quinta-feira, dezembro 31, 2015
Drummond diz que para ganhar um ano-novo que mereça este nome, você tem de fazê-lo novo. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.
Receita de Ano Novo
Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ver,
novo
até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta ou recebe mensagens?
passa telegramas?).
Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.
Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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quinta-feira, dezembro 24, 2015
Poema de Natal, de Vinícius de Moraes, por ele mesmo. Para lembrar e ser lembrados.
Poema de Natal
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.
Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados,
Para chorar e fazer chorar,
Para enterrar os nossos mortos -
Por isso temos braços longos para os adeuses,
Mãos para colher o que foi dado,
Dedos para cavar a terra.
Assim será a nossa vida;
Uma tarde sempre a esquecer,
Uma estrela a se apagar na treva,
Um caminho entre dois túmulos -
Por isso precisamos velar,
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito que dizer:
Uma canção sobre um berço,
Um verso, talvez, de amor,
Uma prece por quem se vai -
Mas que essa hora não esqueça
E que por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre,
Para a participação da poesia,
Para ver a face da morte -
De repente, nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte apenas
Nascemos, imensamente.
Vinícius de Moraes
(1913-1980)
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segunda-feira, dezembro 21, 2015
Agora vou-me. Ou me vão? Ou é vão ir ou não ir? Drummond e suas dúvidas em sua canção final.
Canção final
Oh! se te amei, e quanto!
Mas não foi tanto assim.
Até os deuses claudicam
em nugas de aritmética.
Meço o passado com régua
de exagerar as distâncias.
Tudo tão triste, e o mais triste
é não ter tristeza alguma.
É não venerar os códigos
de acasalar e sofrer.
É viver tempo de sobra
sem que me sobre miragem.
Agora vou-me. Ou me vão?
Ou é vão ir ou não ir?
Oh! se te amei, e quanto,
quer dizer, nem tanto assim.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sábado, dezembro 19, 2015
Dizem que finjo ou minto tudo que escrevo. Eu simplesmente sinto com a imaginação, não uso o coração, admite Fernando Pessoa.
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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quarta-feira, dezembro 16, 2015
Manoel de Barros não quer saber como as coisas se comportam, quer inventar comportamento para as coisas. Apenas ele não tem polimentos de ancião.
Comportamento
Não quero saber como as coisas se comportam.
Quero inventar comportamento para as coisas.
Li uma vez que a tarefa mais lídima da poesia é a
de equivocar o sentido das palavras
Não havendo nenhum descomportamento nisso
senão que alguma experiência linguística.
Noto que às vezes sou desvirtuado a pássaros, que
sou desvirtuado em árvores, que sou desvirtuado
para pedras.
Mas que essa mudança de comportamento gental
para animal vegetal ou pedral
É apenas um descomportamento semântico.
Se eu digo que grota é uma palavra apropriada para
ventar nas pedras,
Apenas faço o desvio da finalidade da grota que
não é a de ventar nas pedras.
Se digo que os passarinhos faziam paisagens na
minha infância,
É apenas um desvio das tarefas dos passarinhos que
não é a de fazer paisagens.
Mas isso é apenas um descomportamento linguístico que
não ofende a natureza dos passarinhos nem das grotas.
Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.
Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro –
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.
Manoel de Barros
(1916-2014)
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(1916-2014)
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terça-feira, dezembro 15, 2015
Faça qualquer coisa, mas pelo amor de Deus, ou de nós dois, seja. É só o que pede Leminski ao seu amor.
Objeto
Objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo
seja a estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza
faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois
seja.
Paulo Leminski
(1944-1989])
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quinta-feira, dezembro 10, 2015
Até morrer estarei enamorada de coisas impossíveis. Sem mais nada além de mim, numa eternidade inútil, confessa Cecília.
Eternidade inútil
Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:
tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.
Não chorarei minha triste brevidade
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n'água.
A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.
O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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Por quê?
Por quê?
Por que nascemos para amar, se vamos morrer?
Por que morrer, se amamos?
Por que falta sentido
ao sentido de viver, amar, morrer?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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quarta-feira, dezembro 09, 2015
Para Manuel Bandeira, a alma é que estraga o amor. Se queres sentir a felicidade de amar, esquece-a e deixa teu corpo entender-se com outro corpo, porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Arte de amar
Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus, ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.
Deixa teu corpo entender-se com outro corpo.
Porque os corpos se entendem, mas as almas não.
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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segunda-feira, dezembro 07, 2015
Bem que o mundo não seria se o nosso amor lhe faltasse. Mas as manhãs que não temos são nossos lençóis de linho, diz todo o amor de José Saramago.
Teu corpo de terra e água
Teu corpo de terra e água
Onde a quilha do meu barco
Onde a relha do arado
Abrem rotas e caminho.
Teu ventre de seivas brancas
Tuas rosas paralelas
Tuas colunas teu centro
Teu fogo de verde pinho
Tua boca verdadeira
Teu destino minha alma
Tua balança de prata
Teus olhos de mel e vinho
Bem que o mundo não seria
Se o nosso amor lhe faltasse
Mas as manhãs que não temos
São nossos lençóis de linho
José Saramago
(1922-2010)
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domingo, dezembro 06, 2015
Depois que todos foram, foi também o dia. E ficaram entre as sombras das áleas apertadas eu e a minha agonia, quem eu fui e quem sou, só eu e eu sem mim, eu e quem sei não ser, lembra com tristeza Fernando Pessoa.
Depois
Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas do ermo parque
Eu e a minha agonia.
A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.
Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.
Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, dezembro 05, 2015
O amor em tercetos, por Thiago de Mello.
Tercetos de amor
§ Só agora aprendi
que amar é ter e reter.
Foi quando te vi.
§ Vi quando a rosa se abriu.
Como a eternidade
pode ser tão fugaz?
§ Não sei quando é o mar,
ou se é o sol dos teus cabelos.
Tudo são funduras.
§ Na entressombra, o sabre
se estira na relva morna.
O nenúfar se abre.
§ Brilha um dorso: és tu.
Encontro no teu ventre
a explicação da luz.
Thiago de Mello
(1926)
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sexta-feira, dezembro 04, 2015
Na ode de Ricardo Reis, cada um cumpre o destino que lhe cumpre e deseja o destino que deseja. Nem cumpre o que deseja, nem deseja o que cumpre.
Cada um
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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quarta-feira, dezembro 02, 2015
Um dia e a vida. Segundo uma andorinha cantadora e um poeta com seus versos.
Andorinha
Andorinha lá fora está dizendo:
— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Manuel Bandeira
(1886-1968)
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segunda-feira, novembro 30, 2015
Mario Quintana fez um poema belo e alto como um girassol de Van Gogh. E quer saber em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?
Eu fiz um poema
Eu fiz um poema belo
e alto
como um girassol de Van Gogh
como um copo de chope sobre o mármore
de um bar
que um raio de sol atravessa
eu fiz um poema belo como um vitral
claro como um adro...
Agora
não sei que chuva o escorreu
suas palavras estão apagadas
alheias uma à outra como as palavra de um dicionário.
Eu sou como um arqueólogo decifrando as cinzas de uma cidade morta.
O vulto de um velho arquéologo curvado sobre a terra...
Em que estrela, amor, o teu riso estará cantando?
Mario Quintana
(1906-1994)
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domingo, novembro 29, 2015
Por muito tempo, Drummond achou que ausência é falta. E que falta nós sempre vamos sentir de Drummond.
Ausência
Por muito tempo achei que ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, esta ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sábado, novembro 28, 2015
Dormes, que penso e mensagens tristes lhe envio. Pensamentos, nada mais, de Cecília em seu acalanto.
Acalanto
Dorme, que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.
Eatarás vendo. Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.
Dorme, que eu penso.
Que eu penso neste navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio.
Pensamentos - nada mais.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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domingo, novembro 22, 2015
Tomara, apenas uma palavra. E Vinicius disse tudo que gostaria que ela entendesse.
Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho
Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz
E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz
E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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sexta-feira, novembro 20, 2015
O fundo da noite guarda silêncios. Mas para a menina de Flora Figueiredo, cai um pingo de luz, amanhece.
Como nascem as manhãs
O fundo dos olhos da noite
guarda silêncios.
Esconde na retina
a menina que corre descalça em campo aberto.
Pálpebras cerradas, a noite emudece.
A menina com medo
faz um furo no escuro com a ponta do dedo.
Cai um pingo de luz.
Amanhece.
Flora Figueiredo
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quinta-feira, novembro 19, 2015
Ela não mentiu gozo, prazer, lascívia. E ainda perguntou: por que haverias de querer minha alma na tua cama?
E por que haverias de querer...
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas,ásperas,
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo.Obriga-me.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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terça-feira, novembro 17, 2015
Quem é que semeia o vento e colhe a tempestade? Para Vinicius de Moraes, só a mulher amada, o princípio e o fim de todas as coisas.
A brusca poesia da mulher amada (II)
A mulher amada carrega o cetro, o seu fastígio
É máximo. A mulher amada é aquela que aponta para a noite
E de cujo seio surge a aurora. A mulher amada
É quem traça a curva do horizonte e dá linha ao movimento dos
astros.
Não há solidão sem que sobrevenha a mulher amada
Em seu acúmen. A mulher amada é o padrão índigo da cúpula
E o elemento verde antagônico. A mulher amada
É o tempo passado no tempo presente no tempo futuro
No sem tempo. A mulher amada é o navio submerso
É o tempo submerso, é a montanha imersa em líquen.
É o mar, é o mar, é o mar a mulher amada
E sua ausência. Longe, no fundo plácido da noite
Outra coisa não é senão o seio da mulher amada
Que ilumina a cegueira dos homens. Alta, tranqüila e trágica
É essa que eu chamo pelo nome de mulher amada.
Nascitura. Nascitura da mulher amada
É a mulher amada. A mulher amada é a mulher amada é a mulher
amada
É a mulher amada. Quem é que semeia o vento? – a mulher amada!
Quem colhe a tempestade? – a mulher amada!
Quem determina os meridianos? – a mulher amada!
Quem a misteriosa portadora de si mesma? A mulher amada.
Talvegue, estrela, petardo
Nada a não ser a mulher amada necessariamente amada
Quando! E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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domingo, novembro 15, 2015
Drummond aprendeu que o amor no claro é sempre triste. Como um menino desobediente, ele disse tudo a alguém, alguém que agora sabe e sempre saberá.
Não se mate
Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo:
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira
ninguém sabe
o que será.
Inútil você resistir
ou mesmo suicidar-se.
Não se mate, oh não se mate,
Reserve-se todo para as bodas que ninguém sabe
quando virão,
se é que virão.
O amor, Carlos, você telúrico,
a noite passou em você,
e os recalques se sublimando,
lá dentro um barulho inefável,
rezas,
vitrolas,
santos que se persignam,
anúncios do melhor sabão,
barulho que ninguém sabe
de quê, praquê.
Entretanto você caminha
melancólico e vertical.
Você é a palmeira,você é o grito
que ninguém ouviu no teatro
e as luzes todas se apagam.
O amor no escuro, não, no claro,
é sempre triste, meu filho, Carlos,
mas não diga nada a ninguém,
ninguém sabe nem saberá.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1997)
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sexta-feira, novembro 13, 2015
Um homem do mundo perguntou a Adélia Prado: o que você pensa do sexo? Uma das maravilhas da criação, ela respondeu.
Entrevista
Um homem do mundo me perguntou:
o que você pensa do sexo?
Um das maravilhas da criação, eu respondi.
Ele ficou atrapalhado, porque confunde as coisas
e esperava que eu dissesse maldição,
só porque antes lhe confiara:
o destino do homem é a santidade.
A mulher que me perguntara cheia de ódio:
você raspa lá? Perguntou sorrindo,
achando que assim melhor me assassinava.
Magníficos são o cálice e a vara que ele contém,
peludo ou não.
Santo, santo, santo é o amor de Deus,
não porque uso luva ou navalha.
Que pode contra ele o excremento?
Mesmo a rosa, que pode a seu favor?
"Se cobre a multidão dos pecados e é benigno,
como a morte duro, como o inferno tenaz",
descansa em teu amor, que bem estás.
Adélia Prado
(1935)
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quinta-feira, novembro 12, 2015
Para Abgar Renault, a vida sempre tem uma faca na mão. Vai direto ao coração, dói em tudo, torna toda a poesia um jogo raso e inútil.
A vida tem uma faca na mão
Vamos parar de ler. Paremos de escrever
Olhos e mãos circulam no papel
ao serviço da dor e da desgraça,
mas as palavras são frias e sem fel
para exprimir o desespero dessa taça.
Ninguém sabe escrever. E ninguém pode ler
o que fica, depois de tanta luta fútil,
da escuridão desvirginada do teu ser
na indiferença de uma folha de papel.
Hoje, ontem, amanhã - amanhã sobretudo -
a vida sempre tem uma faca na mão,
vai sob as unhas, vai direto ao coração,
dói nos olhos, nos pés, dói na alma, dói em tudo,
torna toda a poesia um jogo raso e inútil.
Abgar Renault
(1901-1995)
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quarta-feira, novembro 11, 2015
Para Ricardo Reis, a realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. E os deuses são deuses porque não se pensam.
Segue o teu destino
Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.
A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.
Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.
Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. A resposta
Está além dos deuses.
Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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terça-feira, novembro 10, 2015
Pouco me importa, disse Alberto Caeiro. O que? Não sei, pouco me importa também.
Pouco me importa.
Pouco me importa o que?
Não sei: pouco me importa.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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segunda-feira, novembro 09, 2015
Um apaixonado Augusto Frederico Schmidt disse à mulher amada: eu nem quero te amar, porque te amo demais. E o poeta se perdeu na dialética do amor.
De Amor
Chegaria tímido e olharia tua casa,
A tua casa iluminada.
Teria vindo por caminhos longos
Atravessando noites e mais noites.
Olharia de longe o teu jardim.
Um ar fresco de quietação e repouso
Acalmaria a minha febre
E amansaria o meu coração aflito.
Ninguém saberia do meu amor:
Seria manso como as lágrimas,
Como as lágrimas de despedida.
Meu amor seria leve como as sombras.
Tanto receio de te amar, tanto receio...
A sombra do meu amor
Poderia agitar teu sono, perturbar o teu sossego...
Eu nem quero te amar, porque te amo demais.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
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Augusto Frederico Schmidt
domingo, novembro 08, 2015
A menina dança sozinha, por um momento. E sua mão ainda erguida segura no ar o poema de Mario Quintana.
Dança
A menina dança sozinha
por um momento.
A menina dança sozinha
com o vento, com o ar, com
o sonho de olhos imensos...
A forma grácil de suas pernas
ele é que as plasma, o seu par
de ar
de vento,
o seu par fantasma...
Menina de olhos imensos,
tu, agora, paras,
mas a mão ainda erguida
segura ainda no ar
o hastil invisível
deste poema!
Mario Quintana
(1906-1994)
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sábado, novembro 07, 2015
Paulo Leminski diz que ninguém nunca chegou atrasado. Bençãos e desgraças vêm sempre no horário.
Atraso pontual
Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relogio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vêm sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?
Paulo Leminski
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sexta-feira, novembro 06, 2015
Há muito tempo já que não escrevo um poema de amor. E é o que eu sei fazer com mais delicadeza, diz o coração de Miguel Torga.
Quase um poema de amor
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.
Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
--- Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
Miguel Torga
(1907-1995)
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quinta-feira, novembro 05, 2015
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino. E quis beijar-te num vago carinho agradecido, diz o amor de Vinicius a uma mulher.
A uma mulher
Quando a madrugada entrou eu estendi o meu peito nu sobre o teu peito
Estavas trêmula e teu rosto pálido e tuas mãos frias
E a angústia do regresso morava já nos teus olhos.
Tive piedade do teu destino que era morrer no meu destino
Quis afastar por um segundo de ti o fardo da carne
Quis beijar-te num vago carinho agradecido.
Mas quando meus lábios tocaram teus lábios
Eu compreendi que a morte já estava no teu corpo
E que era preciso fugir para não perder o único instante
Em que foste realmente a ausência de sofrimento
Em que realmente foste a serenidade
Vinicius de Moraes
(1923-1980)
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terça-feira, novembro 03, 2015
Não te fies do tempo nem da eternidade. Apressa-te, amor, que amanhã eu morro e não te digo, pede Cecília em uma de suas canções.
Canção
Não te fies do tempo nem da eternidade,
que as nuvens me puxam pelos vestidos
que os ventos me arrastam contra o meu desejo!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã morro e não te vejo!
Não demores tão longe, em lugar tão secreto,
nácar de silêncio que o mar comprime, o lábio,
limite do instante absoluto!
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te escuto!
Aparece-me agora, que ainda reconheço
a anêmona aberta na tua face
e em redor dos muros o vento inimigo...
Apressa-te, amor, que amanhã eu morro,
que amanhã eu morro e não te digo...
Cecília Meireles
(1901-1964)
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segunda-feira, novembro 02, 2015
João Cabral de Melo Neto diz que as amadas rebentam nas fontes do poema. Mas uma delas não sabe onde o encontrar.
As amadas
As amadas rebentam nas fontes do poema,
as amadas não são a filha do rei,
uma delas não sabe onde me encontrar;
no pensamento vizinho ao meu
cresce o desejo das amadas;
vou apanhar os peixes da lua
para a fome das amadas.
Mas meu quotidiano irreparável
perdendo suas formas volantes:
- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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- Por que as nuvens baixas
pesando nos meus olhos?
Onde as amadas para minha espera?
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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domingo, novembro 01, 2015
Sentimento do Mundo. Poucos, muito poucos, como Drummond, sabem o seu significado.
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1997)
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sábado, outubro 31, 2015
A vontade de amar e o hábito de sofrer nasceram com Drummond. Para o poeta, Itabira é apenas uma fotografia na parede, mas como dói.
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Carlos Drummond de Andrade
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sexta-feira, outubro 30, 2015
Para Mario Quintana, a vida é bela, a vida é louca. Então, por que chorar?
A canção da vida
A vida é louca
a vida é uma sarabanda
é um corrupio...
A vida múltipla dá-se as mãos como um bando
de raparigas em flor
e está cantando
em torno a ti:
Como eu sou bela
amor!
Entra em mim, como em uma tela
de Renoir
enquanto é primavera,
enquanto o mundo
não poluir
o azul do ar!
Não vás ficar
não vás ficar
aí...
como um salso chorando
na beira do rio...
(Como a vida é bela! como a vida é louca!)
Mario Quintana
(1906-1994)
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quinta-feira, outubro 29, 2015
Eu te direi as grandes palavras. As que conjugam com as grandes verdades e saem do sentimento mais fundo, diz ao seu amor Augusto Frederico Schmidt.
Compreensão
Eu te direi as grandes palavras,
As que parecem sopradas de cima.
Eu te direi as grandes palavras,
As que conjugam com as grandes verdades,
E saem do sentimento mais fundo,
Como os animais marinhos das águas lúcidas.
Eu te direi a minha compreensão do teu ser,
E sentirei que te transfiguras a ti mesmo revelada.
E sentirei que te libertei da solidão
Porque desci ao teu ser múltiplo e sensível.
Quero descer às tuas regiões mais desconhecidas
Porque és minha Pátria
As tuas paisagens são as da minha saudade.
Quero descer ao teu coração como se descesse ao mar,
Quero chegar à tua verdade que está sobre as águas.
Quero olhar o teu pensamento que está sobre as águas
E é azul
Como este céu cortado pelas aves,
Como este céu limpo e mais fundo que o mar.
Quero descer a ti e ouvir
As tuas manhãs acordadas pelos galos.
Quero ver a tua tarde banhada de róseo como nuvens frágeis
tangidas pelo ventos
Quero assistir à tua noite e ao sacrifício dos teus martírios.
Oh! estrela, oh! música,
Oh! tempo, espaço meu!
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
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quarta-feira, outubro 28, 2015
Objeto do meu mais desesperado desejo, faça alguma coisa. Mas pelo amor de Deus, um de nós dois seja, grita o coração de Leminski.
Objeto
objeto
do meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem arde e não vejo
seja a estrela que me beija
oriente que me veja
azul amor beleza
faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
um de nós dois
seja
Paulo Leminski
(1944-1989)
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segunda-feira, outubro 26, 2015
Adélia Prado quis com paixão o seu vestido de amante. E na memória guardada, ela está no cinema e deixa que segurem a sua mão.
O vestido
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo , volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
Adélia Prado
(1935)
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domingo, outubro 25, 2015
De longe te hei de amar. Cecilia Meireles sabe que o amor é saudade e o desejo a constância.
De longe te hei de amar
De longe te hei de amar,
- da tranquila distância
em que o amor é saudade
e o desejo a constância.
Do divino lugar
onde o bem da existência
é ser eternidade
e parecer ausência.
Quem precisa explicar
o momento e a fragrância
da Rosa, que persuade
sem nenhuma arrogância?
E, no fundo do mar,
a estrela, sem violência,
cumpre a sua verdade,
alheia à transparência.
Cecília Meireles
(1901-1964)
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Cecília Meireles
sábado, outubro 24, 2015
Dói-me quem sou, diz Alberto Caeiro. Para ele, é como se na imensa solidão de uma alma a sós consigo, o coração tivesse cérebro e conhecimento.
Dói-me
Dói-me quem sou. E em meio da emoção
Ergue a fronte de torre um pensamento
É como se na imensa solidão
De uma alma a sós consigo, o coração
Tivesse cérebro e conhecimento.
Numa amargura artificial consisto,
Fiel a qualquer idéia que não sei,
Como um fingido cortesão me visto
Dos trajes majestosos em que existo
Para a presença artificial do rei.
Sim, tudo é sonhar quanto sou e quero.
Tudo das mãos caídas se deixou.
Braços dispersos, desolado espero.
Mendigo pelo fim do desespero,
que quis pedir esmola e não ousou.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sexta-feira, outubro 23, 2015
Vi todas as coisas numa coisa só e compreendi tudo desde o princípio do Mundo, disse um apaixonado Dante Milano. Tudo pelo amor.
Corpo
Adorei teu corpo,
Tombei de joelhos.
Encostei a fronte,
O rosto, em teu ventre.
Senti o gosto acre
De santidade
Do corpo nu.
Absorvi a existência,
Vi todas as coisas numa coisa só,
Compreendi tudo desde o princípio do Mundo.
Dante Milano
(1899-1991)
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quinta-feira, outubro 22, 2015
Não digas nada, não digas nada, que dizer é nada! Para Fernando Pessoa, outros são os caminhos e as razões.
Não digas nada!
Não digas nada! Que hás de me dizer?
Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali cada dia vai morrer.
Mais vale não querer.
Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atinges nem achas,
Presos locais da vida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.
Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.
Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que os fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Que a vida é inútil, que o prazer é falso?
Di-lo de cada dia a cadafalso
Ao que ali cada dia vai morrer.
Mais vale não querer.
Sim, não querer, porque querer é um ponto,
Ponto no horizonte de onde estamos,
E que nunca atinges nem achas,
Presos locais da vida e do horizonte
Sem asas e sem ponte.
Não digas nada, que dizer é nada!
Que importa a vida, e o que se faz na vida?
É tudo uma ignorância diluída.
Tudo é esperar à beira de uma estrada
A vinda sempre adiada.
Outros são os caminhos e as razões.
Outra a vontade que os fará seus.
Outros os montes e os solenes céus.
Fernando Pessoa
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quarta-feira, outubro 21, 2015
Perdi-me dentro de mim porque eu era labirinto. E hoje, quando me sinto, é com saudades de mim, no lamento de Mário de Sá-Carneiro.
Dispersão
Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...
Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.
(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:
Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).
O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.
A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.
Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.
Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho,erro -
Não me acho no que projecto.
Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.
Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.
Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo.
A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.
(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)
E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.
Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.
Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...
Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p'ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...
Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?...Ai de mim!...
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.
Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.
Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço
..........................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba
..........................................
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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terça-feira, outubro 20, 2015
Florbela Espanca bebe a Vida, a Vida, a longos tragos. E canta: a Vida, meu Amor, quero vivê-la!
O nosso mundo
Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos
Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todos fantasmas tristes e pressagos!
A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!...
Florbela Espanca
(1894-1930)
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Como um divino vinho de Falerno!
Poisando em ti o meu olhar eterno
Como poisam as folhas sobre os lagos...
Os meus sonhos agora são mais vagos...
O teu olhar em mim, hoje, é mais terno...
E a Vida já não é o rubro inferno
Todos fantasmas tristes e pressagos!
A Vida, meu Amor, quero vivê-la!
Na mesma taça erguida em tuas mãos,
Bocas unidas hemos de bebê-la!
Que importa o mundo e as ilusões defuntas?...
Que importa o mundo e seus orgulhos vãos?...
O mundo, Amor!... As nossas bocas juntas!...
Florbela Espanca
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segunda-feira, outubro 19, 2015
Este mundo não presta, venha outro. Assim, um revoltado Saramago se demite desse mundo cão.
Demissão
Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos se dependentes.
José Saramago
(1922-2010)
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domingo, outubro 18, 2015
Que é que vou dizer a você, será que você não entende, será que você é burra? Eu te amo, grita Drummond como o menino diante da mulher que não percebe nada.
Enleio
Que é que vou dizer a você?
Não estudei ainda o código
de amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos ( só isso)
então eu diria:
Eu te amo.
Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende, será que você é burra?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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Não estudei ainda o código
de amor.
Inventar, não posso.
Falar, não sei.
Balbuciar, não ouso.
Fico de olhos baixos
espiando, no chão, a formiga.
Você sentada na cadeira de palhinha.
Se ao menos você ficasse aí nessa posição
perfeitamente imóvel, como está,
uns quinze anos ( só isso)
então eu diria:
Eu te amo.
Por enquanto sou apenas o menino
diante da mulher que não percebe nada.
Será que você não entende, será que você é burra?
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sábado, outubro 17, 2015
Eu te peço perdão por te amar de repente. Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos, diz Vinicius de Moraes à mulher amada.
Ternura
Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passados eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Vinícius de Moraes
(1913-1980)
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Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passados eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.
Vinícius de Moraes
(1913-1980)
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sexta-feira, outubro 16, 2015
Já começo a ficar cheio de não saber quando eu falto. De ser, mim, sujeito indireto, desabafa Leminski.
Sujeito indireto
Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feita a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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de fazer tudo perfeito,
feita a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.
Paulo Leminski
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quinta-feira, outubro 15, 2015
A náusea do estômago à alma, entre tomar alguma coisa ou suicidar-se, Álvaro de Campos decide E-xis-tir. E pede: dêem-me de beber, que não tenho sede.
Bicarbonato de sódio
Súbita, uma angústia...
Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1889-1935)
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Ah, que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!
Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais do que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.
Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na
circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?
Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não: vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E--xis--tir ...
Meu Deus! Que budismo me esfria no sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros
Dêem-me de beber, que não tenho sede!
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1889-1935)
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quarta-feira, outubro 14, 2015
Na angústia de Murilo Mendes, é necessário morrer de tristeza e de nojo. E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.
Angústia e reação
Há noites intransponíveis,
Há dias em que pára nosso movimento em Deus,
Há tardes em que qualquer vagabunda
Parece mais alta do que a própria musa.
Há instantes em que um avião
Nos parece mais belo que um mistério de fé,
Em que uma teoria política
Tem mais realidade que o Evangelho.
Em que Jesus foge de nós, foi para o Egito;
O tempo sobrepõe-se à idéia do eterno.
É necessário morrer de tristeza e de nojo
Por viver num mundo aparentemente abandonado por Deus,
E ressuscitar pela força da prece, da poesia e do amor.
É necessário multiplicar-se em dez, em cinco mil.
É necessário chicotear os que profanam as igrejas
É necessário caminhar sobre as ondas.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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terça-feira, outubro 13, 2015
Vinícius sente que a mulher que há de vir é a anunciada da sua poesia. E que ela será dele, só dele, como a força é do forte e a poesia é do poeta
A que há de vir
Aquela que dormirá comigo todas as luas
É a desejada de minha alma.
Ela me dará o amor do seu coração
E me dará o amor da sua carne.
Ela abandonará pai, mãe, filho, esposo
E virá a mim com os peitos e virá a mim com os lábios
Ela é a querida da minha alma
Que me fará longos carinhos nos olhos
Que me beijará longos beijos nos ouvidos
Que rirá no meu pranto e rirá no meu riso.
Ela só verá minhas alegrias e minhas tristezas
Temerá minha cólera e se aninhará no meu sossego
Ela abandonará filho e esposo
Abandonará o mundo e o prazer do mundo
Abandonará Deus e a Igreja de Deus
E virá a mim me olhando de olhos claros
Se oferecendo à minha posse
Rasgando o véu da nudez sem falso pudor
Cheia de uma pureza luminosa.
Ela é a amada sempre nova do meu coração
Ela ficará me olhando calada
Que ela só crerá em mim
Far-me-á a razão suprema das coisas.
Ela é a amada da minha alma triste
É a que dará o peito casto
Onde os meus lábios pousados viverão a vida do seu coração
Ela é a minha poesia e a minha mocidade
É a mulher que se guardou para o amado de sua alma
Que ela sentia vir porque ia ser dela e ela dele.
Ela é o amor vivendo de si mesmo.
É a que dormirá comigo todas as luas
E a quem eu protegerei contra os males do mundo.
Ela é a anunciada da minha poesia
Que eu sinto vindo a mim com os lábios e com os peitos
E que será minha, só minha, como a força é do forte e a poesia é do poeta.
Vinícius de Moraes
(1913-1980)
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segunda-feira, outubro 12, 2015
Vem, adormece encostada a este braço mais débil que o teu. Vem, sem que eu te chame, ou te prometa a vida, pede Miguel Torga ao seu grande amor.
Hora de amor
Adormece encostada a este braço
Mais débil do que
o teu.
Entrega te despida
Nas mãos dum homem solitário
Que a maldição não deixa
Que possa nem sequer lutar por ti.
Vem,
Sem que eu te chame,
ou te prometa a vida.
E sente que ninguém,
No descampado deste mundo,tem
A alma mais guardada e protegida.
Miguel Torga
(1907-1995)
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domingo, outubro 11, 2015
Para Alexandre O'Neill, há palavras que nos beijam como se tivessem boca. E que nos transportam aonde a noite é mais forte, ao silêncio dos amantes.
Há palavras que nos beijam
Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes.
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
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Há palavras que nos beijam Como se tivessem boca, Palavras de amor, de esperança, De imenso amor, de esperança louca. Palavras nuas que beijas Quando a noite perde o rosto, Palavras que se recusam Aos muros do teu desgosto. De repente coloridas Entre palavras sem cor, Esperadas, inesperadas Como a poesia ou o amor. (O nome de quem se ama Letra a letra revelado No mármore distraído, No papel abandonado) Palavras que nos transportam Aonde a noite é mais forte, Ao silêncio dos amantes.
Alexandre O'Neill
(1924-1986)
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sábado, outubro 10, 2015
Meia-noite amarela de sexta-feira, lua cheia, meia quaresma, no pequeno arraial. O assombramento toma conta da noite nos versos de Guimarães Rosa.
Assombramento
Meia-noite amarela de sexta-feira, com lua cheia, na meia quaresma, no pequeno arraial. Tinidos secos de matracas, gente cantando orações tétricas em frente às cruzes das encruzilhadas, pedindo ao povo que está dormindo rezas para as almas do purgatório que eles estão encomendando. E logo atrás vêm vultos brancos, almas penadas sussurrando, com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas. Mulas-sem-cabeça galopam doidas, pelas estradas, queimando o capim com as chispas dos cascos. Há lobisomens uivando, na velha igreja tábuas rangendo. caixões pretos junto das cruzes, mortalhas largadas diante das portas, uma mulher longa sentando nos telhados, e o Pitorro, assentado no morro, de chapéu na cabeça, cachimbando. Por entre as sepulturas, o fogo-fátuo de fósforo escorre: é um grande raio da lua amarela, que desceu, por engano, ao cemitério, e lá vai fugindo, assombrado, amedrontado, sem tempo de sumir. Latiram ao longe: foi a noite, soltando os seus cachorros "Corta-Vento", "Rompe-Ferro", "Acode-a-Tempo", para o socorrer...
Guimarães Rosa (1908-1967)
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Meia-noite amarela de sexta-feira, com lua cheia, na meia quaresma, no pequeno arraial. Tinidos secos de matracas, gente cantando orações tétricas em frente às cruzes das encruzilhadas, pedindo ao povo que está dormindo rezas para as almas do purgatório que eles estão encomendando. E logo atrás vêm vultos brancos, almas penadas sussurrando, com ossos de defuntos alumiando nas frias mãos brancas. Mulas-sem-cabeça galopam doidas, pelas estradas, queimando o capim com as chispas dos cascos. Há lobisomens uivando, na velha igreja tábuas rangendo. caixões pretos junto das cruzes, mortalhas largadas diante das portas, uma mulher longa sentando nos telhados, e o Pitorro, assentado no morro, de chapéu na cabeça, cachimbando. Por entre as sepulturas, o fogo-fátuo de fósforo escorre: é um grande raio da lua amarela, que desceu, por engano, ao cemitério, e lá vai fugindo, assombrado, amedrontado, sem tempo de sumir. Latiram ao longe: foi a noite, soltando os seus cachorros "Corta-Vento", "Rompe-Ferro", "Acode-a-Tempo", para o socorrer...
Guimarães Rosa (1908-1967)
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sexta-feira, outubro 09, 2015
Eu deixarei o mundo com fúria. Não chorarei, não há soluço maior do que despedir-se da vida, diz Ferreira Gullar em seu poema de despedida.
Despedida
Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.
De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar
(1930)
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nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão fundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.
Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.
Ferreira Gullar
(1930)
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quinta-feira, outubro 08, 2015
Florbela ama muito, ama os sonhos que se calam de corações que sentem e não falam. E até a voz do grande e mísero Destino.
Voz que se cala
Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.
Amo a hera, que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!
Florbela Espanca
(1894-1930)
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E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.
Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!
Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!
Florbela Espanca
(1894-1930)
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terça-feira, outubro 06, 2015
Só quando tiver setenta anos, quando acabar a adolescência, Leminski vai largar da vida louca. E ver tudo em sã consciência.
Quando eu tiver
setenta anos
quando eu tiver setenta anos
então vai
acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar
minha livre docência
vou fazer o que meu pai quer
começar a
vida com passo perfeito
vou fazer o que minha mãe deseja
aproveitar
as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu
curso de direito
então ver tudo em sã consciência
quando
acabar esta adolescência
Paulo Leminski
(1944-1989)
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segunda-feira, outubro 05, 2015
Sem o suor a vida não seria luta, nem o amor amor. Para Saramago, é assim mesmo a arte de amar, como já diziam os antigos.
Arte de Amar
Metidos nesta pele que nos refuta,
Dois somos, o mesmo que inimigos.
Grande coisa, afinal, é o suor
(Assim já o diziam os antigos):
Sem ele, a vida não seria luta,
Nem o amor amor.
José Saramago
(1922-2010)
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domingo, outubro 04, 2015
Um dia, num restaurante, serviram-me o amor como dobrada fria. Mas, pergunta Álvaro de Campos, se eu pedi amor, por que é que a trouxeram fria?
Dobrada à moda do Porto
Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...
(Sei bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio.
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1889-1935)
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sábado, outubro 03, 2015
Quanto medo, quanto pranto, quanta paixão, quanto luto. Para Vinicius, tudo isso pelo encanto desse beijo de um minuto.
Um beijo
Um minuto o nosso beijo
Um só minuto; no entanto
Nesse minuto de beijo
Quantos segundos de espanto!
Quantas mães e esposas loucas
Pelo drama de um momento
Quantos milhares de bocas
Uivando de sofrimento!
Quantas crianças nascendo
Para morrer em seguida
Quanta carne se rompendo
Quanta morte pela vida!
Quantos adeuses efêmeros
Tornados o último adeus
Quantas tíbias, quantos fêmures
Quanta loucura de Deus!
Que mundo de mal-amadas
Com as esperanças perdidas
Que cardume de afogadas
Que pomar de suicidas!
Que mar de entranhas correndo
De corpos desfalecidos
Que choque de trens horrendo
Quantos mortos e feridos!
Que dízima de doentes
Recebendo a extrema-unção
Quanto sangue derramado
Dentro do meu coração!
Quanto cadáver sozinho
Em mesa de necrotério
Quanta morte sem carinho
Quanto canhenho funéreo!
Que plantel de prisioneiros
Tendo as unhas arrancadas
Quantos beijos derradeiros
Quantos mortos nas estradas!
Que safra de uxoricidas
A bala, a punhal, a mão
Quantas mulheres batidas
Quantos dentes pelo chão!
Que monte de nascituros
Atirados nos baldios
Quantos fetos nos monturos
Quanta placenta nos rios!
Quantos mortos pela frente
Quantos mortos à traição
Quantos mortos de repente
Quantos mortos sem razão!
Quanto câncer sub-reptício
Cujo amanhã será tarde
Quanta tara, quanto vício
Quanto enfarte do miocárdio
Quanto medo, quanto pranto
Quanta paixão, quanto luto!...
Tudo isso pelo encanto
Desse beijo de um minuto:
Desse beijo de um minuto
Mas que cria, em seu transporte
De um minuto, a eternidade
E a vida, de tanta morte.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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sexta-feira, outubro 02, 2015
Castro Alves jamais imaginou ser motivo de uma declaração de amor tão bela e intensa de uma apaixonada Adélia Prado. Para sempre dele.
Bilhete em Papel Rosa
A meu amado secreto, Castro Alves.
Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.
Adélia Prado
(1935)
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A meu amado secreto, Castro Alves.
Quantas loucuras fiz por teu amor, Antônio.
Vê estas olheiras dramáticas,
este poema roubado:
"o cinamomo floresce
em frente ao teu postigo.
Cada flor murcha que desce,
morro de sonhar contigo".
Ó bardo, eu estou tão fraca
e teu cabelo tão é negro,
eu vivo tão perturbada, pensando com tanta força
meu pensamento de amor,
que já nem sinto mais fome,
o sono fugiu de mim. Me dão mingaus,
caldos quentes, me dão prudentes conselhos,
eu quero é a ponta sedosa do teu bigode atrevido,
a tua boca de brasa, Antônio, as nossas vias ligadas.
Antônio lindo, meu bem,
ó meu amor adorado,
Antônio, Antônio.
Para sempre tua.
Adélia Prado
(1935)
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quinta-feira, outubro 01, 2015
Para Ricardo Reis, nada fica de nada, nada somos. Para ele, somos contos contando contos, nada.
Nada fica
Nada fica de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.
Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.
Ricardo Reis, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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quarta-feira, setembro 30, 2015
Murilo Mendes quer e precisa de uma mulher profunda e romântica. Para receber o diadema construído pela Poesia.
O diadema
Eu quero uma mulher
Para receber um diadema
Construído na perfeição
Quero encontrar uma cabeça
Bela nobre casta altiva
Filha do povo ou dos deuses
Preciso de uma mulher
Com a majestade no andar
Vasta e lisa a cabeleira
Mulher profunda romântica
Para receber o diadema
Construído pela Poesia.
Murilo Mendes
(1901-1975)
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segunda-feira, setembro 28, 2015
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas, é preciso a saudade para eu te sentir. Mas nunca te pareces com o teu retrato e eu tenho que fechar os olhos para ver-te, lamenta Mario Quintana.
Presença
É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,
teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento...
das horas ponha um frêmito em teus cabelos...
É preciso que a tua ausência trescale
sutilmente, no ar, trevo machucado,
folhas de alecrim desde há muito guardadas
não se sabe por quem nalgum móvel antigo...
Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela
e respirar-te, azul e luminosa, no ar.
É preciso a saudade para eu te sentir
como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...
Mas quando surgir és tão outra e múltipla e imprevista
que nunca te pareces com o teu retrato...
E eu tenho que fechar os olhos para ver-te!
Mario Quintana
(1904-1996)
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Mario Quintana
domingo, setembro 27, 2015
Minha mulher, a solidão, consegue que eu não seja triste. Ah, que bom é ao coração ter este bem que não existe, na ilusão de Fernando Pessoa.
Minha mulher
Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este bem que não existe!
Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminhos.
Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda -,
E fala só - leque animado.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, setembro 26, 2015
De Hilda Hilst para um grande amor: Como se te perdesse, assim te quero. E como não te visse, te respiro inteiro.
Amavisse
Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro
Um arco-íris de ar em águas profundas.
Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.
Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.
Hilda Hilst
(1930-2004)
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sexta-feira, setembro 25, 2015
Para Drummond, eterno é o amor que une e separa. Para ele, o esquecimento ainda é memória, eterno é o fim.
Permanência
Agora me lembra um, antes me lembrava outro.
Dia virá em que nenhum será lembrado.
Então no mesmo esquecimento se fundirão.
Mais uma vez a carne unida, e as bodas
cumprindo-se em si mesmas, como ontem e sempre.
Pois eterno é o amor que une e separa, e eterno o fim
(já começara, antes de ser), e somos eternos,
frágeis, nebulosos, tartamudos, frustados: eternos.
E o esquecimento ainda é memória, e lagoas de sono
selam em seu negrume o que amamos e fomos um dia,
ou nunca fomos, e contudo arde em nós
à maneira da chama que dorme nos paus de lenha jogados no galpão.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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quinta-feira, setembro 24, 2015
O amor, esse sufoco. Para Leminski, troço de louco.
O amor, esse sufoco
O amor, esse sufoco,
agora há pouco era muito,
agora, apenas um sopro.
Ah, troço de louco,
corações trocando rosas,
e socos.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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quarta-feira, setembro 23, 2015
Para quem foi feito o mundo? Para aquele que o goze, diz Paulo Mendes Campos em sua balada do homem de fora.
Balada do homem de fora
Na alma dos outros há
searas de poesia;
em mim poeiras de prosa,
humilhação, vilania.
O pensamento dos outros
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
ala-se em frases castiças;
o meu é boi atolado
em palavras movediças.
No gesto dos outros vai
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
a elegância do traço;
no gesto torto que faço
surge a ponta do palhaço.
O trato dos outros tem
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
desprendimento, altruísmo;
venho do ressentimento
para os brejos do egoísmo.
O amor de muitos floresce
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
em sentimento complexo;
mas o meu é desconexo
anacoluto: do sexo.
Na face dos outros vi
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
a sintaxe do cristal;
na amálgama dos espelhos
embrulhei o bem no mal.
A virtude contra o crime
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
é um cartaz luminoso
dos outros todos; mas eu
posso ser o criminoso.
Os outros brincam de roda
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
(carneirinho, carneirão);
são puros como a verdade;
mas eu minto como um cão.
Há quem leia Luluzinha,
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
há quem leia pergaminhos;
leio notícias reversas
nos jornais de meus vizinhos.
Os outros ficaram bravos
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
ao pôr de lado o brinquedo,
bravos, leais, sans reproche;
mas eu guardei o meu medo.
Encaminha a mente deles
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
uma repulsa moral;
na minha pulsa o High Life
do mais turvo Carnaval.
Todos foram tão bacanas
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
na quadra colegial;
só eu não fui (mea culpa)
nem bacana, nem legal.
O trem dos outros tem
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
um ar etéreo e eterno;
às vezes ando vestido
como um profeta do inferno.
Muitos voam pelas pautas
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
que se desfazem nos astros;
amei Vivaldi, Beethoven,
Bach, Debussy, mas de rastros.
Certos olhos são vitrais
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
onde dá a luz de Deus;
Deus me deu os meus e os teus
para a dor dar-te adeus.
Há tanto moço perfeito
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
like a nice boy (inglês);
eu falo mais palavrões
que meu avô português.
Os outros são teoremas
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
lindos de geometria;
eu me apronto para a noite
nos pentes da ventania.
Para quem foi feito o mundo?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Para aquele que o goze.
Como gozá-lo quem gira
no perigeu da neuroses?
Copiei com canivete
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
este grifo de Stendhal:
"Nunca tive consciência
nem sentimento moral".
Faço meu Murilo Mendes
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
quanto à força de vontade:
"Sou firme que nem areia
em noite de tempestade".
Há gente que não duvida
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
quando quer ir ao cinema;
duvido de minha dúvida
no meu bar em Ipanema.
Outros, felizes, não bebem,
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
não fumam; eu bebo, fumo,
faço, finjo, forço, fungo,
fuço na noite sem rumo.
Outros amam Paris, praias,
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
cataventos, livros, flores,
apartamentos - a vida;
eu nem amo meus amores.
Os outros podem jurar
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
que me conhecem demais;
quando acaso penso o mesmo,
o demônio diz: há mais...
A infância dos outros era
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
o céu no tanque da praça;
a minha não teve tanque,
nem céu, nem praça, nem graça.
Até na morte encontrei
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
a divergência da sorte:
a deles, flecha de luz,
a minha, faca sem corte.
O espaço deles é onde
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.
circunda a casa o jardim;
mas o meu espaço é quando
um parafuso sem fim.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Mais sobre Paulo Mendes Campos em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Paulo_Mendes_Campos
(1922-1991)
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