domingo, julho 31, 2011
Da fidelidade, por Vinicius de Moraes.
Da fidelidade
Há alguma coisa maior que nós mesmos que é a fidelidade a nós mesmos
Flor espantosa que vive das águas cáusticas e das terras apodrecidas da
prodigiosa extensão humana.
É a sua santidade que eu quero fazer nascer destas palavras de ritmo obscuro
E neste momento mesmo é talvez a sua inocência que eu violento com os
meu dedos mártires que a desejariam sangrando.
Ela nasce desse instante supremo em que o homem que viu a verdade
sente que a sua simplicidade trágica nada poderá contra ele.
Ele que é como o país que vê a guerra no pássaro de arribação que se
pousou da grande viagem sobre o seu pavilhão estendido.
Não existe talvez nada mais belo que a matéria que habita essa alma que
nós mostramos como um pavilhão estendido ao pássaro peregrino
E talvez nada mais horrível que essa guerra que se vê nascer subitamente
das entranhas de nossa miséria
A fidelidade é como o amor da miséria pelo eterno viajante sereno
É como um homem que à força de contemplar um rio é por sua vez contemplado por ele.
Se é que há um lugar de Deus em cada criatura nada será felicidade senão a fidelidade à
falta de Deus neste lugar
Aos sentimentos e nunca à verdade porque a verdade é o símbolo do absoluto e o
abstrato é a morte do homem.
Ai de mim! talvez eu devesse morrer porque eu digo as palavras da fé
com gestos de inteligência.
Fidelidade, lírio, anjo, mar de pureza!
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
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sábado, julho 30, 2011
Com indiferença, Eugénio de Andrade diz que, embora seja inverno desde há muito, a vocação das folhas é ser ave. Ou música, quando no vento arde o coração da cal.
Com indiferença
E por fim a manhã talvez comece
debaixo duma pedra
ou da noite escorra sobre as primeiras
violetas ou as últimas que sei eu.
Embora seja inverno desde há muito
a vocação das folhas é ser ave
ou música quando no vento
arde o coração da cal.
Ou o meu o meu.
Eugénio de Andrade
(1923-2005 )
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sexta-feira, julho 29, 2011
Machado de Assis amou os amigos despido de ternura fatigada. Mas ele só queria partilhar a sede de alegria, por mais amarga.
Os amigos
Os amigos amei
despido de ternura
fatigada;
uns iam, outros vinham;
a nenhum perguntava
porque partia,
porque ficava;
era pouco o que tinha,
pouco o que dava,
mas também só queria
partilhar
a sede de alegria -
por mais amarga.
Machado de Assis
(1839-1908)
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quinta-feira, julho 28, 2011
Carlos Nejar diz que até a eternidade está à venda por dívida. E no despejo final, só ratos e formigas.
A dívida
A dívida aumenta,
A do país e a nossa.
Cada manhã sabemos
que se acumula a dívida.
A grama que pisamos
é dívida.
A casa é uma hipoteca
que a noite vai adiando.
E os juros na hora certa.
Ao fim do mês o emprego
é dívida que aumenta
com o sono. Os pesadelos.
E nós sempre mais pobres
vendemos por varejo ou menos,
o Sol, a Lua, os planetas,
até os dias vincendos.
A dívida aumenta
por cálculo ou sem ele.
O acaso engendra
sua imagem no espelho
que ao refletir é dívida.
A eternidade à venda
por dívida.
A roça da morte
em hasta pública
por dívida.
A hierarquia dos anjos
deixou o céu por dívida.
No despejo final:
só ratos e formigas.
Carlos Nejar
(1939)
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quarta-feira, julho 27, 2011
Em sua oração da noite, Cecília Meireles diz que consolou mágoas, tédios e fracassos. E que fez, a todos, todo o bem que pôde.
Oração da noite
Trabalhei, sem revoltas nem cansaços,
No infecundo amargor da solitude:
As dores, - embalei-as nos meus braços,
Como alguém que embalasse a juventude...
Acendi luzes, desdobrando espaços,
Aos olhos sem bondade ou sem virtude;
Consolei mágoas, tédios e fracassos
E fiz, a todos, todo o bem que pude!
Que o sonho deite bençãos de ramagens
E névoas soltas de distância e ausência
Na minha alma, que nunca foi feliz.
Escondendo-me as tácitas voragens
De males que me deram, sem consciência.
Pelos míseros bens que sempre fiz!...
Cecília Meireles
(1901-1964)
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terça-feira, julho 26, 2011
Disseram que havia sol, risos, que era tarde e que faltava a simples canção. Para José Saramago, estas vozes são os avisos do tempo.
Disseram que havia sol
Disseram que havia sol
Que todo o céu descobria
Que nas ramagens pousavam
Os cantos das aves loucas
Disseram que havia risos
Que as rosas se desdobravam
Que no silêncio dos campos
Se davam corpos e bocas
Mais disseram que era tarde
Que a tarde já descaía
Que ao amor não lhe bastavam
Estas nossas vidas poucas
E disseram que ao acento
De tão geral harmonia
Faltava a simples canção
Das nossas gargantas roucas
Ó meu amor estas vozes
São os avisos do tempo
José Saramago
(1922-2010)
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segunda-feira, julho 25, 2011
O instinto de Miguel Torga acode a todo o coração que se debate aflito. Mas ele gasta as horas e os dias a endurecer a forma da emoção.
Identidade
Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.
Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.
Mas como as inscrições nas penedias
Têm maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.
Miguel Torga
(1907-1995)
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domingo, julho 24, 2011
Fernando Pessoa reconhece que nem sempre é igual no que diz ou escreve. Ele muda, mas não muda muito.
Nem sempre
Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.
Mudo, mas não mudo muito.
A cor das flores não é a mesma ao sol
De que quando uma nuvem passa
Ou quando entra a noite
E as flores são cor da sombra.
Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.
Por isso quando pareço não concordar comigo.
Reparem bem em mim:
Se estava virado para a direita,
Voltei-me agora para a esquerda,
Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés -
O mesmo sempre, graças ao céu e à terra
E aos meus olhos e ouvidos atentos
E à minha clara simplicidade de alma...
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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sábado, julho 23, 2011
Nos versos de Nuno Júdice, a mulher que acorda pede à noite que não a deixe sozinha. Como se o abraço antigo se pudesse prolongar, ou o sol não troxesse o dia para junto dela.
Ausência
A mulher deitada, a mulher que se perdeu,
durante o sonho, e não sabe que o caminho
estava indicado nos seus olhos, procura o vazio
com a mão segura entre lençol e cobertor,
como se nesse intervalo houvesse ainda
uma saída para o desejo. No sono em que
a maré da noite se desfez num impulso
de névoa, os seus lábios murmuraram
o nome que não tem corpo; e em vão
esperaram o beijo que os iria selar,
os dedos que se afundariam no oceano
dos cabelos, a respiração que
lhe daria o ritmo da manhã. Por isso,
a mulher que acorda pede à noite que não
a deixe sozinha, como se o abraço antigo
se pudesse prolongar, ou o sol
não trouxesse o dia para junto dela.
Nuno Júdice
(1949)
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sexta-feira, julho 22, 2011
O que fazer entre um orgasmo e outro, quando se abre um intervalo sem teu corpo? O que fazer entre um poema e outro olhando a cama, a folha fria?
Intervalo amoroso
O que fazer entre um orgasmo e outro,
quando se abre um intervalo sem teu corpo?
Onde estou, quando não estou
no teu gozo incluído? Sou todo exílio?
Que imperfeita forma de ser é essa
quando de ti sou apartado?
Que neutra forma toco
quando não toco teus seios, coxas
e não recolho o sopro da vida de tua boca?
O que fazer entre um poema e outro
olhando a cama, a folha fria?
Afonso Romano de Sant'anna
(1937)
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quinta-feira, julho 21, 2011
A chuva lavava os seus cabelos, voluptuosamente, até as raízes. Para Schmidt, ela era uma árvore molhada e coberta de flores.
A chuva nos cabelos
A chuva molhava os seus cabelos,
A chuva descia sobre os seus cabelos
Voluptuosamente.
A chuva chorava sobre os seus cabelos,
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos,
Profundamente,
Até as raízes!
Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada
E coberta de flores.
Augusto Frederico Schmidt
(1906-1965)
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quarta-feira, julho 20, 2011
Em seu solau à moda antiga, Mario Quintana diz à Senhora como a ama tanto. Tanto, que até o seu marido lhe dá um certo quebranto...
Solau à moda antiga
Senhora, eu vos amo tanto
Que até por vosso marido
Me dá um certo quebranto...
Pois que tem que a gente inclua
No mesmo alastrante amor
Pessoa, animal ou cousa
Que seja lá o que for,
Só porque os banha o esplendor
Daquela a quem se ama tanto?
E, sendo desta maneira,
Não me culpeis, por favor,
Da chama que ardente abrasa,
O nome de vossa rua,
Vossa gente e vossa casa.
E vossa linda macieira
Que ainda ontem deu flor...
Mario Quintana
(1906-1994)
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segunda-feira, julho 18, 2011
Adélia Prado quis com paixão o seu vestido de amante. E na memória guardada, ela está no cinema e deixa que segurem a sua mão.
O vestido
No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo , volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.
Adélia Prado
(1935)
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domingo, julho 17, 2011
Que barulho é esse na escada? Drummond pensa em várias alternativas, mas só sabe mesmo é que tem alguém abafando o rumor que salta do seu coração.
Poema patético
Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.
Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.
Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
é o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.
Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta do meu coração.
Carlos Drummond de Andrade
(1902-1987)
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sábado, julho 16, 2011
Em seu pranto pelo dia de hoje, Sophia de Mello Breyner diz que nunca choraremos bastante quando vemos o gesto criador ser impedido. E por maneiras que sabemos que nem podem ser bem descritas.
Pranto pelo dia de hoje
Nunca choraremos bastante quando vemos
O gesto criador ser impedido
Nunca choraremos bastante quando vemos
Que quem ousa lutar é destruído
Por troças por insídias por venenos
E por outras maneiras que sabemos
Tão sábias tão subtis e tão peritas
Que nem podem sequer ser bem descritas
Sophia de Mello Breyner
(1919-2004)
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sexta-feira, julho 15, 2011
Um homem estava anoitecido, se sentia por dentro um trapo social. Mas ele queria amanhecer, conta em versos Manoel de Barros.
O casaco
Um homem estava anoitecido.
Se sentia por dentro um trapo social.
Igual se, por fora, usasse um casaco rasgado e sujo.
Tentou sair da angústia.
Isto ser:
Ele queria jogar o casaco rasgado e sujo no lixo.
Ele queria amanhecer.
Manoel de Barros
(1916)
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quinta-feira, julho 14, 2011
Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes que um outro, só metade, quer passar. Um Outro que eu não posso acorrentar, nos versos de lamento de Mário Sá-Carneiro.
Ângulo
Aonde irei neste sem-fim perdido,
Neste mar oco de certezas mortas? -
Fingidas, afinal, todas as portas
Que no dique julguei ter construído...
- Barcaças dos meus ímpetos tigrados,
Que oceanos vos dormiram de Segredo?
Partiste-vos, transportes encantados,
De embate, em alma ao roxo, a que rochedo?...
Ó nau de festa, ó ruiva de aventura
Onde, em Champanhe, a minha ânsia ia,
Quebraste-vos também ou, porventura,
Fundasse a Ouro em portos de alquimia?...
........................................................................
........................................................................
Chegaram à baía os galeões
Com as sete Princesas que morreram.
Regatas de luar não se correram...
As bandeiras velaram-se, orações...
Detive-me na ponte, debruçado,
Mas a ponte era falsa - e derradeira.
Segui no cais. O cais era abaulado,
Cais fingido sem mar à sua beira...
- Por sobre o que Eu não sou há grandes pontes
Que um outro, só metade, quer passar
Em miragens de falsos horizontes -
Um Outro que eu não posso acorrentar...
Mário de Sá-Carneiro
(1890-1916)
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quarta-feira, julho 13, 2011
Para Leminski, marginal é quem escreve à margem, é escrever na entrelinha. Sem nunca saber direito quem veio primeiro, o ovo ou a galinha.
Marginal
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha,
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
Paulo Leminski
(1944-1989)
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terça-feira, julho 12, 2011
O que não fiz ficou vivo pelo avesso. O que não tive pertence à dor do meu canto, confessa Thiago de Mello na boca da noite.
A boca da noite
O que não fiz ficou vivo
pelo avesso. O que não tive
pertence à dor do meu canto.
A estrela que mais amei
acende o meu desencanto.
Vinagre? Sombra de vinho?
De noite, a vida engoliu
(é doce a boca da noite)
as dores do meu caminho.
O meu voo se apazigua
quando a tormenta me abraça.
O que tenho se enriquece
de tudo que não retive.
Diamante? Flor de carvão.
Thiago de Mello
(1926)
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segunda-feira, julho 11, 2011
Cecília Meireles diz que amor, ventura, ela não tem. Mas dor obscura e tempo.
Amor, ventura
Amor, ventura,
não tenho.
Mas dor obscura
e tempo.
Deus encoberto
não vejo,
mas perto e certo
o entendo.
Vive, não vivo:
contemplo
meu sonho ativo
e isento.
Que mundo existe,
suspenso,
depois de um triste
degredo?
Não quero o acaso!
E penso:
lavra o meu prazo
que vento?
Cecília Meireles
(1901-1964)
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domingo, julho 10, 2011
Perante a única realidade que é o Mistério, Álvaro de Campos chega à conclusão que existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser. E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.
Ah, perante esta única realidade que é o mistério
Ah, perante esta única realidade, que é o mistério,
Perante esta única realidade terrível - a de haver uma realidade,
Perante este horrível ser que é haver ser,
Perante este abismo de existir um abismo,
Este abismo de a existência de tudo ser um abismo,
Ser um abismo por simplesmente ser,
Por poder ser,
Por haver ser!
- Perante isto tudo como tudo o que os homens fazem,
Tudo o que os homens dizem,
Tudo quanto constroem, desfazem ou se constrói ou desfaz através deles,
Se empequena!
Não, não se empequena...se transforma em outra coisa -
Numa só coisa tremenda e negra e impossível,
Uma coisa que está para além dos deuses, de Deus, do Destino -
Aquilo que faz que haja deuses e Deus e Destino,
Aquilo que faz que haja ser para que possa haver seres,
Aquilo que subsiste através de todas as formas,
De todas as vidas, abstratas ou concretas,
Eternas ou contingentes,
Verdadeiras ou falsas!
Aquilo que, quando se abrangeu tudo, ainda ficou fora,
Porque quando se abrangeu tudo não se abrangeu explicar por que é um tudo,
Por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa, por que há qualquer coisa!
Minha inteligência tornou-se um coração cheio de pavor,
E é com minhas idéias que tremo, com a minha consciência de mim.
Com a substância essencial do meu ser abstrato
Que sufoco de incompreensível,
Que me esmago de ultratranscendente,
E deste medo, desta angústia, deste perigo do ultra-ser,
Não se pode fugir, não se pode fugir, não se pode fugir!
Cárcere do Ser, não há libertação de ti?
Cárcere de pensar, não há libertação de ti?
Ah, não, nenhuma - nem morte, nem vida, nem Deus!
Nós, irmãos gêmeos do Destino em ambos existirmos,
Nós, irmãos gêmeos dos Deuses todos, de toda a espécie,
Em sermos o mesmo abismo, em sermos a mesma sombra,
Sombra sejamos, ou sejamos luz, sempre a mesma noite.
Ah, se afronto confiado a vida, a incerteza da sorte,
Sorridente, impensando, a possibilidade quotidiana de todos os males,
Inconsciente o mistério de todas as coisas e de todos os gestos,
Por que não afrontarei sorridente, inconsciente, a Morte?
Ignoro-a? Mas que é que eu não ignoro?
A pena em que pego, a letra que escrevo, o papel em que escrevo,
São mistérios menores que a Morte? Como se tudo é o mesmo mistério?
E eu escrevo, estou escrevendo, por uma necessidade sem nada.
Ah, afronte eu como um bicho a morte que ele não sabe que existe!
Tenho eu a inconsciência profunda de todas as coisas naturais,
Pois, por mais consciência que tenha, tudo é inconsciência,
Salvo o ter criado tudo, e o ter criado tudo ainda é inconsciência,
Porque é preciso existir para se criar tudo,
E existir é ser inconsciente, porque existir é ser possível haver ser,
E ser possível haver ser é maior que todos os Deuses.
Álvaro de Campos, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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Alvaro de Campos
sábado, julho 09, 2011
Leste os meus versos, leste? Foi o teu olhar que inspirou esses versos, mas não descubras nunca o meu segredo, pede Florbela ao seu amor.
Os meus versos
Leste os meus versos? Leste? E advinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os inspirou?
Advinhaste? Eu não posso acreditar
Que advinhasses, vês? E até, sorrindo,
Tu disseste pra ti: "Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,
Ficar amando um homem!...Que loucura!"
- Pois foi o teu olhar, a noite escura,
(eu só a ti o digo, e muito a medo...)
Que inspirou esses versos! Teu olhar
que eu trago dentro d'alma a soluçar!
........................................................
Ai não descubras nunca o meu segredo!
Florbela Espanca
(1894-1930)
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sexta-feira, julho 08, 2011
Um rondó pra você, de Mário Andrade para Rosa. De quem ele tudo queria, até o pensamento, a alma, o desgosto dela.
Rondó pra você
De você, Rosa, eu não queria
Receber somente esse abraço
Tão devagar que você me dá,
Nem gozar somente esse beijo
Tão molhado de amor que você me dá...
Eu não queria só porque
Por tudo quanto você me fala,
Já reparei que no seu peito
Soluça o coração bem feito
De você.
Pois então eu imaginei
Que junto com esse corpo magro,
Moreninho que você me dá,
Com a boniteza a faceirice
A risada que você me dá,
E me enrabicham como o quê,
Bem que eu podia possuir também
O que mora atrás do seu rosto, Rosa,
O pensamento, a alma, o desgosto
De você.
Mário de Andrade
(1893-1945)
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quinta-feira, julho 07, 2011
A mulher de Seu Costa criava urubus no galinheiro. E João Cabral descobriu a razão: para ela, o urubu protege, é padre, abençoa a criação.
A criadora de urubus
A mulher de Seu Costa
(com medo se sabia?)
criava urubus no galinheiro
junto com a criação comezinha.
Decepção ao saber
a correta razão:
não era pelo gosto doentio
de criar tais bichos do Cão,
nem pelo do exercício
do estranho e seus desvãos:
mas sim porque o urubu protege,
é padre, abençoa a criação.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
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quarta-feira, julho 06, 2011
Como defini-la, como desnudá-la, como possuí-la? Ferreira Gullar ainda não sabe como definir a moça.
Definição da moça
Como defini-la
quando está vestida
se ela me desbunda
como se despida?
Como defini-la
quando está desnuda
se ela é viagem
como toda nuvem?
Como desnudá-la
quando está vestida
se está mais despida
do que quando nua?
Como possui-la
quando está desnuda
se ela toda é chuva?
se ela é toda vulva?
Ferreira Gullar
(1930)
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terça-feira, julho 05, 2011
Sutil, intuitiva, ela é grande e miserável. E Murilo Mendes sente que o orgulho dela só é igual à sua timidez.
A desejada
Sutil, intuitiva, és grande e miserável.
Teu orgulho só é igual à tua timidez.
Eu te veria num convento espanhol
Onde se dance: castanholas em homenagem ao Senhor;
Através do parlatório
Apunhalando os aficionados
Com esses olhos retraídos e lascivos.
Teus dentes afiados, vivos,
Profanaram as hóstias..
Ornamento essencial,
Pela tua finura não pertences a este mundo:
E nunca te entregarás de todo.
Pensas entrentanto dia e noite
No amor definitivo
Que até hoje não te foi anunciado.
Entre tua essência íntima e teu destino
O drama se desenrola.
Elemento de grandeza,
Enfim conseguistes me alterar.
Não passarei em vão pela tua grade.
Celebro teu encanto cruel,
Tua arte de dissimular,
Teu espírito e finura
- Ó tranquila perturbadora -,
Essa coreografia felina,
Tudo que amo com lucidez,
Tudo que outros vão arrebatar,
Mutilando a golpes implacáveis,
Desfazer em pedaços -
E que a piedosa poesia
Reconstitui antecipadamente.
Murilo Mendes
(1901-1975 )
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segunda-feira, julho 04, 2011
Alberto Caeiro leu quase duas páginas do livro de um poeta místico. E riu como quem tem chorado muito.
Li hoje
Li hoje quase duas páginas
Do livro de um poeta místico,
E ri como tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentisse, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar.
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores sao apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era a Natureza.
Alberto Caeiro, um dos heterônimos de
Fernando Pessoa
(1888-1935)
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domingo, julho 03, 2011
Guimarães Rosa ia triste, com a tristeza comum dos fatigados. E a sua tristeza pesava mais do que todos os pesos.
Desterro
Eu ia triste, com a tristeza discreta dos fatigados,
com a tristeza torpe dos que partiram tendo despedidas,
tão preso aos lugares
de onde o trem já me afastara estradas arrastadas,
que talvez eu não estivesse todo inteiro presente
no horror dessa viagem.
Mas a minha tristeza pesava mais do que todos os pesos,
e era por causa de mim, da minha fadiga desolada,
que a locomotiva, lá adiante, ridícula e honesta, bracejava,
puxando com esforço vagões quase vazios,
com almas cheias de distância, a penetrar no longe.
A tarde subiu do chão para a paisagem sem casas,
e o comboio seguia,
cada vez mais longe, mais fundo, a terra mais vermelha,
o esforço maior, as montanhas mais duras,
como sabem ser duros os caminhos,
pelos quais a gente vai, só pensando na volta...
Coagulada em preto,
a noite isolou as cousas dentro da tarde,
e o barulho do trem foi um rumor de soçobro
no fundo de um mar sem tona.
Nem mesmo foi a noite: foi a ausência
brusca e absurda do dia.
Tão definitiva e estranha, que eu me alegrei, esperando
o não continuar da vida,
o não-regresso da luz, o não-andar-mais-de-trem...
Guimarães Rosa
(1908-1967)
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sábado, julho 02, 2011
Para Augusto dos Anjos, o Fim das Coisas mostra-se medonho. A humanidade vai pesar seu gênio e encontrar o mundo, que ela encheu, vazio.
O fim das coisas
Pode o homem bruto, adstrito à ciência grave,
Arrancar, num triunfo surpreendente,
Das profundezas do Subconsciente
O milagre estupendo da aeronave!
Rasgue os broncos basaltos negros, cave,
Sôfrego, o solo sáxeo: e, na ânsia ardente
De perscrutar o íntimo da orbe, invente
A lâmpada aflogística de Davy!
Em vão! Contra o poder criador do Sonho
O Fim das Coisas mostra-se medonho
Como o desaguadouro atro de um rio...
E quando, ao cabo do último milênio,
A humanidade vai pesar seu gênio
Encontra o mundo, que ela encheu, vazio!
Augusto dos Anjos
(1884-1914)
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sexta-feira, julho 01, 2011
O bonde de Mario Quintana passa pelo Mercado. Mas ele sabe que o que há de bom mesmo não está à venda.
Meu bonde passa pelo Mercado
Meu bonde passa pelo Mercado.
Mas o que há de bom mesmo não está à venda,
O que há de bom não custa nada.
Este momento de euforia é a flor da eternidade.
E essa minha alegria inclui também minha tristeza
- a nossa tristeza...
Tu não sabias, meu companheiro de viagem?
Todos os bondes vão para o infinito!
Mario Quintana
(1906-1994 )
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