minha vez que virá sem objeto e sem distância.

É aí que estou acorrentado por mim mesmo à terra que sou eu mesmo
Pequeno ser imóvel a quem foi dado o desespero
Vendo passar a imensa noite que traz o vento no seu seio
Vendo passar o vento que entorna o orvalho que a aurora despeja na boca dos lírios
Vendo passar os lírios cujo destino é entornar o orvalho na poeira da terra que o vento espalha
Vendo passar a poeira da terra que o vento espalha e cujo destino é o meu, o meu destino
Pequeno arbusto parado, poeira da terra preso à poeira da terra, pobre escravo dos príncipes loucos.

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

Ana Cristina Cesar abriu curiosa o céu, afastando de leve as cortinas. Ela não sabia que virar pelo avesso era uma experiência mortal, mas foi.


Fagulha


Abri curiosa
o céu.
Assim, afastando de leve as cortinas.

Eu queria entrar,
coração ante coração,
inteiriça
ou pelo menos mover-me um pouco,
com aquela parcimônia que caracterizava
as agitações me chamando

Eu queria até mesmo
saber ver,
e num movimento redondo
como as ondas
que me circundavam, invisíveis,
abraçar com as retinas
cada pedacinho de matéria viva.

Eu queria
(só)
perceber o invislumbrável
no levíssimo que sobrevoava.

Eu queria
apanhar uma braçada
do infinito em luz que a mim se misturava.

Eu queria
captar o impercebido
nos momentos mínimos do espaço
nu e cheio

Eu queria
ao menos manter descerradas as cortinas
na impossibilidade de tangê-las

Eu não sabia
que virar pelo avesso
era uma experiência mortal.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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Que este amor não me cegue nem me siga, pede em versos Hilda Hilst. Lucidez maior, impossível.


Que este amor não me cegue nem me siga


Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua de estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.

Hilda Hirst
(1930-2004)

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quinta-feira, janeiro 17, 2008

Nesta aventura do sonho exposto à correnteza, Cecília Meireles só recolhe o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Noções

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que
a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se
encontram.

Virei-me sobre a minha própria existência, e contemplei-a
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é a minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e
precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e
inúmera...

Cecília Meireles
(1901-1984)

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Havia um muro alto entre a casa de Manoel de Barros e a de sua namorada e ainda não havia e-mail. Como era difícil namorar no tempo do onça.


A namorada

Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
E pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
Era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira
E então era agonia.
No tempo do onça era assim.

Manoel de Barros

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Augusto dos Anjos bebia muito para ver se achava a Glória que ninguém achava. Coitado do poeta..


O ébrio

Bebi! Mas sei por que bebi!... Buscava
Em verdes nuanças de miragens, ver
Se nesta ânsia suprema de beber,
Achava a Glória que ninguém achava!

E todo o dia então eu me embriagava
- Novo Sileno, - em busca de ascender
A essa Babel fictícia do Prazer
Que procuravam e que eu procurava.

Trás de mim, na atra estrada que trilhei,
Quantos também, quantos também deixei,
Mas eu não contarei nunca a ninguém.

A ninguém nunca eu contarei a história
Dos que, como eu, foram buscar a Glória
E que, como eu, irão morrer também.

Augusto dos Anjos

(1884-1914)

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quarta-feira, janeiro 16, 2008

Ferreira Gullar diz que estamos todos presos à vida como numa jaula. E que para nos libertar, é preciso quebrar todas as armadilhas do mundo.


No mundo há muitas armadilhas

No mundo há muitas armadilhas
e o que é armadilha pode ser refúgio
e o que é refúgio pode ser armadilha
Tua janela por exemplo
aberta para o céu
e uma estrela a te dizer que o homem é nada
ou a manhã espumando na praia
a bater antes de Cabral, antes de Tróia
(há quatro séculos Tomás Bequimão
tomou a cidade, criou uma milícia popular
e depois foi traído, preso, enforcado)
No mundo há muitas armadilhas
e muitas bocas a te dizer
que a vida é pouca
que a vida é louca
E por que não a Bomba? te perguntam.
Por que não a Bomba para acabar com tudo, já
que a vida é louca?
Contudo, olhas o teu filho, o bichinho
que não sabe
que afoito se entranha à vida e quer
a vida
e busca o sol, a bola, fascinado vê
o avião e indaga e indaga
A vida é pouca
a vida é louca
mas não há senão ela.
E não te mataste, essa é a verdade.
Estás preso à vida como numa jaula.
Estamos todos presos
nesta jaula que Gagárin foi o primeiro a ver
de fora e nos dizer: é azul.
E já o sabíamos, tanto
que não te mataste e não vais
te matar
e agüentarás até o fim.
O certo é que nesta jaula há os que têm
e os que não têm
há os que têm tanto que sozinhos poderiam
alimentar a cidade
e os que não têm nem para o almoço de hoje
A estrela mente
o mar sofisma. De fato,
o homem está preso à vida e precisa viver
o homem tem fome
e precisa comer
o homem tem filhos
e precisa criá-los
Há muitas armadilhas no mundo e é preciso quebrá-las

Ferreira Gullar

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Augusto Frederico Schmidt traçou em versos o retrato de um desconhecido. Um desconhecido que ele não sabia se era outro ou se nasceu dele mesmo.


Retrato do desconhecido

Ele tinha uns ombros estreitos, e a sua voz era tímida,
Voz de um homem perdido no mundo,
Voz de quem foi abandonado pelas esperanças,
Voz que não manda nunca,
Voz que não pergunta,
Voz que não chama,
Voz de obediência e de resposta,
Voz de queixa, nascida das amarguras íntimas,
Dos sonhos desfeitos e das pobrezas escondidas.

Há vozes que aclaram o ser,
Macias ou ásperas, vozes de paixão e de domínio,
Vozes de sonho, de maldição e de doçura.
Os ombros eram estreitos,
Ombros humildes que não conhecem as horas de fogo do
amor inconfundível,

Ombros de quem não sabe caminhar,
Ombros de quem não desdenha nem luta,
Ombros de pobre, de quem se esconde,
Ombros tristes como os cabelos de uma criança morta,
Ombros sem sol, sem força, ombros tímidos,
De quem teme a estrada e o destino
De quem não triunfará na luta inútil do mundo:
Ombros nascidos para o descanso das tábuas de um caixão,
Ombros de quem é sempre um Desconhecido,
De quem não tem casa, nem Natal, nem festas;
Ombros de reza de condenado,
E de quem ama, na tristeza, a sombra das madrugadas;
Ombros cuja contemplação provoca as últimas lágrimas.

Os seus pés e as suas mãos acompanhavam os ombros
num mesmo ritmo.
Mãos sem luz, mãos que levam à boca o alimento
sem substância,
Mãos acostumadas aos trabalhos indolentes,
Mãos sem alegria e sem o martírio do trabalho.
Mãos que nunca afagaram uma criança,
Mãos que nunca semearam,
Mãos que não colheram uma flor.
Os pés, iguais às mãos
— Pés sem energia e sem direção,
Pés de indeciso, pés que procuram as sombras e o esquecimento,
Pés que não brincaram, pés que não correram.

No entanto os olhos eram olhos diferentes.
Não direi, não terei a delicadeza precisa na expressão
para traduzir o seu olhar.
Não saberei dizer da doçura e da infância daqueles olhos,
Em que havia hinos matinais e uma inocência, uma tranqüilidade,
um repouso de mãos maternas.

Não poderei descrever aquele olhar,
Em que a Poesia estava dormindo,
Em que a inocência se confundia com a santidade.
Não poderei dizer a música daquele olhar que me surpreendeu um dia,

Que se abriram diante de mim como um abrigo,
E que me trouxe de repente os dias mortos,
Em que me descobri como outrora,
Livre e limpo, como no princípio do mundo,
Envolvido na suavidade dos primeiros balanços,
Sentindo o perfume e o canto das horas primeiras!
Não direi do seu olhar!

Não direi do seu olhar!
Não direi da sua expressão de repouso!
Ainda não sei se era dele esse olhar,
Ou se nasceu de mim mesmo, num rápido instante de paz
e de libertação!

Augusto Frederico Schimdt
(1906-1965)

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Para atravessar contigo o deserto do mundo, abandonei os jardins do paraíso. E aprendi a viver em pleno vento, assim disse em versos Sophia.


Para atravessar contigo o deserto do mundo

Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

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segunda-feira, janeiro 14, 2008

Nunca, nunca mais. Nem de ti mesmo servo, nada te mude, grita por nós em seus versos Ricardo Reis.


Nunca

Nunca a alheia vontade, inda que grata,
Cumpras por própria.
Manda no que fazes,
Nem de ti mesmo servo.
Ninguém te dá quem és.
Nada te mude.
Teu íntimo destino involuntário
Cumpre alto.
Sê teu filho.

Ricardo Reis, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa

(1888-1935)

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No pranto de amor de Mario Quintana, nem tudo estará perdido enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome: Cecília...


In Memoriam

I

Seus poemas desenham seu fino hastil
suas corolas vibrantes como pequeninas violas
(ou era a vibração incessante dos grilos?)
seus poemas floriam na tapeçaria ondulante dos prados
onde os colhia a mão das eternamente amadas
(as que morreram jovens são eternamente amadas...)

II

Seus poemas,
dentre as páginas de um seu livro,
apareciam sempre de surpresa,
e era como se a gente descobrisse uma folha seca
um bilhete de outrora
uma dor esquecida
que têm agora o lento e evanescente odor do tempo...

III

E seus poemas eram, de repente, como uma prece jamais ouvida
que nossos lábios recitavam --- ó temerosa delícia!
como se, numa língua desconhecida,
sem querer, falassem
da brevidade
e da
eternidade da vida...

IV

Ah, aquela a quem seguiam os versos ondulantes como dóceis panteras
e deixava por todas as coisas o misterioso reflexo do seu sorriso;
e que na concha de suas mãos, encantada e aflita, recebia
a prata das estrelas perdidas...

V

Nem tudo estará perdido
enquanto nossos lábios não esquecerem teu nome: Cecília...

Mario Quintana

(1906-1994)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1rio_Quintana

Em Juca Mulato, Menotti del Picchia escreveu uma das mais belas páginas da Poesia em língua portuguesa. Uma verdadeira obra-prima.

Juca Mulato

Juca Mulato nasceu em Itapira, cidade da zona mogiana do Estado de São Paulo, em 1917. Seu pai, recém-formado em Direito e fazendeiro nessa cidade, acabara de publicar na Capital paulista seu poema Moisés. Exercia agora uma vaga advocacia numa terra quase sem demandas e dirigia o jornal local, Cidade de Itapira, em cujos prelos imprimiu o primeiro exemplar do seu poema.

Foi no ambiente da fazenda Santa Catarina da Capoeira do Meio e na paz e no silêncio do parque que se debruça sobre o Cubatão, bairro no qual serpeja o Rio da Penha, em cujas margens bivacavam ciganos, que a imagem do caboclo do Mato e sua alma lírica empolgaram o advogado-poeta.

E a Filha da Patroa?

Essa, ainda hoje, nascerá no coração de cada leitor do poema quando haja atingido a idade do amor. É uma idéia e um sonho. Continuará a lembrar, vida afora, a criatura que teria sido o complemento do seu ser, realização sempre sonhada e impossível de um perfeito amor ideal.

Compõem o poema o Céu e a Terra. Todas as coisas telúricas e celestes, o chão que abriga o homem e o alimenta e o que há no mistério do azul quando ele olha para as estrelas. Ali descobre uma nova e mágica dimensão do universo: os animais, como o prudente e confidente Pigarço e os lerdos bois pensativos e decorativos; o galo, clarim do dia que ilumina as coisas para a vida e oferece as maravilhas do mundo ao homem que acorda.

A fala do "Juca" é coloquial e divina. Sai da boca do homem e vem da conexão mágica que ele tem com as coisas. É que o universo é um eterno diálogo de vozes mudas. Cabe-lhe comunicá-las às demais criaturas. Ele é o intérprete da formidável comunhão espiritual que nos envolve numa harmoniosa coesão de vivências e mistérios regida pela fatalidade dessa divina força que é o amor ("...Che muove il sole e l`altre stelle...")

Germinal

1

Nuvens voam pelo ar como bandos de garças,
Artista boêmio, o sol, mescla na cordilheira
pinceladas esparsas
de ouro fosco. Num mastro, apruma-se a bandeira
de São João, desfraldando o seu alvo losango.

Juca Mulato cisma. A sonolência vence-o Vem, na tarde que expira e na voz de um curiango,
o narcótico do ar parado, esse veneno
que há no ventre da treva e na alma do silêncio.
Um sorriso ilumina o seu rosto moreno.

No piquete relincha um poldro; um galo álacre
tatala a asa triunfal, ergue a crista de lacre,
clarina a recolher entre varas de cerdos e
mexem-se ruivos bois processionais e lerdos
e, num magote escuro, a manada se abisma na treva.

Anoiteceu.

Juca Mulato cisma.

2

Como se sente bem recostado no chão!
Ele é como uma pedra, é como a correnteza,
uma coisa qualquer dentro da natureza,
amalgamada ao mesmo anseio, ao mesmo amplexo,
a esse desejo de viver grande e complexo
que tudo abarca numa força de coesão.
Compreende em tudo ambições novas e felizes,
tem desejo até de rebrotar raízes, deitar ramas pelo ar,
sorver, junto da planta, e sobre a mesma leiva,
o mesmo anseio de subir, a mesma seiva,
romper em brotos, florescer, frutificar!

3

"Que delícia viver! Sentir entre os protervos
renovos se escoar uma seiva alma viva
na tenra carne a remoçar o corpo moço...

" E um prazer bestial lhe encrespa a carne e os nervos;
afla a narina; o peito arqueja; uma lasciva
onda de sangue lhe incha as veias do pescoço...

Ei-lo, supino e só, na noite vasta. Um cheiro
acre de feno lhe entorpece o corpo langue
e, no torso trigueiro,
enroscam seus anéis serpentes de desejos
e um pubescente ansiar de abraços e de beijos
incendeia-lhe a pele e estua-lhe no sangue.

Juca Mulato cisma.

Escuta a voz em couro
dos batráquios, no açude, os gritos lancinantes
do eterno amor dos charcos.
É ágil como um poldro e forte como um touro;
no equilíbrio viril dos seus membros possantes
há audácias de coluna e elegância dos barcos.

O crescente, recurvo, a treva em brilho frange
e, na carne da noite, imerge-se e se abisma
como num peito etíope a ponta de uma alfange.

Juca Mulato cisma...

A natureza cisma.

4

Aflora-lhe no imo um sonho que braceja;
estira o braço, enrija os músculos, boceja,
supino fita o céu e diz em voz submissa:
"Que tens, Juca Mulato ?..." e, rebolcado na erva,
sentindo esse cansaço irritante que o enerva
deixa-se, mudo e só, quebrado de preguiça.

Cansado ele? E por quê? Não fôra essa jornada
a mesma luta, palmo a palmo, com a enxada
a suster no café as invasões da aninga?
E, como de costume, um cálice de pinga,
um cigarro de palha, uma jantinha à toa,
um olhar dirigido à filha da patroa?

Juca Mulato pensa: a vida era-lhe um nada...
Uns alqueires de chão, o cabo de uma enxada,
um cavalo pigarço, uma pinga da boa,
o cafezal verdoengo, o sol quente e inclemente...

Nessa noite, porém, parece-lhe mais quente
o olhar indiferente
da filha da patroa...

"Vamos, Juca Mulato, estás doido?
Entretanto, tem a noite lunar arrepios de susto,
parece respirar a fronde de um arbusto.
O ar é como um bafo, a água corrente, um pranto.
Tudo cria uma vida espiritual violenta.
O ar morno lhe fala, o aroma suave o tenta...

"Que diabo !" Volve aos céus as pupilas, à toa,
e vê, na lua, o olhar da filha da patroa...
Olha a mata: lá está! O horizonte lho esboça,
pressente-o em cada moita, enxerga-o em cada poça
e ele vibra, ele sonha e ele anseia, impotente,
esse olhar que passou, longínquo e indiferente!

5

Juca Mulato cisma. Olha a lua e estremece.
Dentro dele um desejo abre-se em flor e cresce
e ele pensa, ao sentir esses sonhos ignotos,
que a alma é como uma planta, os sonhos como os brotos,
vão rebentando nela e se abrindo em floradas...

Franjam de ouro, o ocidente, as chamas das queimadas,
Mal se pode conter de inquieto e satisfeito.
Advinha que tem qualquer coisa no peito
e às promessas do amor a alma escancara ansiado
como os áureos portais de um palácio encantado!...

Mas a mágoa que ronda a alegria de perto
entra no coração sempre que o encontra aberto...

Juca Mulato sofre... Esse olhar calmo e doce
fulgiu-lhe como a luz, como a luz apagou-se.
Feliz até então, tinha a alma adormecida....
Esse olhar que o fitou, o acordou para a vida!
A luz que nele viu deu-lhe a dor que agora o assombra,
como o sol que traz a luz e, depois, deixa a sombra...

6

E, na noite estival, arrepiadas, as plantas
tinham na negra fronde, umas roucas gargantas
bradando, sob o luar opalino, de chofre:
"Sofre, Juca Mulato, é tua sina, sofre...

Fechar ao mal de amor nossa alma adormecida
é dormir sem sonhar, é viver sem ter vida...
Ter, a um sonho de amor, o coração sujeito
é o mesmo que cravar uma faca no peito.
Esta vida é um punhal com dois gumes fatais:
não amar é sofrer; amar é sofrer mais"!

7

E, despertando à Vida esse caboclo rude,
alma cheia de abrolhos,
notou, na imensa dor de quem se desilude
que, desse olhar que amou, fugitivo e sereno,
só lhe restara no lábio um travo de veneno,
uma chaga no peito e lágrimas nos olhos!

A Serenata

1

Canta, Juca Mulato...
Ele pega na viola:
seu dedo nervoso os machetes esfrola.
Solta um gemido o aço vibrado
como um grito de dor de um peito esfaqueado.
É tão suave a canção, tão dolente e tão langue
que cada nota lembra uma gota de sangue
a fluir e a pingar dos lábios de uma chaga.
É noite. A brisa sopra uma carícia vaga.

A turba espera. O terreiro tem brilhos
quando, de chapa, a lua esplende nos ladrilhos
e, sentindo a paixão estuar-lhe a garganta,
Juca Mulato canta:
"Veio coleante, essa mágoa
arrastas triste e submisso;
também choro, veio dágua,
sem que ninguém dê por isso...

Saltas nos seixos de chofre.
Choras. No mundo inclemente,
só não chora quem não sofre
só não sofre quem não sente...

Procuras dentre os abrolhos
ver o céu que astros povoaram.
Eu também procuro uns olhos
que nunca me procuraram...

Os céus não vêem tua mágoa,
nem estas ela advinha...
Veio d’água, veio d’água,
Tua sorte é igual à minha.

Ora em bolhas vãs tu medras,
eu em sonhos bem mesquinhos,
Teu leito é cheio de pedras,
minha alma é cheia de espinhos...

Se uma rama se desfolha
sobre teu dorso e resvala,
corres doido atrás da folha
sem poder nunca alcançá-la.

Às vezes, também, risonho,
um sonho minh’alma junca,
Corro doido atrás do sonho
Sem poder tocá-lo nunca.

Ventura... doida corrida
de uma folha sobre um veio.
Folha... Esperança perdida
de um bem que nunca me veio.

Assim vou, sangrando mágoa
e doido, para onde for
veio d’água, veio d’água
corro atrás da minha dor!"

Alma Alheia

1

Que tens, Juca Mulato ?
Uma tristeza mansa
embaça-lhe o fulgor dos olhos de criança.
Ele é outro...

Um langor anda a abrasar-lhe a pele.
Não sabe definir o que há de novo nele.
Fuma e segue pelo ar uma espiral que esvoaça,
pensa que seu destino é igual a essa fumaça...

"A vida é mesmo assim..." ele cisma tristonho.
"Sai do fogo da dor a fumaça do sonho"...

Da cocheira, um nitrir, de intervalo a intervalo,
vibra no ar... É o pigarço. Esse pobre cavalo
anda esquecido e há muito que, sozinho,
sente a falta que faz o calor de um carinho.
Juca Mulato todo o dia vinha vê-lo...
Afagava-lhe o dorso, acamava-lhe o pelo,
e ele, baixando, quieto, as pálpebras vermelhas,
nitrindo e resfolgando, espetava as orelhas...
Juca Mulato, então, numa voz doce e calma,
dizia-lhe baixinho o que ele tinha n’alma.
Coisa de pouca monta: umas fanfarronadas,
uns receios pueris, façanhas de caçadas,
desafios na viola em noites de luar;
coisas que tinha pejo até de lhe contar,
que sussurrava a custo, onde, por entre os dentes,
a gente advinhava umas frases ardentes:
bocas mordendo um seio em que os bicos quentinhos
tinham a cor da rosa e a ponta dos espinhos...
Ele ria e a risada espoucava-lhe aos pinchos
e o pigarço sisudo explodia em relinchos
que diriam, talvez, traduzido em frases:
"Toma tento, Mulato! Olha bem o que fazes..."

Juca afagando-o, então, murmurava contente:
"Pigarço, você tem uma alma como a gente!"

Hoje, anda abandonado e pesa-lhe o abandono.
Há no seu manso olhar saudades de seu dono.
Quem não vê nesse olhar úmido e cor de enxofre
que esse cavalo sofre?

2

Vê uma ave voar na tarde calma e suave,
vem-lhe o desejo absurdo e doido de ser ave.
Quando junto a uma fonte acaso se debruça,
se a corrente soluça, ele também soluça...
Depois, envergonhado, encolhe-se, procura
no seu imo o porquê dessa vaga ternura.
Até vendo uma flor, comove-se, suspira...
"Juca: toma cuidado... Estás ficando gira...
Deixa de te arrastar, como um doido qualquer,
atrás da tentação de uns olhos de mulher!"

E resolve, consigo, ir altivo e insolente,
fingir que não padece e mostrar que não sente,
montar o seu pigarço, atacar a restinga
às foiçadas, beber um cálice de pinga
na venda do caminho e, entre parvos caipiras,
de mistura, contar três ou quatro mentiras
onde lampeja a faca, onde, aos uivos e aos brados
põe em fuga, triunfante, um bando de soldados!

Revive a ilusão!

Ele é outro! Salvou-se! Insidioso, de novo, um olhar meigo e doce
o alucina, o subjuga, o domina, o amolece...

E nem sabe porque humilhado obedece
à sugestão da luz que cintila naquele
lânguido e triste olhar que nunca olhou para ele.

Fascinação

Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! tudo ama! Há amor na alucinada
fascinação do abismo,
amor paradoxal, humano e forte,
que se traduz nas febres do sadismo,
nessa atração perpétua para o Nada,
nessa corrida doida para a Morte.

Por isso, quando as lianas
em lascívias florais cercam de abraços
o tronco hirsuto e grosso,
têm, no amplexo mortal, crueldades humanas.
Há no erótico ardor de enlaçá-lo, abraçá-lo,
a assassina violência de dois braços
crispados num pescoço
atenazando-o para estrangulá-lo!

É que o amor quer a morte. Num momento
resume a vida, os loucos entusiasmos
dos supremos espasmos...
Nesse furor que o invade,
tem a volúpia da ferocidade,
tem o delírio do aniquilamento!

É por isso que vês, por tudo
uma luta de morte, um desespero mudo:
a insídia da raiz que mina a terra e a esgota,
o caule que ergue o fuste, a rama, em sobressalto,
agitando pelo ar a própria dor ignota,
no torturante amor do mais puro e mais alto!

2

E, na noite estival,
enchendo o Espaço e o Tempo, a Luz e a Treva,
o turbilhão fantástico se eleva
do amor UniversaL. Tudo ama!
As estrelas no azul, os insetos na lama,
a luz, a treva, o céu, a terra, tudo,
num tumultuoso amor, num amor quieto e mudo,
tudo ama! Tudo ama!...

3

Juca Mulato freme. Imerge os olhos entre
as estrelas curiosas. Não sabe que anda o amor nos espaços profundos
a fecundar o ventre
das próprias nebulosas
na eterna gestação de novos mundos...

Ele é a matriz da vida: multiplica
seres e coisas, numa força eterna,
cria o verme, animais que andam de rastros.
Mata e ressurge, estiola e frutifica,
e, pelo espaço rútilo, governa
a prodigiosa rotação dos astros!

E a vertigem do amor, fascinadora,
tudo arrasta, fantástica, nos braços
e a terra que palpita, canta e chora,
ora imersa na treva ora imersa na aurora,
leva através do Tempo e dos Espaços...

Acendendo no olhar um lampejo divino,
Juca Mulato cede à vertigem que o enlaça
e brada num transporte:
"Arrasta-me também, no turbilhão que passa!
Leva-me ao teu destino,
Amor que vens para a Vida e que vais para a Morte!"

Lamentação

1

"Amor?
Receios, desejos,
promessas de paraísos,
depois sonhos, depois risos,
depois beijos! Depois...
E depois, amada?
Depois dores sem remédio,
depois pranto, depois tédio,
depois... nada!"

2

"Também como esse bosque eu tive outrora
na alma um bosque cerrado de emoções.
As palmeiras das minhas ilusões
iam levando o fuste espaço afora.

Floriam sonhos; era uma pletora
de crenças, de desejos, de ambições...
Não havia por todos os sertões
mais luxuriante e mais violenta flora.

Ai! Bosque real, é o tempo das queimadas!...
É agosto, é agosto! O fogo arde o que existe
em turbilhões sinistros e medonhos. Ai de nós!...

Somos almas desgraçadas,
pois na luz de um olhar lânguido e triste
também ardeu o bosque dos meus sonhos..."

3

"Água cantante, soluçante, esse gemente
marulho triste, quantas tristes cismas trás...

E fica incerta, ao ouvir-te a voz, a dor da gente,
se vais cantando por ansiar o que há na frente
ou soluçando pelo que deixaste atrás...

Água cantante, água estuante, é singular
a semelhança em que te iguala à minha sorte:
vais para a frente e nunca mais hás de voltar,
vens da montanha e vais correndo para o mar,
venho da vida e vou correndo para a morte.

Água cantante, ai, como tu, esta alma embrenho
nas incertezas de caminhos que não sei...
E, na inconstância em que me agito, só obtenho
essa ânsia imensa de deixar o que já tenho,
depois a dor de não ter mais o que deixei!"

4

Tenho uma santa em casa; o seu olhar encanta.
O olhar dela é, porém, igualzinho ao da santa.

Quando rezo, nem sei, é como o olhar da corça,
tem, na própria fraqueza, a sua própria força.

Quando o fito minha alma enche-se da incerteza
que há na canoa sem dono á flor da correnteza.

Ele é tal qual o sol, indiferente e mudo,
sem saber quem aclara anda aclarando tudo...

Mas no olhar que o fitou brilha, constantemente,
um reflexo de luz ambicionada e ausente.

Eu nunca vi o mar, mas vendo esse olhar penso
num barco que se afasta onde se agita um lenço...

Ou no doido terror que, em meio de procelas,
há num casco sem leme ou num barco sem velas...

Creio ver o meu vulto em teus olhos, tão vago
como as sombras que espelham a água morta
de um lago.
Eu bem sei que, tal qual na líquida planície,
o meu vulto não vai além da superfície.

Fica à tona, a boiar nessa pupila absorta
como na água parada alguma folha morta..."

5

"Pigarço: a dor me aquebranta...
Quando lembro o olhar que adoro
e que nunca esquecerei,
ah! Sinto um nó na garganta
e choro, pigarço, choro,
eu que até chorar não sei...

Quando, a trote, ela nos via,
debruçada na janela,
nós levávamos, após,
com o pó que do chão se erguia
o nosso olhar cheio dela
e o dela cheio de nós...

Então, pouco me importava
que seu olhar nos seguisse...
Galopava-se a valer...
Quando esse olhar eu olhava
era como se não o visse
tanto o olhava sem ver!

Hoje pago essa ousadia...
Ela os olhos de mi tolhe.
Queixar-me disso por que ?
Antes era eu que não o via,
agora, por mais que me olhe,
é ela que não me vê.

Sou um caboclo do mato
que ronda a luz de uma estrela...
Já viste uma coisa assim?
E o pobre Juca Mulato
morrerá por causa dela
e tu, por causa de mim...

Eu da luz desse olhar garço,
tu da dor que te machuca,
morreremos e, depois,
eu fico sem meu pigarço,
meu pigarço sem seu Juca
e o olhar dela... sem nós dois!"

Presságios

1

Juca Mulato sofre. Em cismas se aquebranta.
Uma viola geme, uma voz triste canta:

"Antes de amar eu dizia:
para cortar na raiz
esta constante agonia
preciso amar algum dia,
amando serei feliz". "Amei... desventura minha!
Quis curar-me e piorei.
O amor só mágoas continha
e aos tormentos que já tinha,
novos tormentos juntei".

2

A cantiga, a gemer, nos ecos agoniza.
A vaga sugestão dessa angústia imprecisa
contamina-lhe a dor que o tortura sem pausa. Juca sofre...

Por que? Não advinha a causa.
Só sabe que, em seu peito, o olhar amado e langue,
deixa um rastro de luz como um rastro de sangue...

Tornou-o, pouco a pouco, a imensa dor que o oprime,
pálido como a cera e magro como um vime.
Tem olheiras cercando os grandes olhos lassos
cor do manto que traz Nosso Senhor dos Passos
quando carrega a cruz na procissão das Dores
no mais tristonho andor de todos os andores...
Mas por que sofre assim? Talvez mesmo ande nisso
artimanhas do Demo e coisas de feitiço...
Precisa, sem demora, ir uma sexta-feira,
à tapera do Roque, abrir sua alma inteira,
contar-lhe o mal que sofre e do peito arrancar
essa mágoa, essa luz, esse olhar!

A Mandiga

1

Juca Mulato apeia.
É macabro o pardieiro.
Junto à porta cochila o negro feiticeiro.
A pele molambenta o esqueleto disfarça.
Há uma faísca má nessa pupila garça,
quieta, dormente, como as águas estagnadas.

Fuma: a fumaça o envolve em curvas baforadas.
Cuspinha; coça a perna onde a sarna esfarinha
a pele; pachorrento inda uma vez cuspinha.

Com o seu sinistro olhar o feiticeiro mede-o.
- Olha, Roque, você me vai dar um remédio.
Eu quero me curar do mal que me atormenta.

- Tenho ramos de arruda, urtigas, água benta,
uma infusão que cura a espinhela e a maleita,
figas para evitar tudo que é coisa feita...
Com uma agulha e um cabelo, enrolado a capricho,
à mulher sem amor faço criar rabicho.

Olho um rasto, depois de rezar um bocado
vou direitinho atrás do cavalo roubado.
Com umas ervas que sei, eu faço, de repente,
do caiçara mais mole, um caboclo valente!
Dize, Juca Mulato, o mal que te tortura.
- Roque, eu mesmo não sei de este mal tem cura...

- Sei rezas com que venço a qualquer mau olhado,
breves para deixar todo o corpo fechado.
Não há faca que o vare e nem ponta de espinho:
fica o corpo tal qual o corpo do Dioguinho...
Mas de onde vem o mal que tanto de abateu?

- Ele vem de um olhar que nunca será meu...
Como está para o sol a luz morta da estrela
a luz do próprio sol está para o olhar dela...

Parece o seu fulgor quando o fito direito,
uma faca que alguém enterra no meu peito,
veneno que se bebe em rútilos cristais
e, sabendo que mata, eu quero beber mais...

- Eu já compreendo o mal que teu peito povoa.
Dize Juca Mulato, de quem é esse olhar?
- Da filha da patroa. - Juca Mulato! Esquece o olhar inatingível!
Não há cura, ai de ti, para o amor impossível.
Arranco a lepra do corpo, estirpo da alma o tédio,
só para o mal de amor nunca encontrei remédio...
Como queres possuir o límpido olhar dela ?
Tu és qual um sapo a querer uma estrela...

A peçonha da cobra eu curo... Quem souber
cure o veneno que há no olhar de uma mulher!
Vencendo o teu amor, tu vences teu tormento.
Isso conseguirás só pelo esquecimento.
Esquecer um amor dói tanto que parece
que a gente vai matando um filho que estremece
ouvindo, com terror, no peito, este estribilho:
"Tu não sabes, cruel, que matas o teu filho?"

E, quando se estrangula, aos seus gemidos loucos,
a gente quer que viva e vai matando aos poucos!
Foge! Arrasta contigo essa tortura imensa
que o remédio é pior do que a própria doença,
pois, para se curar um amor tal qual esse...

- Que me resta fazer ? - Juca Mulato: esquece!

A Voz das Coisas E Juca ouviu a voz das coisas. Era um brado:
"Queres tu nos deixar, filho desnaturado?"

E um cedro o escarneceu: "Tu não sabes, perverso,
que foi de um galho meu que fizeram teu berço?

E a torrente que ia rolar no abismo:
"Juca, fui eu quem deu a água para o teu batismo".

Uma estrela a fulgir, disse da etérea altura:
"Fui eu que iluminei a tua choça escura
no dia em que nasceste. Eras franzino e doente.
E teu pai te abraçou chorando de contente...
- Será doutor! - a mãe disse, e teu pai, sensato:
- Nosso filho será um caboclo do mato,
forte como a peroba e livre como o vento! -
Desde então foste nosso e, desde esse momento,
nós te amamos seguindo o teu incerto trilho
com carinhos de mãe que defende seu filho!

" Juca olhou a floresta: os ramos, nos espaços,
pareciam querer apertá-lo entre os braços!

"Filho da mata, vem! Não fomos nós, ó Juca,
o arco do teu bodoque, as grades da arapuca,
o varejão do barco e essa lenha sequinha
que de noite estalou no fogo da cozinha?
Depois, homem já feito, a tua mão ansiada
não fez, de um galho tosco, um cabo para a enxada?"

"Não vás" - lhe disse o azul - "Os meus astros ideais
num forasteiro céu tu nunca os verás mais.
Hostis, ao teu olhar, estrelas ignoradas
hão de relampejar como pontas de espadas.
Suas irmãs daqui, em vão, ansiosas, logo,
irão te procurar com seus olhos de fogo...
Calcula, agora, a dor destas pobres estrelas
correndo atrás de quem anda fugindo delas..."

Juca olhou para a terra e a terra muda e fria
pela voz do silêncio ela também dizia:

"Juca Mulato, és meu! Não fujas que eu te sigo.
Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.
Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a esfera
há uma cova que se abre, há meu ventre que espera.

Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,
e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.
Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,
buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo ?
Tu queres esquecer? Não fujas ao tormento.
Só por meio da dor se alcança o esquecimento.
Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,
que, na terra natal, a própria dor dói menos...
E fica que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)
no pedaço de chão em que a gente nasceu!"

Ressurreição

1

Coqueiro! Eu te compreendo o sonho inatingível:
queres subir ao céu, mas prende-te a raiz...
O destino que tens de querer o impossível
é igual a este meu de querer ser feliz.

Por mais que bebas a seiva e que as forças recolhas,
que os verdes braços teus ergas aos céus risonhos,
no último esforço vão, caem-te murchas as folhas
e a mim, murchos, os sonhos!
Ai! coqueiro do mato! Ai! coqueiro do mato!
Em vão tentas os céus escalar na investida...
Tua sorte é tal qual a de Juca Mulato...
Ai! tu sempre serás um coqueiro do mato...
Ai! Eu sempre serei infeliz nesta vida!"

2

"Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...
este sonho que ergui, o poderia por
onde quisesse, longe até da minha dor,
em um lugar qualquer onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,
tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,
eu coloquei muito alto o meu sonho de amor...
Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.
O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade
teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,
e oculta-o sem saber se depois o achará...

E quando vai buscar sua felicidade,
ele, que poderia encontrá-la em si mesmo,
escondeu-a tão bem que nem sabe onde está!"

3

E Mulato parou.
Do alto daquela serra,
cismando, o seu olhar era vago e tristonho:
"Se minha alma surgiu para a glória do sonho,
o meu braço nasceu para a faina da terra."

Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,
todo o heróico labor que se agita na empreita,
palpitou na esperança imensa das floradas,
pressentiu a fartura enorme da colheita...

Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...
Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.
Juca Mulato volta outra vez para a terra,
procura o teu amor numa alma irmã da tua.

Esquece calmo e forte. O destino que impera
um recíproco amor às almas todas deu.
Em vez de desejar o olhar que te exaspera,
procura esse outro olhar que te espreita e te espera,
que há, por certo, um olhar que espera pelo teu..."

Menotti Del Picchia

(1892-1988)

Mais sobre Menotti del Picchia em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Menotti_Del_Picchia

Aqueles que me têm muito amor não sabem o que sinto e o que sou. Não sabem que sinto essa Dor, vontade doida de gritar, lamenta Florbela Espanca.

Aqueles que me têm muito amor

Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou...
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!

Sinto os passos de Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio,
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!

Florbela Espanca

(1894-1930)


Mais sobre Florbela Espanca em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca


As palavras são como um cristal, diz Eugénio de Andrade. E pergunta:quem as escuta, quem as recolhe, assim, cruéis, desfeitas, nas suas conchas puras?


As Palavras

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade

(1923-2005)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Eug%C3%A9nio_de_Andrade

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Preso à sua classe e a algumas roupas, Drummond vai de branco pela rua cinzenta. E nasceu uma flor, que furou o asfalto, a náusea, o tédio e o ódio.


A flor e a náusea

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.  

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Drummond_de_Andrade

A náusea do estômago à alma, entre tomar alguma coisa ou suicidar-se, Álvaro de Campos decide E-xis-tir. E pede: dêem-me de beber, que não tenho sede.


Bicarbonato de sódio


Súbita, uma angústia...

Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!

Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...

Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,

Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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Em algum lugar teu coração bate por mim, disse Vinicius de Moraes à amiga, infinitamente amiga. E implorou: vem te afogar em mim, em mim como no mar.


A ausente

Amiga, infinitamente amiga
Em algum lugar teu coração bate por mim
Em algum lugar teus olhos se fecham à idéia dos meus.
Em algum lugar tuas mãos se crispam, teus seios
Se enchem de leite, tu desfaleces e caminhas
Como que cega ao meu encontro...
Amiga, última doçura
A tranqüilidade suavizou a minha pele
E os meus cabelos. Só meu ventre
Te espera, cheio de raízes e de sombras.
Vem, amiga
Minha nudez é absoluta
Meus olhos são espelhos para o teu desejo
E meu peito é tábua de suplícios
Vem. Meus músculos estão doces para os teus dentes
E áspera é minha barba. Vem mergulhar em mim
Como
no mar, vem nadar em mim como no mar
Vem te afogar em mim, amiga minha
Em mim como no mar...

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

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De tantos e tão belos poemas que criou, Manuel Bandeira ainda se deu ao trabalho de escrever Antologia.


Antologia

A vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.
Os corpos se entendem mas as almas não.
A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

Vou-me embora p'ra Pasárgada!
Aqui eu não sou feliz.
Quero esquecer tudo:
- A dor de ser homem...
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Quero descansar
Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei...
Na vida inteira que podia ter sido e não foi.

Quero descansar.
Morrer.
Morrer de corpo e alma.
Completamente.

(Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.)

Quando a indesejada das gentes chegar
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.

Manuel Bandeira

(1886-1968)

Mais sobre Manuel Bandeira em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

No que ouvimos e chamamos de silêncio, um silêncio profundo, se esconde a intensa vontade de gritar de uma mulher. A mulher Clarice Lispector.


Dá-me a tua mão

Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.
De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.
Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio
e nesse silêncio profundo se esconde
minha intensa vontade de gritar.

Clarice Lispector
(1920-1977)

Mais sobre Clarice Lispector em

http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector