quarta-feira, outubro 31, 2012

Para Miguel Torga, aquela luz maluca na noite, coração que palpita por tudo o que há de vir, ninguém vê, ninguém crê. Senão quem teve o desespero de partir.


Farol

Luz maluca na noite, coração
Que palpita por tudo o que há de vir:
Ninguém te vê, ninguém te crê, senão
Quem teve o desespero de partir.

Quem se venceu na própria solidão,
E num frágil veleiro quis abrir
O mar salgado de uma condição
Onde a altura do céu vinha cair.

Quem, afogado em pranto, reconhece
No teu aceno inquieto e tutelar
Outra vida mais larga que amanhece,

Fresca de pressentir e germinar,
Lá numa praia branca onde apodrece
Quem nela só consegue naufragar.

Miguel Torga 
(1907-1995)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Miguel_Torga

terça-feira, outubro 30, 2012

Dedicado a Murilo Mendes, Cassiano Ricardo escreveu o poema Indômitus. E trinta pombos azuis em formação geométrica voltarão ao navio.


Indômitus


O mar é uma esmeralda suja.
Recifes de coral repontam como flores de sangue salpicado de espuma.
(Coisa que explica naturalmente sangue róseo dos náufragos.)

As espadas dos peixes aguerridos
(os espadartes) trançam cintilações de prata
em campo blau, como num escudo.
O escudo de Netuno contra o casco do Indômitus.
A arte de navegar entre espadas
não é tão fácil, senão a mais oscilante das
artes.

Não consta da rosa-dos-ventos...
Se bem que uma rosa-dos-ventos é rosa
mas apenas no nome.
Antes, a chamaremos de mal-me-quer
até Dunquerque.

Indômitus está dançando agora entre duas espécies de estrelas.

A hora não é pra considerações em torno do
que possa acontecer.

É a hora do sangue-frio. Porque os peixes,
como os capitães, são animais de sangue-frio.

A hora é do vento
pela proa, ou a maubordo (não bombordo).
Nasce uma flor no mastro, um flama (não flâmula).
Indômitus então navega em plena rosa cega.

Uma fulguração súbita escreve no ar uma frase.
Thamuz, Thamuz, panmegas tethneka. Fulmotondro.
O comandante está dizendo à sua maruja que não há
no dicionário uma palavra mas bonita do que arquipélago.

Trinta pombos azuis em formação geométrica voltarão ao navio.

Cassiano Ricardo
(1895-1974)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Cassiano_Ricardo

segunda-feira, outubro 29, 2012

Manuel Bandeira confessa a seu tudo, sua amada e sua amiga que gosta pouco do amor ideal objeto só. E que do amor só carnal não gosta.


Soneto sonhado

Meu tudo, minha amada e minha amiga,
Eis, compendiada toda num soneto,
A minha profissão de fé e afeto,
Que à confissão, posto aos teus pés, me obriga.

O que n'alma guardei de muito antiga
Experiência foi pena e ansiar inquieto.
Gosto pouco do amor ideal objeto
Só, e do amor só carnal não gosto miga.

O que há de melhor no amor é iluminância,
Mas, ai de nós! não vem de nós. Viria
De onde? Dos céus?... Dos longes de distância?...

Não te prometo os estos, a alegria,
A assunção...Mas em toda circunstância
Ser-te-ei sincero como a luz do dia.

Manuel Bandeira
(1886-1968)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Bandeira

domingo, outubro 28, 2012

No fim de um arremedo de amor, Alexander Search diz adeus. E ainda pergunta: será que devo sorrir diante disso, ou não?


Eu desejei tantas vezes que este arremedo de amor

Eu desejei tantas vezes que este arremedo de amor
Entre nós findasse agora.
Mas nem para mim mesmo consigo fingir
Que uma vez chegado este fim eu chegaria a uma felicidade plena.

Tudo é também partida.
Nosso dia mais feliz também nos torna um dia mais velhos.
Para alcançar as estrelas, temos que ter também a escuridão.
A hora mais fresca é também a mais fria.

Não ouso hesitar em aceitar
Sua carta de separação, no entanto, desejo
Com vago sentimento de ciúme que mal posso rejeitar

Que nos caberia ainda um caminho diferente.
Adeus! Será que devo sorrir diante disso, ou não?
O sentimento agora perde-se em meus pensamentos.

Alexander Search, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sexta-feira, outubro 26, 2012

Para Guilherme de Almeida, infeliz de quem passa no mundo procurando no amor felicidade. A mais linda ilusão dura um segundo e dura a vida inteira uma saudade.


Amor, felicidade

Infeliz de quem passa no mundo,
procurando no amor felicidade:
a mais linda ilusão dura um segundo,
e dura a vida inteira uma saudade.

Taça repleta, o amor, no mais profundo
íntimo, esconde a jóia da verdade:
só depois de vazia mostra o fundo,
só depois de embriagar a mocidade...

Ah! quanto namorado descontente,
escutando a palavra confidente
que o coração murmura e a voz diz,

percebe que, afinal, por seu pecado,
tanto lhe falta para ser amado,
quanto lhe basta para ser feliz!

Guilherme de Almeida
(1890-1968)

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quinta-feira, outubro 25, 2012

Luís Vaz de Camões discorda de quem diz que amor é falso ou enganoso. Para ele, amor é brando, doce e piedoso.


Quem diz que Amor é falso ou enganoso 

Quem diz que Amor é falso ou enganoso, 
Ligeiro, ingrato, vão desconhecido, 
Sem falta lhe terá bem merecido 
Que lhe seja cruel ou rigoroso. 

Amor é brando, é doce, e é piedoso. 
Quem o contrário diz não seja crido; 
Seja por cego e apaixonado tido, 
E aos homens, e inda aos Deuses, odioso.

Se males faz Amor em mim se vêem; 
Em mim mostrando todo o seu rigor, 
Ao mundo quis mostrar quanto podia. 

Mas todas suas iras são de Amor; 
Todos os seus males são um bem, 
Que eu por todo outro bem não trocaria.

Luís Vaz de Camões
(1524-1580)

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terça-feira, outubro 23, 2012

Profundo, Mário de Andrade sente imundo o seu coração. Os vícios viciaram-lhe na bajulação sem sacrifícios, sua alma corcunda como a Avenida São João.


Tristura

Profundo. Imundo meu coração...
Olha o edifício: Matadouros da Continental.
Os vícios viciaram-me na bajulação sem sacrifícios...
Minha alma corcunda como a avenida São João...

E dizem que os polichinelos são alegres!
Eu nunca em guizos nos meus interiores arlequinais!...

Paulicéias, minha noiva... Há matrimônios assim...
Ninguém os assistirá nos jamais!
As permanências de ser um na febre!
Nunca nos encontramos...
Mas há rendez-vous na meia-noite do Armenonville...

E tivemos uma filha, uma só...
Batismos do sr. cura Bruma;

Água-benta das garoas monótonas...
Registrei-a no cartório da Consolação...
Chamei-a Solitude das Plebes...

Pobres cabelos cortados da nossa monja!

Mário de Andrade
(1892-1945)

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segunda-feira, outubro 22, 2012

Depois de passar por tantas humilhações, Cesário Verde estava se sentindo péssimo. Foi quando uma velhinha suja pôs-se à sua frente e disse-lhe: Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...


Humilhações

Esta aborrece quem é pobre. Eu, quase Jó, 
Aceito os seus desdéns, seus ódios idolatro-os;
E espero-a nos salões dos principais teatros,
Todas as noites, ignorado e só.

Lá cansa-me o ranger da seda, a orquestra, o gás;
As damas, ao chegar, gemem nos espartilhos,
E enquanto vão passando as cortesãs e os brilhos,
Eu analiso as peças no cartaz.

Na representação dum drama de Feuillet,
Eu aguardava, junto à porta, na penumbra,
Quando a mulher nervosa e vá que me deslumbra
Saltou soberba o estribo do coupé.

Como ela marcha! Lembra um magnetizador.
Roçavam no veludo as guarnições das rendas;
E, muito embora tu, burguês, me não entendas,
Fiquei batendo os dentes de terror.

Sim! Porque não podia abandoná-la em paz!
A minha pobre bolsa, amortalhou-se a idéia
De vê-la aproximar, sentado na platéia,
De tê-la num binóculo mordaz!

Eu ocultava o fraque usado nos botões;
Cada contratador dizia em voz rouquenha:
- Quem compra algum bilhete ou vende alguma senha?
E ouviam-se cá fora as ovações.

Que desvanecimento! A pérola do Tom!
As outras ao pé dela imitam de bonecas;
Têm menos melodia as harpas e as rabecas,
Nos grandes espetáculos do Som.

Ao mesmo tempo, eu não deixava de a abranger;
Via-a subir direita, a larga escadaria
E entrar no camarote. Antes estimaria
Que o chão se abrisse para me abater.

Saí: mas ao sair senti-me atropelar.
Era um municipal sobre um cavalo. A guarda
Espanca o povo. Irei-me; e eu, que detesto a farda,
Cresci com raiva contra o militar.

De súbito, fanhosa, infecta, rota, má,
Pôs-se na minha frente uma velhinha suja,
E disse-me, piscando os olhos de coruja:
Meu bom senhor! Dá-me um cigarro? Dá?...

Cesário Verde
(1855-1886)

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domingo, outubro 21, 2012

Com as lágrimas do tempo e o cal do seu dia. Foi assim que Vinicius de Moraes fez o cimento de sua poesia.


Poética (II)

Com as lágrimas do tempo
E o cal do meu dia
Eu fiz o cimento
Da minha poesia.

E na perspectiva
Da vida futura
Ergui em carne viva
Sua arquitetura.

Não sei bem se é casa
Se é torre ou se é templo
(Um templo sem Deus.)

Mas é grande e clara
Pertence ao seu tempo
- Entrai, irmãos meus!

Vinicius de Moraes
(1913-1980)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Vin%C3%ADcius_de_Moraes

sábado, outubro 20, 2012

Álvaro de Campos foi ao cais para não esperar ninguém. E regressa à cidade como à liberdade, porque vale a pena existir para ao menos deixar de sentir.


Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima

Vai pelo cais fora um bulício de chegada próxima,
Começaram chegando os primitivos da espera,
Já ao longe o paquete de África se avoluma e esclarece.
Vim aqui para não esperar ninguém,
Para ver os outros esperar,
Para ser os outros todos a esperar,
Para ser a esperança de todos os outros.
Trago um grande cansaço de ser tanta coisa.
Chegam os retardatários do princípio,
E de repente impaciento-me de esperar, de existir de ser,
Vou-me embora brusco e notável ao porteiro que me fita muito mas rapidamente.
Regresso à cidade como à liberdade.
Vale a pena existir para ao menos deixar de sentir.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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quinta-feira, outubro 18, 2012

Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis, confessa Affonso Romano de Sant'Anna. Para ele, amar o amor em outro amor é um ritual que, amante, se permite.


Fascínio 

Casado, continuo a achar as mulheres irresistíveis.
Não deveria, dizem.
Me esforço. Aliás,
já nem me esforço.
Abertamente me ponho a admirá-las.
Não estrou traindo ninguém, advirto.
Como pode o amor trair o amor?
Amar o amor num outro amor
é um ritual que, amante, me permito.

Affonso Romano de Sant'Anna
(1937)

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quarta-feira, outubro 17, 2012

A idéia, de onde ela vem, da psicogenética ou do encéfalo absconco? Para Augusto dos Anjos, ela quebra a força centrípeta que a amarra e, quase morta, esbarra no mulambo da língua paralítica.


A idéia


De onde ela vem? De que maneira bruta
Vem essa luz que sobre as nebulosas
Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?

Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas
Delibera, e, depois, quer a executa!

Vem do encéfalo absconso que a constringe
Chega em seguida às cordas da laringe,
Tísica, tênue, mínima, raquítica...

Quebra a força centrípeta que a amarra
Mas, de repente, e quase morta, esbarra
No mulambo da língua paralítica!

Augusto dos Anjos
(1884-1914)

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terça-feira, outubro 16, 2012

Paulo Mendes Campos acabou por compreender que a vida enganou a vida e o homem enganou o homem. Por isso, organizou seu sofrimento ao sofrimento de todos: se multiplicou a sua dor, também multiplicou a sua esperança.


Poema didático

Não vou sofrer mais sobre as armações metálicas do mundo
Como o fiz outrora, quando ainda me perturbava a rosa.
Minhas rugas são prantos da véspera, caminhos esquecidos,
Minha imaginação apodreceu sobre os lodos do Orco.
No alto, à vista de todos, onde sem equilíbrio precipitei-me,
Clown de meus próprios fantasmas, sonhei-me,
Morto do meu próprio pensamento, destruí-me,
Pausa repentina, vocação de mentira, dispersei-me,
Quem sofreria agora sobre as armações metálicas do mundo,
Como o fiz outrora, espreitando a grande cruz sombria
Que se deita sobre a cidade, olhando a ferrovia, a fábrica,
E do outro lado da tarde o mundo enigmático dos quintais.
Quem, como eu outrora, andaria cheio de uma vontade infeliz,
Vazio de naturalidade, entre as ruas poentas do subúrbio
E montes cujas vertentes descem infalíveis ao porto de mar ?

Meu instante agora é uma supressão de saudades. Instante
Parado e opaco. Difícil se me vai tornando transpor este rio
Que me confundiu outrora. Já deixei de amar os desencontros.
Cansei-me de ser visão, agora sei que sou real em um mundo real.
Então, desprezando o outrora, impedi que a rosa me perturbasse.
E não olhei a ferrovia - mas o homem que sangrou na ferrovia -
E não olhei a fábrica - mas o homem que se consumiu na fábrica -
E não olhei mais a estrela - mas o rosto que refletiu o seu fulgor.
Quem agora estará absorto? Quem agora estará morto ?
O mundo, companheiro, decerto não é um desenho
De metafísicas magnificas (como imaginei outrora)
Mas um desencontro de frustrações em combate.
nele, como causa primeira, existe o corpo do homem
- cabeça, tronco, membros, as pirações e bem estar...

E só depois consolações, jogos e amarguras do espírito.
Não é um vago hálito de inefável ansiedade poética
Ou vaga advinhação de poderes ocultos, rosa
Que se sustentasse sem haste, imaginada, como o fiz outrora.
O mundo nasceu das necesidades. O caos, ou o Senhor,
Não filtraria no escuro um homem inconsequente,
Que apenas palpitasse no sopro da imaginação. O homem
É um gesto que se faz ou não se faz. Seu absurdo -
Se podemos admiti-lo - não se redime em injustiça.
Doou-nos a terra um fruto. Força é reparti-lo
Entre os filhos da terra. Força - aos que o herdaram -
É fazer esse gesto, disputar esse fruto. Outrora,
Quando ainda sofria sobre as armações metálicas do mundo,
Acuado como um cão metafísico, eu gania para a eternidade,
sem compreender que, pelo simples teorema do egoísmo,
A vida enganou a vida, o homem enganou o homem.
Por isso, agora, organizei meu sofrimento ao sofrimento
De todos: se multipliquei a minha dor,
Também multipliquei a minha esperança.


Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

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segunda-feira, outubro 15, 2012

Chove. E enquanto a chuva caía, no coração de Ana Cristina Cesar chovia a chuva do teu olhar.


Chove

A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo.
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventado,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim,
Com os olhos que me seguiam,
Enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.

Ana Cristina Cesar
(1952-1983)

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domingo, outubro 14, 2012

À sombra doce das moças em flor, Drummond gosta de deitar para descansar. E sabe que elas vão casar e que não é com ele.


Sombra das moças em flor
 
À sombra doce das moças em flor,
gosto de deitar para descansar.
É uma sombra verde, macia, vã,
fruto escasso à beira da mão.
A mão não colhe... A sombra das moças
esparramada cobre todo o chão.
 
As moças sorriem fora de você.
Dentro de você há um desejo torto
que elas não sabem. As moças em flor
estão rindo, dançando, flutuando no ar.
O nome delas é uma carícia
disfarçada.
 
As moças vão casar e não é com você.
Elas casam mesmo, inútil protestar.
No meio da praça, no meio da roda
há um cego querendo pegar um braço,
todos os braços formam um laço,
mas não se enforque nem se disperse
em mil análises proustianas,
meu filho.
 
No meio da roda, debaixo da árvore,
a sombra das moças penetra no cego,
e o dia que nasce atrás das pupilas
é vago e tranquilo como um domingo.
E todos os sinos batem no cego
e todos os desejos morrem na sombra,
frutos maduros se esborrachando
no chão.

Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)

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quinta-feira, outubro 11, 2012

Milagre. Pergunta Leminski: além do pecado que sentido pode ter mais significado?


Sete dias na vida de uma luz

durante sete noites
uma luz transformou
a dor em dia
uma luz que eu não sabia
se vinha comigo
ou nascia sozinha

durante sete dias
uma luz brilhou
na ala dos queimados
queimou a dor
queimou a falta
queimou tudo
que precisava ser cauterizado

milagre além do pecado
que sentido pode ter
mais significado?

Paulo Leminski
(1944-1989)

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quarta-feira, outubro 10, 2012

Em uma distante melodia, Mário de Sá-Carneiro sente uma irrealidade anil que nele ondeia. Ao seu redor, ele é Rei exilado, vagabundo dum sonho de sereia.


Distante melodia


Que me oscilava entre véus de tule -
Um tempo esguio e leve, um tempo - Asa. 
Então os meus sentidos eram cores, 
Nasciam num jardim as minhas ânsias, 
Havia na minh'alma Outras distâncias -
Distancias que o seguí-las era flores…
Caía Ouro se pensava Estrelas, 
O luar batia sobre o meu alhear-me…
Noites-lagoas, como éreis belas 
Sob terraços-lis de recordar-me!…
Idade acorde d'Inter sonho e Lua, 
Onde as horas corriam sempre jade, 
Onde a neblina era uma saudade, 
E a luz - anseios de Princesa nua… 
Balaústres de som, arcos de Amar, 
Pontes de brilho, ogivas de perfume…
Domínio inexprímivel d'Ópio e lume 
Que nunca mais, em cor, hei de habitar…
Tapetes doutras Pérsias mais Oriente…
Cortinados de Chinas mais marfim…
Áureos Templos de ritos de cetim…
Fontes correndo sombra, mansamente…
Zimbórios - panteons de nostalgias…
Catedrais de ser - Eu por sobre o mar…
Escadas de honra, escadas só, ao ar…
Novas Bizancios - alma, outras Turquias…
Lembranças fluidas… cinza de brocado…
Irrealidade anil que em mim ondeia…
- Ao meu redor eu sou Rei exilado, 
Vagabundo dum sonho de sereia…

Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)

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segunda-feira, outubro 08, 2012

Os mortos vêem o mundo pelos olhos dos vivos. Assim diz em versos Ferreira Gullar.


Os mortos


Os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos

Eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias

Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça

Ferreira Gullar
(1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Ferreira_Gullar


                 

domingo, outubro 07, 2012

Afinal, diz Álvaro de Campos, a melhor maneira de viajar é sentir. Sentir tudo de todas as maneiras, sentir tudo excessivamente.


Afinal

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.
Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,
Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,
Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Álvaro de Campos, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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sexta-feira, outubro 05, 2012

O amor armou a clava da tarde e seu alarme. E em mais amor solvemos o que se faz pequeno, na cantata de Carlos Nejar.


Cantata em rodas plumas


O amor armou a clava
da tarde e seu alarme.
Quer, albatroz, levar-me
onde alcançam suas asas.

Vem, ditoso, acordar-me.
Quer nos levar nas rodas
das plumas e avalanches.
Nós chegaremos antes

com jubilosas almas,
que se absorvem, alvas
e salvas, nos redutos.
De céu a céu, conceitos

são cinzas e ferrugem.
E os que se amam, pungem
de amar, e mais amando
em gozo, em gozo, em bombo

ou nos vestígios, nuvens;
nos elos desta lava.
Em mais amor solvemos
o que se faz pequeno.

Carlos Nejar
(1939)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Carlos_Nejar

quinta-feira, outubro 04, 2012

Para Thiago de Mello, a eternidade não depende de nós. E tudo que o homem faz é perecível, a começar pelo próprio homem.


O tempo

A eternidade não depende de nós.
Precários seres, manchados de limites,
incapazes de dar vida
a qualquer coisa que dure para sempre,
já nasceram soletrando o Never More.
Tudo o que o homem faz é perecível.
A começar pelo próprio homem,
ração diária predileta
do tempo, desde o instante
em que o tempo acompanhou
a expansão de uma galáxia:
um pássaro invisível,
as asas cheias de auroras,
de cujo bico escorria
o silêncio do arco-íris.

Thiago de Mello
(1921)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Thiago_de_Mello

quarta-feira, outubro 03, 2012

Che Guevara, na visão de Sophia de Mello Breyner.


Che Guevara

Contra ti se ergueu a prudência dos inteligentes e o arrojo dos papetas
A indecisão dos complicados e o primarismo
Daqueles que confundem revolução com desforra

De poster em poster a tua imagem paira na sociedade de consumo
Como o Cristo em sangue paira no alheamento ordenado das igrejas

Porém
Em frente do teu rosto
Medita o adolescente à noite no seu quarto
Quando procura emergir de um mundo que apodrece.

Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)

Mais sobre Sophia de Mello Breyner em
http://pt.wikipedia.org/wiki/Sophia_de_Mello_Breyner

terça-feira, outubro 02, 2012

Florbela Espanca lamenta ter outrora posto sua mocidade no tranquilo convento da Tristeza. A sua mocidade toda em flor!


Renúncia

A minha mocidade outrora eu pus
No tranquilo convento da Tristeza;
Lá passa dias, noites, sempre presa,
Olhos fechados, magras mãos em cruz...

Lá fora, a Lua, Satanás, seduz!
Desdobra-se em requintes de Beleza...
É como um beijo ardente a Natureza...
A minha cela é como um rio sem luz...

Fecha os teus olhos bem! Não vejas nada!
Empalidece mais! E, resignada,
Prende os teus braços a uma cruz maior!

Gela ainda a mortalha que te encerra!
Enche a boca de cinzas e de terra,
Ó minha mocidade toda em flor

Florbela Espanca
(1894-1930)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Florbela_Espanca

segunda-feira, outubro 01, 2012

Alexander Search não acredita em nada e em seu epitáfio diz que nada em parte alguma é sincero. A não ser dor, ódio, luxúria e medo.


Epitáfio

Aqui jaz Alexander Search
A quem Deus e os homens deixaram no engano
E a natureza zombou com dor e tristeza
Ele não acreditava no Estado ou na Igreja
Nem em Deus, mulher, homem ou amor
Nem na terra embaixo, nem no céu acima;
O seu conhecimento o levou a esses limites:
(...) e amor é cio
Nada em parte alguma é sincero
A não ser dor, ódio, luxúria e medo.

Alexander Search, um dos heterônimos de

Fernando Pessoa
(1888-1935)

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa